O Estado de S. Paulo
O confronto dos custos dos benefícios dos
militares com os dos trabalhadores civis deixa muitas indagações
A discussão sobre a necessidade de mudanças no sistema de proteção social dos militares pode criar mais problemas para o governo. Ao escolher um político com boas relações na cúpula das Forças Armadas para ocupar o Ministério da Defesa, o presidente Lula da Silva recebeu fortes críticas de companheiros do PT. Mas parecia ter aquietado um braço do Estado com o qual seu partido nem sempre mantém entendimento fluente. A comparação dos gastos com “o conjunto integrado de direitos, serviços e ações, permanentes e interativas, de remuneração, pensão, saúde e assistência” dos militares (como a legislação define o sistema de benefícios sociais e previdenciários desses profissionais) com o custo da Previdência dos servidores civis e dos demais trabalhadores, porém, mostrou disparidades tão gritantes que assustam. E podem gerar atritos políticos.
Utilizou-se a expressão legal que trata dos
benefícios sociais dos militares porque eles não os consideram um regime
previdenciário como o dos trabalhadores dos setores público e privado. Ainda
que se reconheça a relevante diferença conceitual e de fonte de recursos (no
caso das Forças Armadas, é o Tesouro Nacional), o confronto dos custos dos
benefícios dos militares com os dos trabalhadores civis deixa muitas
indagações. Trata-se de um sistema que mantém privilégios dos militares em
relação aos demais trabalhadores ou de um regime jurídico que mitiga
desvantagens impostas a esses servidores em razão das particularidades de sua
profissão?
Em análise das contas públicas divulgada em
junho, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Walton Alencar Rodrigues
afirmou que, nas mudanças ocorridas nos últimos anos, “os militares das Forças
Armadas foram os que preservaram as maiores vantagens”. Por isso, no seu
entender, é imprescindível “implementar mudanças no SPSMFA, com o objetivo de
torná-lo consentâneo com o contexto nacional, no qual a manutenção de
privilégios, em relação aos demais trabalhadores, às custas da sociedade, é
cada vez menos aceitável, diante da difícil situação fiscal do País e dos
naturais anseios sociais pela moralidade e isonomia”. Esclareça-que SPSMFA é o
Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Armadas, que recebeu esse
nome em 2019.
No Caderno de Orientação aos Agentes da
Administração sobre o SPSMFA, que estava na quarta edição em setembro, a
Secretaria de Economia e Finanças do Exército ressalta que militar não é
privilegiado, nem tem direito a aposentadoria. Num quadro didático sobre
“ideias equivocadas e suas devidas correções”, afirma pelo menos quatro vezes
que “militares das Forças Armadas não têm previdência”.
Segundo o Caderno, o regime jurídico dos
militares não gera privilégio; “ao contrário, busca atenuar as desvantagens a
esses profissionais pelas particularidades da profissão militar”. A carreira,
diz ainda, exige habilidades técnicas e físicas; impõe desafios que demandam
coragem, liderança e conhecimento especializado; e implica frequentes
transferências, com mudanças constantes de residência. Além disso, dos
militares são suprimidos certos direitos sociais, como os de greve, de
sindicalização e de filiação a partidos.
Ainda que meritória, essa discussão não é
suficiente para tornar esmaecidos alguns números levantados pelo TCU. São dados
que podem até causar perplexidade. Em 2023, o déficit per capita do Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS), conhecido como Regime Geral de Previdência
Social (RGPS), foi de R$ 9,4 mil; no Regime Próprio de Previdência Social
(RPPS), que abarca os servidores civis, de R$ 69 mil; e, no caso dos militares,
de R$ 159 mil. O custo per capita do déficit do regime dos militares equivale a
17 vezes o do trabalhador comum.
Quaisquer que sejam as justificativas para
essa discrepância, ela propicia reflexões de natureza ética (essa disparidade
acentua a desigualdade numa sociedade muito desigual) e, sobretudo, fiscal.
Nestes tempos em que parte dos agentes econômicos, especialmente os vinculados
a instituições financeiras, cobram do governo com veemência crescente o ajuste
das contas públicas, essa não é uma questão a ser tratada com indiferença.
Combater o déficit implica escolhas políticas. Cortar gastos com defesa, com infraestrutura,
com programas sociais ou com benefícios tributários?
Há negociações para a redução da ampla
distância entre os custos dos regimes de proteção social (chamemos assim) dos
civis e dos militares. O presidente Lula pediu ao ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, a inclusão do Ministério da Defesa no corte de despesas necessário para
reduzir o déficit.
Já se discute a redução de benefícios como
pensões de filhas solteiras de militares (com impacto até 2060), pagamento por
mortes fictícias (devido a dependentes de militares expulsos por conduta
inadequada) e remuneração aos que deixam o serviço ativo.
Se as medidas forem aprovadas, seus efeitos
serão lentos. Por isso, a despeito de politicamente perturbadora, a questão
suscitada pelos números do TCU merece reflexão mais profunda da sociedade.
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