Por Malu Delgado -Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
• As doações até domingo totalizaram R$ 2,3 bi. Em 2012, considerando os dois turnos, os candidatos, que podiam ser beneficiados pela iniciativa privada, receberam R$ 6,2 bi. Ou seja, até o momento, a arrecadação de 2016 foi 63% menor
SÃO PAULO - No mesmo dia, 67 funcionários de uma empresa de Fortaleza doaram R$ 1.000 cada, identificados por seus respectivos CPFs, para um único candidato da capital. Em outro extremo do país, em uma cidadezinha do Rio Grande do Sul, funcionários da prefeitura resolveram ajudar um partido, doando a ele parte de seus salários. Curiosamente, era o partido do prefeito que disputava a reeleição. Outro político que sonhava em virar prefeito tirou a sorte grande: um doador desempregado desde 2010, mas generoso, doou R$ 97 mil para sua campanha.
Em Goianesia (GO), um altruísmo inusitado: uma única pessoa doou para vários candidatos a vereador, somando a vultosa contribuição de R$ 19 milhões. Nos municípios do Norte e Nordeste, em especial, os módicos benefícios pagos pelo Bolsa Família (que podem chegar a R$ 195/mês) não foram empecilho para que milhares de beneficiários do programa assumissem a posição surpreendente de doadores nestas eleições: até a última segunda-feira, 37.888 bolsistas despejaram mais de R$ 36,8 milhões nas campanhas de 2016.
Pela primeira vez no Brasil, no curso do pleito, os indícios de irregularidades de doações foram flagrados e puderam ser conhecidos pela Justiça Eleitoral antes do soar definitivo das urnas, agilizando o trabalho de investigação dos juízes eleitorais e do Ministério Público Eleitoral. Isso ocorreu graças à nova legislação que obriga o candidato a informar de onde recebeu dinheiro 72 horas depois que um crédito cai na sua conta bancária.
O pleito de 2016 mostrou-se inovador não apenas na fiscalização, mas na dinâmica, sendo uma disputa de tiro rápido, com apenas 45 dias de campanha, sem que o dinheiro de empresas pudesse abastecer as ambições da política - pelo menos oficialmente.
Especialistas em legislação eleitoral que acompanham as eleições deste ano inferem que o alto índice de doações de pessoas físicas suspeitas (superior a 30%), e em especial os casos de servidores de órgãos públicos ou de grupos empresariais que, em movimentos coletivos, colocaram os próprios rendimentos a serviço da política, podem ser fruto da tentativa de driblar o veto a pessoas jurídicas.
Até o fim do primeiro turno, 43.382 pessoas físicas ligadas a empresas ou a órgãos públicos doaram R$ 90,7 milhões para campanhas. O volume de desempregados doadores é outra suspeita captada pelo TSE que corrobora a tese do drible ao veto de doações de empresas: 55.670 pessoas físicas sem carteira assinada abasteceram as campanhas deste ano com R$ 84,2 milhões.
O pavor da classe política com a Operação Lava-Jato ajudou a construir um consenso para tirar de cena, também no caixa 1, as doações de empresas. Se em 2014 os grupos empresariais foram responsáveis por injetar três quartos de todo o dinheiro gasto em campanhas, a experiência de 2016 viu os recursos minguarem abruptamente num país sem cultura de doação de pessoas físicas e sem participação ativa dos cidadãos no processo.
As doações registradas pela Justiça Eleitoral até domingo, no primeiro turno, totalizaram R$ 2,3 bilhões. Nas eleições municipais de 2012, considerando os dois turnos, os candidatos, que ainda podiam ser beneficiados pela iniciativa privada, receberam R$ 6,2 bilhões em doações. Ou seja, até o momento, a arrecadação de 2016 foi 63% menor. Na disputa de 2014, de acordo com o TSE, as empresas, em especial dos setores financeiro, construção civil e alimentício, financiaram 95% das campanhas. É fato que 2016 trouxe um outro freio aos gastos, que foi a fixação de um teto para os valores das campanhas de prefeito e vereador.
