Causa
comoção observar o trabalho exasperado dos analistas políticos ao tentarem
encontrar, com base nos resultados das eleições municipais, o menor indício do
que o mundo nos reservará em 2022. Valendo-se da frieza dos números, é possível
aferir que os candidatos de Jair Bolsonaro se deram mal; que o PSL emergiu como
força política há dois anos, mas não conseguiu usar as eleições municipais para
ganhar capilaridade; que o PT se reduziu a um naco do que já foi, mesmo usando
R$ 200 milhões do fundo eleitoral; e que a esquerda se recupera do baque dos
últimos anos calcada em nomes mais jovens e descolados do lulismo sindical.
Para
além do que os números mostram, há a esperança de amplos setores da sociedade
de que o brasileiro tenha majoritariamente dado seu voto de confiança às forças
moderadas da política tradicional ao ir às urnas no domingo. Essa tese encontra
lastro no fato de partidos como PSD, DEM, MDB e PP terem abocanhado a maior
parte das prefeituras do país. Mas será mesmo que, na solidão da urna, o eleitor
fez uma seleção antiextremismo?
O voto municipal talvez seja o voto mais racional de um eleitor, em qualquer democracia do mundo. Estão em jogo os postos de saúde, as praças, o saneamento básico, o asfalto e a creche das crianças. Importam menos as ameaças do além, como o marxismo cultural e o comunismo, e mais a merenda da escola infantil. Os partidos e a coloração ideológica são colocados em segundo plano e prevalece o pragmatismo. Em Salvador, onde o petista Fernando Haddad teve 70% dos votos em 2018, ganhou em primeiro turno o candidato do DEM, Bruno Reis, numa clara aprovação à gestão municipal de ACM Neto, ainda que o PT tenha lançado uma candidata na cidade.
Já
o Executivo federal, por ser mais distante do eleitor comum, suscita suas
reflexões mais confusas. Sobre o governo recai a culpa por abstrações bastante
reais no cotidiano, como “a crise”, “o desemprego”, “a violência”, “a
corrupção”, ainda que a maioria não saiba detalhar com precisão quais foram os
erros de um mandatário nesses quesitos.
Levando-se
em conta essas duas premissas, o que se vê emergir das urnas é menos animador
que a ideia de o Brasil estar acordando do transe. Boa parte dos partidos
vitoriosos, apesar de moderados à direita, são aqueles que compõem a base de
apoio do governo, notadamente o PP e o Republicanos — este segundo atrelado à
Igreja Universal e que abriga dois dos filhos do presidente e deu guarida para
a candidatura de sua ex-mulher e de seu faz-tudo. DEM e PSD não podem ser
chamados de aliados, mas são sócios eventuais do bolsonarismo, com direito a
ministros na Esplanada.
É
certo que o discurso extremista de Bolsonaro foi ignorado pelo eleitor neste
pleito e isso já provoca mudanças em sua estratégia para 2022, como mostra a
reportagem de capa desta edição de ÉPOCA. Mas não é demais recordar que os
partidos bem-sucedidos são, em parte, aliados do governo que lançaram
candidaturas próprias e competitivas. Em alguns casos, buscaram se diferenciar
de Jair Bolsonaro. Em outros, nem isso. O pobre eleitor votou no que achou
melhor.
Em
2022, esses mesmos partidos também lançarão nomes próprios para a Presidência
ou fecharão uma grande aliança em torno de um candidato já comprovadamente
forte? Políticos profissionais, os integrantes dessas siglas são como o eleitor
do pleito municipal: pragmáticos. Só que, em vez de postos de saúde,
reverenciam quem se compromete a manter seu domínio sobre a Esplanada. A
capacidade de Jair Bolsonaro saciar essa sede nos acordos que fará para 2022
deverá ditar os rumos da suposta frente moderada que pode se formar para
confrontá-lo. E quando um lado é poderoso o suficiente para escolher o tamanho
de seus adversários, é prudente não subestimá-lo.
