Norberto Bobbio, o interlocutor dos comunistas italianos, termina o balanço dos seus diálogos sobre o socialismo e a democracia que se estendem da década de 1950 até o começo dos anos 1980, dizendo que “A democracia, já foi dito, é o caminho. Mas para onde?” No primeiro colóquio, ocorrido entre 1951 e 1955, escreve artigos e recebe críticas, então acreditando que o socialismo ainda podia assumir forma democrática no exercício do poder oriundo da Revolução de 1917. Já o diálogo ocorrido entre 1975 e 1976 teve maior repercussão, pois esses eram os anos em que alguns Partidos Comunistas (da Itália, francês e espanhol, principalmente) buscavam alternativas democráticas ao socialismo realmente existente nesse momento. Em dois textos escritos em 1975, chamados “Existe uma doutrina marxista do Estado?” e “Quais as alternativas à democracia representativa?”, ele não só se distanciara da hipótese mais antiga quanto à evolução democrática do socialismo, como questionava sobre a possibilidade de o próprio marxismo ter uma teoria das instituições democráticas.
Nesse segundo colóquio, Bobbio já não nutria expectativa em relação ao socialismo real, como indaga os marxistas sobre quais eram as alternativas ao modo democrático de governar. Haviam passado vinte anos, e a interpelação de Bobbio seguia sem resposta convincente. Já se refletira muito sobre os insucessos das tentativas de democratização dos países socialistas europeus nos anos 1950 e 1960, e em 1976 se começava a ver o fracasso do regime soviético. Somente mais tarde, Gorbatchev iria equacionar o esgotamento do socialismo na própria URSS com a glasnost e a perestróica, que igualmente não teriam sucesso.
Vista agora, a 78 anos da sua fundação, a esquerda histórica brasileira mostra uma longa evolução, passando, no tempo contemporâneo, por um processo de conversão de um partido revolucionário em partido da política, nessa medida cada vez mais propenso a valorizar a democracia política. As formulações se sucedem num percurso pouco linear, marcado por avanços e recuos, pois foi bem custoso o caminho dos pecebistas em direção à democracia como via e, é mais difícil dizê-lo, até mesmo como meta última para alcançar os seus próprios objetivos reformadores, como deixaremos sugerido no final destas notas, citando uma das mais expressivas vozes do campo pecebista.
Pode-se observar em duas formulações que se desenvolvem durante décadas e se fazem presentes no sistema de orientação e na prática do PCB (e mesmo em sua cultura política, se assim é possível qualificá-los). Provêm de notáveis militantes: Caio Prado Jr. e Armênio Guedes, um quadro de larga militância e experiência, podendo ser consideradas como elaborações paralelas que, no entanto, perfilam um campo democrático e reformista na esquerda clássica. Como a teorização caiopradiana, que vem de bem longe, mas não teve livre circulação no seu partido, a formulação mais contemporânea e persistente no interior do PCB tampouco chegou a se concluir. Entretanto, esta foi a elaboração que iria comparecer ao debate eurocomunista ocorrido em meados dos anos 1970, época dos equacionamentos mais emblemáticos de Norberto Bobbio em seus debates sobre o socialismo e a democracia, acima referidos.
Temos, assim, uma teorização da revolução brasileira mais antiga, cujos primeiros sinais aparecem em textos de Caio Prado publicados em 1934 e 1935. Já delineada no seu livro de 1933 (“Evolução política do Brasil”), ela se sustentará na teoria do Brasil singular que se consolida nas obras que ele publica entre 1942 e os anos 1960. Também se pode dizer que esta primeira linha intelectual termina desenhando um programa de reestruturações da economia e da vida política nacional que seriam as grandes transformações da revolução brasileira. Marca a transformação econômica o objetivo de construir uma modernização no sentido de uma reestruturação de natureza produtiva de modo a afirmar a nacionalidade (incorporando ao trabalho moderno, superando a miserabilidade da maioria da população residente no mundo rural). Já a segunda transformação consistirá no adensamento da vida política nacional.
Registremos um dado a ser levado em conta nessa última reestruturação. Afora sua anotação no livro sobre sua viagem à URSS em 1934 (“URSS, um novo mundo”), na qual se refere às controvérsias entre dirigentes russos sobre o perigo da burocratização do jovem socialismo (Bukharin), citando a Robert Mitchels no livro famoso “Les parties politiques”, Caio Prado mantém invariável alinhamento ideológico com o socialismo soviético.
