- O Globo
Não se trata apenas de uma novidade tecnológica que aprendemos a manejar. Ela é um novo jeito de agir no mundo
Por que nos assustamos tanto com o mundo de hoje, ruindo à nossa volta? Por que achamos que ele está ruindo? Ou não é com o mundo propriamente dito que nos assustamos, mas com um pedaço dele? O pedaço que chamamos de humanidade e a civilização que ela criou, ao longo do tempo, da qual tanto nos orgulhamos sempre. O que está ruindo é a humanidade e sua civilização?
A gente acorda todo dia com essas dúvidas. Ou, pelo menos, eu acordo todo dia com a angústia que elas promovem na minha mente. Ou no meu coração, sei lá. A dor não diz de onde vem, ela apenas se instala. E pronto.
Depois da Segunda Guerra Mundial, todo o mundo achou que os problemas mais graves da humanidade tinham se acabado, íamos ser felizes para sempre, em paz. No Brasil, esse tempo coincidiu com uma das taxas de crescimento mais altas do Ocidente. O que nossos eternos pessimistas profissionais nunca nos deixaram comemorar. Mesmo a Guerra Fria não esfriou a nossa esperança de ver o mundo mais justo e ajustado.
Tínhamos certeza de que a razão estava do nosso lado. Íamos ser um grande país, com um povo realizado, sorridente e feliz, cintura fina do drible e do samba. Qualquer um, de direta ou de esquerda, liberal ou conservador, qualquer um que se dedicasse a fazer esse tipo de previsão tinha que chegar a essa conclusão. Para nós, não importavam as certezas do iluminismo racionalista ou o delírio de nossos políticos barrocos. Só rindo, porque dava tudo na mesma. O Brasil era esperto e jeitoso, resolvia todas essas paradas e seria um paraíso em festa, com qualquer nome de regime que fosse.
Não foi um partido nacional que pirou, nem torcedores desse ou daquele campo político que perderam a cabeça. Estamos vivendo um momento de transformação radical no mundo (oh, lugar-comum inevitável!), como consequência de tudo o que a humanidade anda fazendo nele e com ele. Não se trata da volta do comunismo, nem do aquecimento do clima, nem da confluência de Marte com Plutão.
Trata-se, sobretudo, de novas formas de relacionamento humano, através de novos conhecimentos que estão mudando a humanidade no ritmo deles, numa velocidade nunca vista antes. Neste país e no mundo. Isso já aconteceu antes quando, por exemplo, Gutenberg inventou a imprensa, e parte da Europa se alfabetizou, acabando com o monopólio do conhecimento na mão de príncipes e de monges. Mas a imprensa era uma arte industrial, precisava de especialistas e de uma linha de produção.
Já a internet não precisa de linha nenhuma de produção. Ela está aí, a nosso alcance, toda manhã e pelo resto do dia, dando voz aos sábios e aos imbecis, num alcance e numa velocidade que dificultam ou até, às vezes, impedem o esclarecimento e a contrapartida. O contraditório.
A internet não é apenas uma novidade tecnológica que aprendemos a manejar. Ela é um novo jeito de agir no mundo e, portanto, uma nova cultura. Uma nova cultura universal que não é herdeira de nada que veio antes, que nós estamos inventando cada vez que entramos nas redes e vamos navegar.
O que talvez ainda não tenhamos percebido é que, sendo uma nova cultura, ela exige de nós um novo comportamento moral. Uma ética do mundo digital, sem a qual a internet será sempre o lugar da imposição, da mentira e da violência contra o outro, como uma democracia sem a luz de uma eleição que defina para onde vamos. Para onde queremos ir.
Não adianta escrever manifestos contra ela, demonizar seus games e heróis, restringir o acesso universal à internet. Não adianta, e não é justo. Essa atitude corresponde à queima de livros nos embates religiosos do passado que, muitas vezes, eram disfarces para embates políticos pelo poder . A internet é uma invenção de sábios que está a serviço do homem comum. Aquele que, se não fosse a existência dela, estaria no bar da esquina planejando o desastre na vida do vizinho.
O tratamento diferenciado que costumamos adotar entre terroristas negros ou muçulmanos e terroristas brancos supremacistas, atuais estrelas da internet, não é culpa do mundo digital. Para nosso homem comum, os primeiros são selvagens por natureza e formação, devem ser simplesmente eliminados. Os segundos, como o australiano de Christchurch, na Nova Zelândia, são vítimas de distúrbios psíquicos produzidos pela sociedade, pela família ou por coisa parecida. Tais distúrbios individuais explicam e podem até perdoar seu comportamento.
Quando me refiro a uma nova ética, para a nova cultura do mundo digital, penso na manifestação de Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, sobre o massacre de muçulmanos em Christchurch: “Muitos dos afetados por essa fuzilaria talvez sejam migrantes, talvez até estejam aqui como refugiados. Mas eles escolheram fazer da Nova Zelândia o seu lar, e aqui é o seu lar. Eles somos nós”. Em vez de proibir a internet para menores ou para os despreparados, temos que ensinar uma nova ética ao homem comum que vai usá-la. A ética do respeito e do amor ao Outro.
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