"O dinheiro tem que entrar de alguma forma. Essa campanha deixou muito claro que não se pode fazer uma disputa só com doação de pessoa física, ainda mais se for eleição presidencial. E é por isso que o Congresso já se prepara para fazer outra reforma", afirmou um especialista em direito eleitoral, que pediu para ter a identidade preservada.
De fato, o Congresso já começou a agir. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou ao Valor que está sendo gestada e debatida pelos parlamentares da Casa uma proposta de reforma eleitoral que possa radicalizar o sistema político. "Acho que vai ter que mudar o sistema eleitoral porque não vai ter financiamento privado. Esse é o meu sentimento." Para ele, o ponto crucial da mudança é a implementação do sistema de lista fechada, em que o partido determina quem serão os candidatos.
"Esse sistema eleitoral não cabe mais, em momento nenhum, no Brasil. Mas sem financiamento privado ele não cabe de forma alguma, porque é um sistema caro, de eleições individuais pelo Brasil inteiro. Temos que mudar para um sistema que fortaleça os partidos e reduza o custo da eleição", disse Maia. O deputado descarta que a saída seja o retorno do financiamento privado. "Acho que a solução não será pelo financiamento, será pela mudança do sistema eleitoral."
O Senado, afirmou Rodrigo Maia, já deu demonstrações de que não vai colocar o financiamento privado na agenda. Os deputados votaram em 2015 o retorno das doações de empresas, permitindo que sejam feitas a partidos, e não a candidatos, mas a proposta de emenda constitucional (PEC 113-A) está parada no Senado e não há entusiasmo para que a tramitação avance.
"É muito mais legítimo o Congresso chegar à conclusão de que se mais da metade da população brasileira não foi votar, é porque ela não se sente representada por esse sistema eleitoral, que elege esses parlamentares, esses prefeitos e esses governadores", observou o presidente da Câmara. A situação falimentar do atual sistema, na visão de Maia, é tamanha que não cabe reforma. "Precisa ser transformado, não é nem reformado."
O debate sobre as generosas fatias de recursos do fundo partidário poderia também ser abraçado pela Câmara, admite Maia. "Se a gente vai discutir o sistema eleitoral, vamos ter condições de discutir depois como será a distribuição do fundo partidário, se a que existe está adequada, ou se tem alguma ideia melhor. O Parlamento existe para isso, para ver o que pode mudar, o que tem que mudar."
No Senado, há um acordo para votar, no máximo até o dia 19, a Proposta de Emenda Constitucional 36, de autoria do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), que conta com apoio integral da bancada tucana e de boa parte do PMDB. A emenda estabelece a famosa cláusula de barreira (ou de desempenho): só poderão ter dinheiro do fundo partidário e tempo de televisão nas campanhas os partidos que tiverem pelo menos 2% dos votos válidos em ao menos 14 Estados do país. Essa é uma regra de transição, aumentando o percentual para 3% na eleição seguinte. A proposta determina, ainda, uma trava às coligações proporcionais. O objetivo é translúcido: tentar minguar a indústria de partidos no Brasil, aumentar a fidelidade partidária e dar algum estofo nacional e ideológico à fauna de siglas que se prolifera no país.
"Não considero adequado nem oportuno, neste momento, no calor da eleição, pensarmos na hipótese de retomar o financiamento de pessoa jurídica no processo eleitoral. Até porque o que nós assistimos, nos últimos anos, foi o poder econômico influenciando e distorcendo a política de maneira absolutamente brutal", afirmou o senador Ricardo Ferraço. Ele considera que não há clima no Senado para que prospere o debate de outra emenda constitucional (a PEC 113-A), já aprovada pela Câmara, que retoma as doações de empresas no processo eleitoral.
Questionado se o veto de repasses do fundo partidário a siglas que não alcancem a cláusula de desempenho também não poderia provocar distorção da representatividade, Ferraço justificou que o sistema político precisa ser racionalizado. "Não tem cabimento você construir um sistema para prestigiar partidos que não conseguem se colocar nacionalmente. Eu não posso legislar em razão da exceção. É o cachorro que balança o rabo ou o rabo que balança o cachorro?"