Não obstante, ele não mobiliza tal adesão como suporte da construção de sua teoria do Brasil (segundo seus críticos de época, ele violara o marxismo-leninismo, ao pôr sua ênfase na dimensão da circulação para explicar a formação social brasileira). Após publicar “Evolução política do Brasil”, suas três obras seguintes, das quatro que havia planejado – “Formação do Brasil contemporâneo”, de1942 (e sua continuação, que começa a escrever em 1943, “História econômica do Brasil”, publicada em1945),
“Diretrizes para uma política econômica brasileira” (1954) e “A revolução brasileira” (1966), as duas primeiras lastreiam suas divergências com o PCB, quando atuava, no tempo do Estado Novo, como quadro influente, principalmente nos anos 1944 e 1945. Acrescido o volume de 1954 (tempo do debate cepalino), essas obras convergem numa visão de Brasil que sustenta suas avaliações da política brasileira nos anos nacional-desenvolvimentistas.
No seu itinerário intelectual e publicista, Caio Prado contribui para o desenho de um marco programático, às vésperas dos levantes de 1935 lança a palavra de ordem da democratização do país e o que anteriormente chamamos de adensamento da política nacional, visando superar a esterilidade da política predominante e a falsa polarização entre interesses personalistas e aventureiros e a oposição udenista, que iriam levar o país a uma situação de “desequilíbrio catastrófico”, como se vê nas suas análises de conjuntura publicadas na Revista Brasiliense entre meados dos anos 1950 e o golpe de 1964.
Esse quadro de teorização para a ação prática (sobre a qual Caio Prado era cobrado por seus críticos, pois no pós-64 ele não valoriza a frente política antiditatorial) fica incompleto se não se menciona suas primeiras anotações sobre o “capitalismo burocrático” brasileiro não produtivista, como já se aludiu, ou mais precisamente sua referência ao Estado cartorial de que falava Hélio Jaguaribe no começo dos anos 1960, indicando-lhe o caminho para um estudo multidisciplinar, no qual, diz ele no Adendo a “A revolução brasileira”, de 1967, não conseguira se aprofundar.
Armênio Guedes possuía criativa intuição para analisar a política corrente e desenhar seus possíveis desdobramentos no curto e médio prazos. Na época da crise que abalou o PCB em consequência da denúncia do estalinismo feita por Kruchev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviético (PCUS) realizado em fevereiro de 1956, Armênio já guardava reserva em relação ao socialismo soviético (cf. o livro de Sandro Vaia “Armênio Guedes: sereno guerreiro da liberdade”, prefácio de Ferreira Gullar, ed. Bacarolla, S. Paulo, 2013). Ele participa da controvérsia sobre os efeitos do XX Congresso no PCB que irrompe na imprensa pecebista em outubro de 1956, se posicionando de maneira construtiva, isto é, atuando em um grupo nucleado por Giocondo Dias que buscava saída à crise do PCB com vistas a dar-lhe presença ativa na nova circunstância aberta com a eleição e posse de Juscelino Kubitschek (JK). Irá focalizar o obstáculo que o dogmatismo da velha mentalidade representava, obscurecendo a visão e o agir do PCB.
Nas três décadas e meia seguintes, no contexto da reativação da ação pecebista, ele iria desenvolver a tese da democratização do país, apontada bem lá atrás por Caio Prado, em 1935 e na sua militância entre 1944 e 1945, já referida anteriormente. Entretanto, por não ter uma teoria do Brasil, a Armênio Guedes resultara um tanto difícil na sua leitura das conjunturas mobilizar condicionantes histórico-estruturais que lhe delimitasse um marco programático consistente para movimentar os grandes atores sociopolíticos. Assim, sua ruptura com o passado vai ser uma ruptura com o dogmatismo na sua rígida relação com o catastrofismo revolucionário, não levando, no entanto, à discussão da época o seu distanciamento da URSS, embora vá permanecer na contramão do apoio do seu partido ao socialismo real.
O publicista Armênio Guedes emerge na cena pública dos debates sobre o XX do PCUS. Nesse contexto, ele escreve um primeiro artigo “Algumas questões da frente única no Brasil” (cf. revista Novos Temos, setembro de 1957). Ele fazia uma correlação crítico-política entre o dogmatismo e a ação partidária requerida pelo momento, mas subsumida à propaganda dos objetivos últimos, expressando o que chamava de “a estratégia de curto prazo”. A partir da análise da nova situação posta ao PCB, Armênio associava a política de frente única em torno de questões e problemas reais (que, depois, iria assumir conotação de uma frente permanente), procurando relacionar essa tática ao movimento democrático geral.
Nesse artigo ele mostra sua propensão a desenhar cenários que balizassem a ação de mais alento (por exemplo, neste texto de 1957 ele dizia: “Diante de nós bifurca-se o caminho: 1) existe a possibilidade de transformar o atual governo, alterando sua composição em favor das posições nacionalistas; 2) existe a possibilidade menos imediata, porém mais provável, de formar um governo desse tipo como resultante das eleições de 1958 e 1960.”
