O Estado de S. Paulo
Em condições de extrema adversidade, José
Carlos Dias exerceu a advocacia criminal de forma técnica, corajosa e criativa
No dia 10 de fevereiro, o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) concedeu sua maior honraria – o Prêmio Barão de Ramalho – a José Carlos Dias, cuja trajetória na defesa dos direitos humanos foi recentemente contada no livro Democracia e Liberdade (Alameda, 2024), de Ricardo Carvalho e Otávio Dias. Às vezes, fala-se que no Brasil faltam lideranças na sociedade civil. Pois bem, José Carlos Dias foi e continua sendo uma liderança no mais genuíno sentido do termo, seja por sua exata compreensão a respeito do que vale a pena lutar, seja por sua capacidade de reunir e, com seu exemplo, formar pessoas para essa luta.
“O percurso de José Carlos Dias tem sido
marcado por enorme coerência política, correção moral e competência
profissional, além de um forte compromisso com a democracia, o pluralismo, a
tolerância e, sobretudo, com a defesa dos direitos humanos”, lembra Oscar
Vilhena Vieira no prefácio do livro. Em condições de extrema adversidade, José
Carlos Dias exerceu a advocacia criminal de forma técnica, corajosa e criativa.
Foi advogado de mais de 500 presos e perseguidos políticos durante a ditadura
militar.
Falar em ditadura militar não é referir-se
“apenas” a uma ordem jurídica autoritária, que restringiu direitos e garantias
fundamentais. Por exemplo, publicado em dezembro de 1968, o Ato Institucional
n.º 5 (AI-5) suspendeu “a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes
políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia
popular”. Não era um problema meramente de leis ruins. Muitas vezes, o próprio
Judiciário tinha uma compreensão distorcida de sua missão. Além disso, defender
pessoas perseguidas pelo regime era colocar-se em evidente situação de risco.
Cito dois exemplos.
No governo Geisel (19741979), foi suspensa a
censura prévia de alguns jornais, como o Estadão eo Jornal da Tarde, mas o
jornal da Arquidiocese de São Paulo, O São Paulo, continuou sob censura. Diante
disso, os advogados José Carlos Dias e Arnaldo Malheiros Filho impetraram um mandado
de segurança contra o presidente da República, o ministro da Justiça e o
diretor da Polícia Federal, no qual apresentaram um longo histórico da censura
praticada no Brasil contra órgãos de imprensa. Servil ao regime e tolerante com
a censura, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o mandado de segurança. No
entanto, o trabalho de Dias e Malheiros não foi em vão. Dias depois da
lamentável decisão do STF, o general Ernesto Geisel revogou a censura prévia do
jornal da Arquidiocese de São Paulo.
Segundo exemplo, que ilustra a ousadia e a
naturalidade da violência durante a ditadura militar. Em 1980, Dalmo Dallari e
José Carlos Dias foram convidados para ler a primeira e a segunda leitura na
missa campal a ser celebrada pelo papa João Paulo II no Campo de Marte, em São
Paulo. Na véspera, o professor Dallari foi sequestrado e espancado, o que o
obrigou a comparecer à cerimônia de cadeiras de rodas. Questionado pelo papa
sobre o caso, dom Paulo Evaristo Arns disse: “Fizeram isso com ele porque não
tiveram coragem de fazer comigo, mas é um recado para mim”, atribuindo o
atentado a grupos de extermínio ligados à ditadura.
Por sua atuação em defesa dos presos
políticos, José Carlos Dias foi convidado a integrar em 1972 a Comissão Justiça
e Paz, da Arquidiocese de São Paulo, tendo sido seu presidente entre 1980 e
1982. Sucedeu justamente ao pr of e s s or Dalmo Dall a r i . “Foi o trabalho
mais importante que fiz na vida”, disse José Carlos Dias, referindose à sua
atuação na comissão, que, entre outras ações, realizou ao longo dos anos um
levantamento sistemático das violações de direitos humanos praticadas pelo
governo militar, como torturas, prisões políticas e desaparecimentos. Décadas
depois, José Carlos Dias integrou a Comissão Nacional da Verdade, instituída
pela Lei 12.528/11 para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos
humanos” praticadas pelo Estado brasileiro.
Em duas ocasiões, José Carlos Dias deixou a
advocacia para ocupar funções públicas. Entre 1983 e 1986, nomeado pelo
governador André Franco Montoro, foi secretário de Justiça do Estado de São
Paulo. Entre 1999 e 2000, foi ministro da Justiça, no governo de Fernando
Henrique Cardoso. Dessas passagens pelo poder público, destacam-se sua
integridade e sua valentia na promoção de políticas públicas de respeito aos
direitos humanos; de forma especial, seu trabalho pioneiro, objeto de muita
incompreensão e resistência, de humanização dos presídios.
Ao não se omitir em seu dever cívico – sempre vigilante, sempre pronto a agir, sempre disposto a congregar pessoas –, José Carlos Dias foi decisivo para a restauração e a pres e r v a ç ã o da democracia. Atuou na idealização da Carta aos Brasileiros, de 1977, e na Carta em Defesa da Democracia e do Estado de Direito, que leu em 11 de agosto de 2022. Entre 2019 e 2023, presidiu a Comissão Arns, criada para fazer frente às novas ameaças contra os direitos humanos no País. Tendo muito a agradecer-lhe, o Brasil tem sobretudo muito a aprender com José Carlos Dias.
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