Se o Congresso não conseguir retomar a doação de empresas, opina a vice-presidente nacional da Comissão de Direito Eleitoral da OAB, Gabriela Rollemberg, certamente os parlamentares pensarão numa fórmula para injetar mais recursos no fundo partidário. Segundo ela, os parlamentares ensaiam dois movimentos: "Ou o retorno de doações de pessoas jurídicas, mas com um outro modelo, para que não caia em inconstitucionalidade e seja admitido pelo Supremo, ou o aumento ainda maior do fundo partidário para permitir o financiamento da campanha de 2018".
A disputa eleitoral de 2016, atesta a advogada, teve um processo de arrecadação dificílimo para a maioria dos candidatos, que tiveram somente 45 dias para fazer a captação de recursos. "Muitas campanhas vão terminar endividadas e terão de ser acolhidas pelos partidos."
Para o ministro do TSE Henrique Neves, um dos que mais se empenhou na aprovação de regras que assegurassem a fiscalização das doações a cada 72 horas, garantir a transparência do pleito é muito mais relevante do que debater o tipo de financiamento. "O que essa eleição provou é que mais importante do que definir de onde vem o dinheiro, se de pessoas físicas ou se de pessoas jurídicas, é assegurar o máximo possível de transparência à movimentação financeira." Ele salienta, ainda, que há uma grande diferença entre captar indícios de irregularidades nas doações e afirmar categoricamente que elas foram fraudes.
"Tudo isso são indícios, que vão permitir investigar, inquirir diretores de empresas para saber qual previsão estatutária para distribuição de bônus [aos funcionários]. Pode caracterizar fraude? Pode. Mas não posso partir da ideia de que é uma fraude, porque aí eu estaria fazendo prejulgamento. O Judiciário tem que ouvir ambas as partes e tomar uma decisão."
Obrigar os candidatos a prestar contas do que recebem, no curso da campanha, enfatizou o ministro, é o que importa para o eleitor. "Essa regra permite um controle muito mais efetivo do que punir ou proibir essa ou aquela fonte. Sou a favor da transparência como meio de restrição, porque aí é o eleitor que verifica de onde o candidato está recebendo dinheiro. Se ele concordar, vota nele, senão, vota em outro."
O ministro sinaliza para a complexidade do debate sobre o retorno de doações de empresas. "O Supremo Tribunal Federal [STF] entendeu que a doação de pessoas jurídicas é inconstitucional. Para alterar esse entendimento da Corte seria preciso modificar a Constituição, e ainda assim, há a discussão de se seria algo passível de ser modificado, se seria cláusula pétrea ou não. Eu obviamente não vou me manifestar."
A fiscalização no decorrer do processo, afirma Eron Pessoa, chefe da Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa) do TSE, propicia, ainda, uma espécie de investigação paralela entre candidatos. "O próprio sistema eleitoral se autofiscaliza", disse. Ao checar se os recursos recebidos por um adversário são baixos, mas a campanha é ostensiva, o candidato passa a acumular indícios para representar contra o político rival. Além disso, as novas regras tiraram do mapa uma prática muito comum dos políticos diante das exigências de prestações de contas parciais. "Muitos apresentavam a parcial sem recursos e sem despesas, só para cumprir tabela", afirmou o chefe da Asepa.
O chamado ambiente computacional que tem permitido o revolucionário cruzamento de dados e a constatação de indícios em doações é, na verdade, uma organização tecnológica de todos os dados disponíveis em bancos do governo federal. Esse cruzamento de dados, explica Eron Pessoa, só foi possível por causa da obrigatoriedade para que os candidatos forneçam informações de créditos recebidos a cada 72 horas. A ideia de uma parceria tecnológica foi viabilizada a partir da criação do Núcleo de Inteligência da Justiça Federal, por determinação do atual ministro do TSE, Gilmar Mendes.
A Justiça Eleitoral compartilha dados com o Tribunal de Contas da União (TCU), a Receita Federal, o Coaf, a Polícia Federal e outros órgãos. A tecnologia permite que uma pequena equipe do sistema de contas da Justiça Eleitoral - dois servidores efetivados e cinco terceirizados - seja a guardiã das contas de quase 500 mil candidatos a vereador e a prefeito. Já o Núcleo de Inteligência conta com 12 representantes dos órgãos conveniados.