Nesse sentido da busca de pontos de referência para a frente única no contexto do governo de JK, irá publicar, três meses após a Declaração de Março, o artigo “Uma ação positiva das forças nacionalistas”, no qual também procura influenciar a atitude construtiva dos comunistas na sua convivência pluralista com correntes aliadas ou ainda por atrair à frente única da época, explicitando sua visão muito diversa do que, no primeiro artigo de 1957, chamava de “hegemonia por decreto”.
Ele passará a ser referência no desenvolvimento da nova política de 1958, tornando-se, como diria muito tempo depois um contemporâneo seu, a figura mais influente na evolução contemporânea do PCB.
Armênio teve papel relevante em Estudos Sociais, uma revista que o PCB publica logo após a Declaração de 1958. Segundo memorialistas do seu tempo, no imediato pós-64, suas ideias foram importantes tanto para elaborar a autocrítica em relação à compreensão e desempenho do PCB durante o governo Jango, como para formular a política de “resistência, isolamento e derrota” (assim nesta sequência) do regime de 1964, como logo iria estabelecer a Resolução do Comitê Central de maio de 1965. A influência das suas reflexões seguirá na resolução final do VI Congresso de 1967, especialmente no tópico chamado “A mudança do regime político”, tema insistente de Armênio naqueles primeiros anos do novo governo. Sobremaneira na Resolução de março de 1970, aprovada pelo Comitê Estadual do PCB da Guanabara, cujo texto, na verdade, é de sua autoria.
Nessa resolução, ele mobiliza o conceito de “processo de fascistização do regime”, com o qual analisa a evolução mais repressiva da ditadura após o Ato-5, de dezembro de 1968. Essa evolução era um processo ainda em curso, sendo então passível de ser barrado à medida que crescessem as oposições aos mais diversos males provocados pelas ações oficiais e as reações cada vez mais amplas ao próprio endurecimento do regime, que gerara crescente conflitos, reduzindo os apoios que havia angariado nos primeiros anos.
Diversamente dessa construção, aceita pela direção nacional em 1972, uma outra resolução do Comitê Central de 1975 iria definir o regime como uma ditadura fascista, o que levaria a modificar a natureza da resistência político-democrática, pondo ênfase na luta antimonopolista e na centralidade da classe operária na frente antiditatorial. Mesmo nas mais difíceis condições do governo Médici, Armênio se dizia otimista, chegando a desenhar alguns cenários nos quais poderia ser modificada aquela situação de 1970, e até mesmo ocorrer o fim do regime. Um deles, o mais próximo do que iria ocorrer muito anos depois, seria “a desagregação interna do poder, sob o impacto do movimento de massas e depois de crise sucessivas, forçando uma parte do governo a facilitar a abertura democrática”.
Ele terá papel importante na discussão havida na segunda metade dos anos 1970 entre membros da direção e militantes que estavam no exílio e escreviam na Voz Operária. Esses pecebistas começavam a discutir o aprofundamento da linha do VI Congresso de 1967 e a pensar na relação entre o avanço das oposições naqueles tempos e o objetivo último do socialismo no Brasil. (Ver os textos de Armênio na coletânea chamada “O marxismo político de Armênio Guedes”, editoras Contraponto (RJ)-FAP (Brasília), dezembro de 2012).
Ao conceder entrevistas ao Jornal do Brasil, às vésperas da anistia de 1979, Armênio Guedes torna públicas suas discordâncias, no plano da política, com Prestes, então em conflito aberto com o Comitê Central. Ele também inclui o tema da relação entre a democracia e o socialismo, não defendendo as teses sobre o desdobramento de uma redemocratização em uma transição processual ao socialismo. Não assumiria o que parecia ser uma versão modernizada do socialismo democrático -- a democracia de massas, conceito que emergira nos debates italianos dos anos 1970, após o golpe no Chile, anunciado pelo intelectual comunista Pietro Ingrao. Anos bem depois, em 2008, Armênio participa do Roda Vida. Nessa ocasião, ao responder a uma indagação desse programa televisivo sobre o caminho democrático dos comunistas italianos que ele tanto valorizava, chegou a dizer, ao modo de Bobbio, que em luta demorada, desde o fim fascismo na Itália, o que o PCI havia trilhado, de fato, era um caminho democrático para a democracia. (No meu texto “Reflexão autocrítica e pensamento político” registro os indícios da presença das ideias de Armênio nas resoluções e textos oficiais do PCB; ideias que conformariam pontos do que, a rigor, seria um pensamento político construído no campo pecebista, quase todas elas publicadas).
*Raimundo Santos é um dos organizadores da coletânea “As esquerdas e a democracia”, Brasília, Verbena Editora e Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
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