quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O futuro incerto da democracia na América – Caetano Araújo e Luiz Renato*

Correio Braziliense

É imprescindível que Trump e sua equipe releiam Tocqueville, para entender que a verdadeira força de uma democracia reside na proteção equitativa de todos os seus cidadãos

A vitória recente dos republicanos nas eleições presidenciais americanas, na onda de uma plataforma política belicista em política externa e francamente autoritária em termos de política interna, faz retornar, ao debate público, uma obra clássica das ciências sociais, A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, publicada em 1835, após longa viagem do autor por terras da então jovem república. A obra, entre outras características, descreve com minúcia os mecanismos de freios e contrapesos institucionais que protegem as garantias e direitos individuais, prevenindo a degeneração da democracia em uma situação de simples tirania da maioria.

Tocqueville, impressionado com o sistema democrático americano, observou a importância das salvaguardas que impedem o abuso de poder. Afinal, segundo ele, a tirania da maioria normalmente é mais despótica que a tirania de um indivíduo ou de um grupo minoritário. Nela, as vítimas não têm instância a recorrer, pois todas as instituições obedecem e temem a vontade da maioria. Vamos comentar, neste artigo, alguns aspectos que vinculam a situação americana presente com as análises e previsões do autor.

Em primeiro lugar, cabe constatar que no contexto do governo Trump, observamos a erosão dos mecanismos de proteção das minorias. As primeiras medidas adotadas pelo governo têm sido criticadas por ameaçarem os direitos fundamentais das minorias, um aspecto que Tocqueville alertou ser crucial para a manutenção de uma democracia saudável. Esse ponto é particularmente evidente no tratamento proposto para os imigrantes ilegais, sujeitos à denúncia em escolas, hospitais e outros espaços públicos, ameaçados de deportação sumária, em condições degradantes, para seus países ou para outros pontos fora da fronteira norte-americana.

É preciso explicitar o fundo racista dessas medidas. O problema não parece ser a ilegalidade da situação do migrante, mas sua origem latina, considerada não branca pelo imaginário do racismo norte-americano. As ondas de deportações e o debate sobre a proposta de acabar com a cidadania pela via do nascimento em território americano, talvez com efeitos retroativos, ocorrem, simultaneamente a declarações do novo presidente, em favor do acolhimento dos brancos sul-africanos, que estariam incomodados com o suposto "racismo" do regime democrático que vigora em seu país. 

Em segundo lugar, é necessário refletir sobre a ausência de respostas institucionais a essa torrente de propostas que ofendem as leis e a Constituição do país. O Partido Republicano obteve maioria nas duas Casas do Congresso e conta com a simpatia da maior parte da atual composição da Suprema Corte. Os freios institucionais representados pela separação dos poderes e pelo bicameralismo foram ultrapassados na situação presente de maioria favorável ao presidente em todas as instâncias decisórias relevantes. Infelizmente, no que toca à Suprema Corte, essa situação já prevalecia ao longo do governo anterior, durante o qual todas as decisões potencialmente prejudiciais ao trumpismo foram derrubadas ou congeladas. O maior exemplo disso foi a procrastinação em relação a decisões com potencial de condenar o atual presidente e impedir sua candidatura e campanha em 2024.

A ausência de respostas institucionais eficazes diante dessas ações parece indicar uma decadência nas instituições que antes garantiam o equilíbrio entre maioria e minorias. A democracia, como Tocqueville enfatiza, deve ser o governo da maioria, mas sempre com respeito aos direitos inalienáveis das minorias.

Finalmente, em terceiro lugar, a obra de Tocqueville nos fornece elementos para refletir a respeito das razões profundas, culturais e valorativas, que propiciam a decadência das instituições democráticas. Em poucas palavras, para ele a democracia repousa, em última instância, numa cultura de responsabilidade cívica disseminada entre os cidadãos. Essa cultura é produzida constantemente por determinadas instituições que levam o cidadão a situações nas quais ele deve tomar decisões relevantes e responder por elas. No caso americano essas instituições são, entre outras, o tribunal do júri, a prevalência da cultura do associativismo e, principalmente, a participação direta no governo local. A probabilidade de um americano adulto do sexo masculino de ser eleito para um cargo local quatro ou cinco vezes ao longo da vida era alta, com a inevitável consequência de o eleito ser obrigado, um ano depois, a prestar contas de seus atos na assembleia da comunidade e, até mesmo, na Justiça.

Uma situação de falência ou recuo progressivo dessas instituições extinguiria o senso de responsabilidade cívica dos cidadãos e deixaria todos livres para se concentrar na busca de seus interesses particulares, na procura do enriquecimento pessoal, objetivo universal, segundo o autor, nas sociedades igualitárias.

Portanto, é imprescindível que Trump e sua equipe releiam Tocqueville, para entender que a verdadeira força de uma democracia reside na proteção equitativa de todos os seus cidadãos. E é necessário que todos os democratas o leiam, para definir com acuidade, os caminhos da recuperação do regime democrático.

*CAETANO ERNESTO PEREIRA DE ARAÚJO —  Doutor em sociologia, consultor legislativo do Senado Federal e  LUIZ RENATO VIEIRA _  Doutor em sociologia, consultor legislativo do Senado Federal

 

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