O processo funciona da seguinte maneira: ao longo da semana, o TSE vai arquivando as informações enviadas pelos candidatos a cada 72 horas. Ao fim da sexta-feira, esse arquivo é encaminhado aos órgãos conveniados, como o TCU e a Receita. O Tribunal de Contas tem a custódia dos bancos de dados da União, como o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), o cadastro dos beneficiários do Bolsa Família, o cadastro nacional de óbitos, entre outros. Foram criadas então inúmeras "tipologias" de cruzamento, como: a) CPF e beneficiários de Bolsa Família; b) CPF e registro de óbitos; c) CPF e Caged. Há tipologias específicas para cruzar o CPF com o número do Renavam, para checar a regularidade da doação de veículos a campanhas.
Também podem ser cruzadas informações do Imposto de Renda para averiguar os bens de pessoas físicas que, por ventura, resolverem disponibilizar um imóvel para um candidato. Com todas essas tipologias, os órgãos conveniados fazem o que a Justiça Eleitoral chama de "rodada de batimentos".
Esses dados, cruzados, chegam ao TSE todas as segundas-feiras. A partir da detecção de indícios de irregularidades, o TSE aciona os juízes eleitorais e o Ministério Público Eleitoral. Os juízes têm um prazo de cinco dias para promover diligências com intuito de apurar a suposta irregularidade detectada. Como a campanha municipal é pulverizada e há mais de 3.000 juízes municipais, a celeridade do processo é garantida.
O mesmo já não ocorre nos tribunais regionais eleitorais. Para Eron Pessoa, o Congresso precisa também se debruçar sobre a necessidade de rever a estrutura dos TREs e criar cargos e funções de contas regionais para facilitar a fiscalização em 2018. Há um projeto sobre o tema que tramita na Câmara, sem muito entusiasmo.
"Na parte da transparência eu não tenho dúvidas de que essa eleição melhorou, porque a gente passou a ter acesso à prestação de contas quase em tempo real. Traz uma possibilidade muito maior de controle, e a gente consegue ver se o candidato está realmente lançando os gastos que realizou. Há ainda uma facilidade muito maior de acesso a esses dados do que se tinha anteriormente", afirmou a advogada Gabriela Rollemberg.
Se houvesse esse mesmo controle numa eleição com doação de empresas, o financiamento privado não precisaria ser demonizado, defendeu. "O problema maior da participação da pessoa jurídica na eleição não se resolve apenas com a vedação de doações. É no contexto da Lei de Licitações, das concessões, das PPS [Parcerias Público-Privadas], que o problema acontece", afirmou. "Com todo esse controle que estamos tendo, a doação de pessoa jurídica não seria prejudicial, até para se ter uma transparência maior sobre os vínculos de cada candidato com os grupos empresariais, possibilitando inclusive um maior controle pós-eleições."
Defensora de um sistema misto de doações, públicas e privadas, a vice-presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB admite que "há e havia uma relação não republicana de empresas com políticos". Isso, porém, sustenta, não é privilégio do Brasil. "A grande questão é a gente achar que isso se resolve simplesmente com a vedação de doação de pessoa jurídica. E o que acontece depois da eleição? Qual é o real controle que a gente tem dos contratos que são firmados pelo vencedor após a eleição? Eles estão superfaturados? Se atribui sempre uma culpa à eleição, mas não é tão simples assim."
O dinheiro sempre encontra novos caminhos para assegurar o interesse econômico, profetiza Rollemberg. "Seria melhor permitir que as empresas possam participar de forma lícita, com controle da Justiça Eleitoral. No momento em que você retira qualquer possibilidade de doação, as empresas que têm interesses escusos ganham até mais espaço, porque o dinheiro delas passa a valer muito mais."
Um sonho persegue a mente do ministro Henrique Neves. Ele quer a fiscalização on-line, em tempo real, em 2018. "O ideal é que caminhemos para prestação de contas contínua e on-line, que outros países já estão fazendo, como no México. Temos que reduzir o espaço de 72 horas, para a fiscalização ser em tempo real."
A tecnologia, frisa, já nos permite fazer isso. Falta um acerto operacional entre todos os envolvidos. Algo que geralmente só prospera quando a política permite.
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