Uma
vacina contra as mentiras – Opinião | Revista Veja
A
euforia em torno dos bons resultados com imunizantes é aquilo mesmo que parece
ser: confiança no conhecimento, na racionalidade, e não no histrionismo
Depois
de quase um ano da eclosão do novo coronavírus em Wuhan, na China, com 56
milhões de casos em todo o mundo e 1,4 milhão de mortes, das quais 167 000 no Brasil, a
humanidade percebeu que o cuidado é o nome do jogo —
distanciamento social, uso de máscara e permanente higienização das mãos são
posturas compulsórias, que nos acompanharão por um bom tempo. Ainda que a
estabilização da pandemia tenha autorizado alguma flexibilização, com a
retomada parcial das atividades econômicas e do cotidiano, convém ficarmos
atentos ao que está ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos, com a aceleração
de registros e hospitais cheios. Atribui-se o recrudescimento a bares e
restaurantes lotados, a reuniões de jovens adultos — ao anseio, enfim, de poder
voltar a viver como antes. Mas talvez seja cedo e a cautela se impõe. Nos
últimos dias, também no Brasil houve reversão das curvas, atalho para
compreensível preocupação. Não é hora de baixar a guarda, e convém sempre
seguir as determinações das autoridades responsáveis, atreladas a estudos
epidemiológicos confiáveis. Agora, mais do que nunca, é hora de abandonar
posturas negacionistas e manipuladoras em relação à Covid-19, como a do
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (talvez um dos motivos de seu
fracasso na tentativa de reeleição), e, lamentavelmente, de Jair Bolsonaro.
Apenas a ciência será capaz de nos devolver a esperança. Ela, e somente ela,
tem as respostas.
Felizmente,
há excepcionais novidades nessa seara. Na quarta-feira 18, a farmacêutica
americana Pfizer, em parceria com a empresa de biotecnologia BioNTech, anunciou
excelentes resultados na produção de uma vacina, já na fase 3 e derradeira dos
testes: 95% de eficácia contra o vírus a partir do 28º dia de aplicação. Na
véspera, a chinesa CoronaVac divulgara que a substância tinha produzido
anticorpos em 97% dos voluntários analisados nas fases 1 e 2 — a CoronaVac é a
vacina que será fabricada no Brasil pelo Instituto Butantan, de São Paulo. As
duas notícias alvissareiras geraram ondas de entusiasmo, elevaram o valor das
ações das companhias nas bolsas globais e serviram de alento ao mau humor. A
euforia em torno dos bons resultados com imunizantes é aquilo mesmo que parece
ser: confiança no conhecimento, na racionalidade, e não no histrionismo. É o
que VEJA tem procurado desde as primeiras reportagens sobre a disseminação do
vírus: seguir a trilha do bom senso, da informação de qualidade, a serviço do
leitor. É o que fez a repórter Laryssa Borges, de 39 anos, se candidatar e ser
aceita como voluntária do laboratório Janssen-Cilag, braço da Johnson &
Johnson. Na terça-feira 17, numa clínica do Rio, Laryssa recebeu a dose única
de um imunizante — ou de um placebo, como manda a norma. “É uma sensação
diferente de tudo que já vivi”, diz. “Há a curiosidade profissional, claro, mas
ela se mistura às aflições e expectativas com que passamos a conviver desde que
a pandemia chegou. É um misto de orgulho, ansiedade e, confesso, um pouco de
medo do desconhecido.” O relato da jornalista (que também pode ser acompanhado
no blog Diário da
Vacina, no site de VEJA) e as respostas da ciência ao mais difícil
desafio sanitário de nosso tempo começam na página 58. Boa leitura.
Um clamor pelo combate ao racismo – Opinião | O Globo
Tragédia
de João Alberto deveria despertar o país da letargia para um exame de
consciência
O
assassinato brutal de João Alberto Silveira Freitas — negro, 40 anos, espancado
até a morte por dois seguranças brancos no chão de um supermercado de Porto
Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra — é tragédia recorrente no
Brasil. Negros são alvo preferencial da violência de seguranças e policiais. Só
entre casos recentes registrados em supermercados, um jovem negro foi sufocado
na Barra da Tijuca, outro torturado em São Paulo.
A
exemplo do americano George Floyd, garroteado e morto por um policial em
Minneapolis enquanto gritava não poder respirar, João Alberto se tornou um
mártir instantâneo na luta pela igualdade racial. As imagens que circularam
pelas redes sociais despertaram uma onda de manifestações contra o racismo,
algumas violentas. Todo vandalismo deve ser condenado — mais violência jamais é
uma resposta aceitável contra a violência. Mas os protestos não são gratuitos.
Tragédias como a de João Alberto deveriam despertar o país da letargia para um
exame de consciência.
