quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A coragem que constrói a democracia - Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

Em condições de extrema adversidade, José Carlos Dias exerceu a advocacia criminal de forma técnica, corajosa e criativa

No dia 10 de fevereiro, o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) concedeu sua maior honraria – o Prêmio Barão de Ramalho – a José Carlos Dias, cuja trajetória na defesa dos direitos humanos foi recentemente contada no livro Democracia e Liberdade (Alameda, 2024), de Ricardo Carvalho e Otávio Dias. Às vezes, fala-se que no Brasil faltam lideranças na sociedade civil. Pois bem, José Carlos Dias foi e continua sendo uma liderança no mais genuíno sentido do termo, seja por sua exata compreensão a respeito do que vale a pena lutar, seja por sua capacidade de reunir e, com seu exemplo, formar pessoas para essa luta.

“O percurso de José Carlos Dias tem sido marcado por enorme coerência política, correção moral e competência profissional, além de um forte compromisso com a democracia, o pluralismo, a tolerância e, sobretudo, com a defesa dos direitos humanos”, lembra Oscar Vilhena Vieira no prefácio do livro. Em condições de extrema adversidade, José Carlos Dias exerceu a advocacia criminal de forma técnica, corajosa e criativa. Foi advogado de mais de 500 presos e perseguidos políticos durante a ditadura militar.

Falar em ditadura militar não é referir-se “apenas” a uma ordem jurídica autoritária, que restringiu direitos e garantias fundamentais. Por exemplo, publicado em dezembro de 1968, o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) suspendeu “a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. Não era um problema meramente de leis ruins. Muitas vezes, o próprio Judiciário tinha uma compreensão distorcida de sua missão. Além disso, defender pessoas perseguidas pelo regime era colocar-se em evidente situação de risco. Cito dois exemplos.

No governo Geisel (19741979), foi suspensa a censura prévia de alguns jornais, como o Estadão eo Jornal da Tarde, mas o jornal da Arquidiocese de São Paulo, O São Paulo, continuou sob censura. Diante disso, os advogados José Carlos Dias e Arnaldo Malheiros Filho impetraram um mandado de segurança contra o presidente da República, o ministro da Justiça e o diretor da Polícia Federal, no qual apresentaram um longo histórico da censura praticada no Brasil contra órgãos de imprensa. Servil ao regime e tolerante com a censura, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o mandado de segurança. No entanto, o trabalho de Dias e Malheiros não foi em vão. Dias depois da lamentável decisão do STF, o general Ernesto Geisel revogou a censura prévia do jornal da Arquidiocese de São Paulo.

Segundo exemplo, que ilustra a ousadia e a naturalidade da violência durante a ditadura militar. Em 1980, Dalmo Dallari e José Carlos Dias foram convidados para ler a primeira e a segunda leitura na missa campal a ser celebrada pelo papa João Paulo II no Campo de Marte, em São Paulo. Na véspera, o professor Dallari foi sequestrado e espancado, o que o obrigou a comparecer à cerimônia de cadeiras de rodas. Questionado pelo papa sobre o caso, dom Paulo Evaristo Arns disse: “Fizeram isso com ele porque não tiveram coragem de fazer comigo, mas é um recado para mim”, atribuindo o atentado a grupos de extermínio ligados à ditadura.

Por sua atuação em defesa dos presos políticos, José Carlos Dias foi convidado a integrar em 1972 a Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo, tendo sido seu presidente entre 1980 e 1982. Sucedeu justamente ao pr of e s s or Dalmo Dall a r i . “Foi o trabalho mais importante que fiz na vida”, disse José Carlos Dias, referindose à sua atuação na comissão, que, entre outras ações, realizou ao longo dos anos um levantamento sistemático das violações de direitos humanos praticadas pelo governo militar, como torturas, prisões políticas e desaparecimentos. Décadas depois, José Carlos Dias integrou a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei 12.528/11 para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas pelo Estado brasileiro.

Em duas ocasiões, José Carlos Dias deixou a advocacia para ocupar funções públicas. Entre 1983 e 1986, nomeado pelo governador André Franco Montoro, foi secretário de Justiça do Estado de São Paulo. Entre 1999 e 2000, foi ministro da Justiça, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Dessas passagens pelo poder público, destacam-se sua integridade e sua valentia na promoção de políticas públicas de respeito aos direitos humanos; de forma especial, seu trabalho pioneiro, objeto de muita incompreensão e resistência, de humanização dos presídios.

Ao não se omitir em seu dever cívico – sempre vigilante, sempre pronto a agir, sempre disposto a congregar pessoas –, José Carlos Dias foi decisivo para a restauração e a pres e r v a ç ã o da democracia. Atuou na idealização da Carta aos Brasileiros, de 1977, e na Carta em Defesa da Democracia e do Estado de Direito, que leu em 11 de agosto de 2022. Entre 2019 e 2023, presidiu a Comissão Arns, criada para fazer frente às novas ameaças contra os direitos humanos no País. Tendo muito a agradecer-lhe, o Brasil tem sobretudo muito a aprender com José Carlos Dias.

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