terça-feira, 19 de novembro de 2024

Pragmatismo tomou posse antes de Trump - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Lula e Milei produzem frieza para as redes sociais e acordos para os interesses nacionais

Ao subir a rampa do Museu de Arte Moderna no Rio para ser recebido pelo anfitrião, o presidente argentino protagonizou a troca de cumprimentos mais fria da abertura do G20. Nos 20 segundos em que durou a cena, coube apenas um aperto de mão e uma foto sem sorrisos dos quatro, Javier Milei e a irmã, Karina, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Janja da Silva. Contrastou com os demais chefes de Estado. Joe Biden posou de mãos dadas com Lula e Emmanuel Macron deu até uma corridinha na rampa para abraçar o presidente brasileiro. Foi uma frieza moldada para as redes. Milei não apenas assinou tudo o que o Brasil queria como ainda fechou um acordo que Lula não conseguiu arrancar de Alberto Fernandez.

O G20 é o último grande encontro da diplomacia mundial antes da posse de Donald Trump. Anfitrião do encontro em 2026, os EUA dificilmente manterão a linha adotada pelos países em desenvolvimento que se tornaram anfitriões. Na Índia, a prioridade foi o aquecimento global, no Brasil, o combate à pobreza e à fome e, na África do Sul, no próximo ano, será a taxação das grandes fortunas.

É mais do que a temática que está em risco. Daí porque este G20 se revestiu da expectativa de que as 20 maiores economias do planeta pudessem vir a fazer um “hedge” contra a volta do ex-presidente americano ao tablado. Esta expectativa pode vir a se revelar excessivamente otimista, mas Brasil e Argentina mostraram que as relações internacionais não são movidas a maniqueísmo mas pelo interesse nacional. E não é a posse de Trump que vai mudar isso.

Enquanto Biden autorizou de lá o uso de mísseis de longa distância na Ucrânia contra a Rússia, comprovando os limites do fórum para a paz mundial e Macron disse que se opõe ao acordo entre o Mercosul e a União Europeia, foi a Argentina do gélido Milei que deu a notícia mais importante para o Brasil ontem.

Milei aderiu à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, principal iniciativa brasileira no encontro, e subscreveu os parágrafos sobre a tributação dos mais ricos e o combate à desinformação. Não bastasse, o ministro da Economia, Luis Caputo, assinou, nesta segunda-feira, com o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, memorando de importação de gás natural argentino pelo Brasil.

É um acordo financeiramente vantajoso para ambos os países. Alberto Fernández era tão próximo de Lula que chegou a visitá-lo em sua prisão curitibana, mas a amizade não deu conta de superar as dificuldades deste acordo. Quem o fez foi Milei, três dias depois de se encontrar com Trump e se vender como um aliado contra “comunistas” como Lula.

O Brasil conseguiu o gás, da reserva argentina de Vaca Muerta, por até US$ 8 o BTU (sigla para a unidade térmica utilizada) enquanto o mercado interno brasileiro o produz a US$ 14. E a Argentina vai gerar divisas exportando um ativo energético e ocupando um espaço que hoje é da Bolívia.

É bem verdade que a exploração deste gás afronta os compromissos assumidos pelo Brasil de mitigação do aquecimento global na COP29. O gás desta reserva é de xisto. Para separá-lo desta rocha, é preciso usar água de alta pressão, o que arrisca os lençóis freáticos e abala comunidades indígenas próximas à área. O Brasil sempre poderá dizer que a responsabilidade da exploração é da Argentina, cabendo ao país apenas transportá-lo até seus depósitos.

Quem tornou esse acordo possível foram os interesses empresariais, a diplomacia e a burocracia de ambos os países que prosseguem interagindo, independentemente de quem esteja no poder. É o “deep state” dos pampas que segue em curso enquanto as caretas mal-humoradas dos chefes de Estado cumprem a missão a que se destinam nas redes sociais.

É cinismo, mas é assim que se move a chamada lógica transacional da qual Donald Trump é o principal artífice. É neste sentido que o presidente americano tem estimulado a “blindagem” contra sua volta ao poder. Enquanto acordos como este entre Brasil e Argentina mostram-se viáveis, o multilateralismo de organismos como o G20 ainda terá que mostrar sua eficácia. Biden prometeu doar U$$ 4 bilhões para que o Banco Mundial se envolva no acordo para a superação da fome e da pobreza, mas a destinação terá que ser submetida a um Congresso de dominância republicana.

É esta perspectiva de ganho bilateral que move o encontro pós-G20 entre Lula e Xi Jinping na visita de Estado do presidente chinês, que acontecerá na quarta-feira, em Brasília. Mas não será fácil. Ameaçada de sobretaxação por Trump, a China quer diversificar o mercado de sua indústria. O Brasil pretende o inverso: investimento chinês para deixar de ser um eterno exportador de commodities para a China e poder desenvolver sua própria indústria.

A declaração final, obtida no primeiro dia do encontro, pode ser lida como uma resposta do G20 à necessidade de reforçar o multilateralismo antes do seu algoz tomar posse na Casa Branca. Está claro, porém, que o alcance é limitado. Lula valeu-se da condição de único chefe de Estado presente no primeiro encontro do G20, em 2008, para atestar, 16 anos depois, que o mundo piorou. Ao reconhecer o fracasso do fórum, legitima os ganhos que o Brasil vier a obter na edição deste ano, todos juntos ou separados: o que vier é lucro. A lógica transacional tomou posse antes de Trump.

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