Diante
do episódio, porém, o vice-presidente Hamilton Mourão declarou que “não existe
racismo no Brasil”. Ambos os autores do crime foram presos sob a acusação de
homicídio qualificado, mas a delegada responsável e a chefe da Polícia Civil
gaúcha informaram que ainda não era possível saber se a motivação do crime era
racista. Sim, é preciso mesmo investigar. Mas criar dúvidas sobre os motivos ou
discorrer sobre as características singulares das relações raciais no Brasil
são apenas espantalhos para evitar encarar o problema real que acomete a
sociedade brasileira há séculos.
Os
fatos são eloquentes. Aqueles que se identificam como “pretos” ou “pardos”
formam 56% da população brasileira, mas representam 64,4% dos 12,7 milhões de
desempregados, 63,8% dos que não têm instrução fundamental, 75,4% dos
analfabetos e 74,8% dos que vivem em pobreza extrema. Negros são apenas 34,6 %
dos que concluíram a faculdade, 29,9% dos que ocupam cargos de gerência e 11,9%
dos que exercem postos de comando nas empresas. Em contrapartida, são 66,7% dos
presos nas cadeias, 74,4% dos que morrem assassinados e 79,2% das vítimas de
intervenções policiais.
Quando
se usa a expressão “racismo estrutural”, é dessa realidade desigual, cruel e
persistente que se quer falar. É nesse contexto que se produzem crimes como o
assassinato de João Alberto. Os números mostram que, se ele fosse branco, a
probabilidade de ter sido vítima da barbárie seria incomensuravelmente menor.
Não há como separar a motivação individual dos dois seguranças que mataram João
Alberto do contexto de vigilância, perseguição, medo e violência a que os
negros são submetidos cotidianamente no Brasil.
Tão
escandalosa quanto a tragédia, portanto, é a atitude que mistura ignorância dos
fatos ao negacionismo sobre a realidade brasileira, também ele uma forma de
racismo disfarçado. É uma tentativa de varrer o problema para baixo do tapete,
de fingir que ele não existe — quando, na verdade, está evidente nos fatos. Ou
qual outro fator, além do racismo, seria responsável pela disparidade absurda
no modo como a sociedade trata negros e brancos?
Que
tal realidade ainda seja invisível a muitos, é outro escândalo. A lei 7.716
define racismo como “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Ora, o Rio Grande do Sul,
estado onde João Alberto foi assassinado, não informou nenhum crime do tipo no
ano passado nem no anterior, segundo o último Anuário do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública.
Em
comparação, Santa Catarina, estado vizinho, se destaca pela alta incidência
tanto de racismo quanto de injúrias raciais. No Brasil todo, houve apenas 1.265
ocorrências de racismo anotadas em 2019. “Se, pelos indicadores sociais e
trabalhistas, o racismo é visivelmente gigante, pelas lentes dos registros
criminais, ele parece minúsculo”, diz o anuário.
A
questão não é a falta de leis, mas a forma como o aparato de segurança e a
Justiça as encaram. Os avanços recentes e indiscutíveis dos negros nas
universidades, no mercado de trabalho e até nas eleições ficam obscurecidos a
cada nova tragédia como a de João Alberto, a cada novo crime racista que nem
sequer é registrado, cujos autores passam impunes.
É
preciso julgar, condenar e punir os criminosos e empresas responsáveis por atos
bárbaros como o assassinato de João Alberto. É preciso fazer valer as normas
que proíbem os vínculos de policiais com empresas de segurança. É preciso
entender que há algo de errado num país em que a polícia mata um negro a cada
duas horas, e três negros morrem assassinados para cada branco. É preciso
condenar e punir o racismo nos termos da lei. É preciso, enfim, mudar a
mentalidade de cada um. Só com um novo olhar e uma nova atitude diante do
preconceito mudaremos a realidade cruel do racismo no Brasil.
Não é hora para aventuras – Opinião | O Estado de S. Paulo
O
momento delicado que vive nossa metrópole demanda um prefeito com alguma
experiência e os pés no chão. Bruno Covas mostrou essas qualidades.
A eleição paulistana do próximo domingo terá, de um lado, o prefeito Bruno Covas, candidato à recondução, testado nas mais difíceis condições possíveis – uma pandemia e uma severa crise econômica –, e, de outro, Guilherme Boulos, um postulante ainda inexperiente na administração pública e que, ademais, representa um partido de esquerda que em seu programa propõe uma mudança imprudente de modelo econômico. Sendo assim, recomendamos o voto no prefeito Bruno Covas.
Não
se trata apenas de entender que o melhor para a cidade de São Paulo é a
continuidade da atual administração. O momento absolutamente delicado que vive
nossa metrópole, bem como o resto do País, demanda um prefeito com alguma experiência
e com os pés no chão.
O
tucano Bruno Covas mostrou essas qualidades, o que se reflete não somente nas
pesquisas de intenção de voto que o colocam na liderança, mas principalmente no
fato de que venceu em todas as regiões da cidade no primeiro turno. Além disso,
seu governo vem há meses sendo bem avaliado pelos moradores da cidade, o que já
não seria fácil em uma conjuntura normal, em se tratando da administração de
uma das maiores e mais complexas cidades do mundo; no contexto de uma pandemia,
ressalte-se, trata-se de uma façanha a ser devidamente reconhecida.
É
preciso igualmente reconhecer que o desafiante de Bruno Covas, Guilherme
Boulos, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), mostrou-se amadurecido.
Deixou de lado o figurino de agitador que marcou sua carreira como líder dos
sem-teto de São Paulo para agregar apoio a seu projeto político, o que foi
suficiente para se viabilizar como um candidato de esquerda competitivo numa
cidade que desde as eleições de 2016 repudia fortemente o PT e tudo o que o
lulopetismo representa.
Guilherme
Boulos certamente será, assim, um nome forte da esquerda em disputas futuras,
despontando como líder de uma reorganização dos partidos que até há pouco
orbitavam o PT e Lula da Silva. No final das contas, esse deve ser seu papel na
eleição do domingo que vem.
Coisa
bem diferente, contudo, é pretender governar a cidade de São Paulo – em que uma
persistente infestação de pernilongos é sem dúvida o menor dos problemas – sem
ter qualquer experiência política e administrativa. Sua juventude – tem apenas
38 anos – não está em questão, pois o próprio Bruno Covas tem somente 40 anos.
O problema é imaginar que São Paulo possa ser gerenciada somente na base do
entusiasmado ativismo dos movimentos sociais e, principalmente, sob influência
de um programa revolucionário.
A
não ser que resolva abjurar a defesa apaixonada que o PSOL faz da “superação da
ordem capitalista” e da construção de uma “sociedade radicalmente diferente”,
como se lê em seu programa oficial, é lícito imaginar que um eventual governo
de Guilherme Boulos se entregaria a aventuras estatistas e fiscalmente
irresponsáveis cujos resultados desastrosos já são bastante conhecidos. A
promessa de tarifa zero para estudantes no transporte público, que está na
plataforma do sr. Boulos, é só um aperitivo dessa forma inconsequente de ver o
mundo.
Em
condições corriqueiras, tal projeto político já seria temerário; diante da
crise monumental que vivemos, é tudo de que São Paulo não precisa. O atual
prefeito, por sua vez, vem demonstrando compromisso com a moderação e a
responsabilidade fiscal, de que uma significativa reforma administrativa
aprovada em julho é um bom exemplo, sem deixar de lado o grave problema da
profunda desigualdade social na cidade.
Além
disso, Bruno Covas, a despeito de seu drama pessoal – ele trata de um câncer –,
exibiu notável firmeza na condução da cidade diante da pandemia, em sintonia
com as recomendações de especialistas e alheio à gritaria do presidente Jair
Bolsonaro contra as medidas de prevenção. Na contabilidade de erros e acertos
Bruno Covas deixa um balanço razoavelmente positivo – mais uma razão pela qual
deve ser reconduzido ao cargo.
O Supremo e a pandemia – Opinião | O Estado de S. Paulo
O
STF não transigiu com agressões a direitos e garantias fundamentais
O Supremo Tribunal Federal (STF) lançou a publicação Case Law Compilation – Covid-19, que reúne a versão em língua inglesa de 18 decisões proferidas pela Corte relacionadas à pandemia do novo coronavírus. Tendo como objetivo promover o diálogo com lideranças científicas, jurídicas e políticas nacionais e internacionais, a compilação é também prova documental do bom trabalho realizado pelo Poder Judiciário no enfrentamento da pandemia. Em circunstâncias especialmente difíceis, o Supremo soube exercer seu papel de defesa da Constituição, contribuindo, dentro de suas competências, para uma atuação mais eficiente e técnica do poder público diante de uma crise tão complexa, com inúmeras dimensões e efeitos.
Os
assuntos tratados nas decisões são muito variados. Por exemplo, atuação
policial em favelas, proteção das comunidades indígenas, processo legislativo,
direitos trabalhistas, responsabilidade fiscal e direito à informação. Em
vários casos, são decisões monocráticas que depois foram confirmadas pelo
plenário da Corte.
Proferida
em maio, a decisão na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 672
teve especial relevância. O STF reconheceu que União, Estados e municípios têm
competência concorrente em relação à saúde pública, cabendo aos entes
federativos adotar, dentro de suas respectivas circunscrições, medidas
específicas para o enfrentamento da pandemia. Por força do princípio federativo
e das competências constitucionais, o Supremo determinou que a União deveria
respeitar as decisões de governadores e prefeitos referentes à quarentena, em
especial as regras de distanciamento social e as restrições de atividades
comerciais, pedagógicas e culturais.
Ao
contrário do que foi difundido por fake news, essa decisão revela o respeito do
STF pelas competências do presidente da República. O Supremo defendeu, por
exemplo, a competência do chefe do poder Executivo federal para definir os
serviços e atividades públicas essenciais (Adin 6.341), bem como para expedir
ordem de retirada em relação a diplomatas venezuelanos (HC 184.828). Neste
caso, o STF entendeu apenas que, em função da pandemia, não era razoável o
prazo de 48 horas para a saída do território nacional.
Outro
caso de validação de ato presidencial deu-se com os julgamentos da Adin 6.342 e
da Adin 6.363, nos quais o Supremo reconheceu a constitucionalidade da Medida
Provisória (MP) 936/2020, que autorizou a suspensão dos contratos de trabalho
ou a redução temporária da jornada de trabalho e de salário, mediante acordo,
individual ou coletivo, entre trabalhadores e empregadores.
Verifica-se,
no entanto, que o Supremo não transigiu com agressões a direitos e garantias
fundamentais. Por exemplo, na Adin 6.351, o STF restringiu os efeitos da MP
928/2020, restabelecendo plena vigência à Lei de Acesso à Informação. A
pandemia, assim entendeu o Supremo, não podia ser motivo para limitar o acesso
à informação, direito fundamental em um regime democrático. O STF também
limitou os efeitos da MP 966/2020, que relativizava a responsabilização dos
agentes públicos durante a pandemia.
Nas
decisões, vê-se o cuidado do Supremo para respeitar os limites de suas
atribuições. Em maio, por exemplo, ao julgar a Adin 6.359, o STF negou o pedido
para que, por ordem judicial, as eleições municipais fossem adiadas. Eventual
mudança das datas cabia ao Congresso, por meio de emenda constitucional (EC),
como de fato depois ocorreu. Em julho, o Legislativo aprovou a EC 107/2020,
adiando para novembro o primeiro e o segundo turnos.
Nas
decisões do STF relativas à pandemia, verifica-se também a proteção de um
aspecto fundamental do exercício do poder. Os atos da administração pública não
podem ser arbitrários, exigindo-se que sejam devidamente fundamentados. Por
exemplo, na Adin 6.421, o Supremo reafirmou que as autoridades, no desempenho
de suas ações durante a pandemia, deveriam observar critérios
técnico-científicos.
Perante
medidas populistas e irresponsáveis, o Supremo cumpriu o seu papel. Merece,
pois, o devido reconhecimento.
O risco de uma geração – Opinião | O Estado de S. Paulo
Milhões
de jovens podem abandonar os estudos por falta de amparo na pandemia
A crise desencadeada pela pandemia de covid-19 poderá aprofundar ainda mais a desigualdade econômica e social no País, uma de nossas mais renitentes mazelas. A necessidade de contribuir para a renda familiar, ou mesmo para garantir a própria subsistência, pode levar milhões de jovens de baixa renda a abandonar os estudos em busca de um emprego. No limite, o ano letivo perdido poderá subtrair R$ 1,5 trilhão da renda dos brasileiros nos próximos 50 anos, de acordo com uma projeção feita pelo economista Ricardo Paes de Barros, do Insper, um dos maiores especialistas em desigualdade no País.
Cada
ano de estudo perdido limita a oferta de oportunidades de trabalho para esses
jovens e, consequentemente, sua remuneração. Esse déficit educacional é um
desastre individual e coletivo. O jovem com baixa escolaridade terá de superar
barreiras praticamente intransponíveis para construir um futuro melhor para si
e sua família. Com excesso de mão de obra menos qualificada, a produtividade do
País, há muito tempo um dos entraves para o desenvolvimento, também tende a
cair cada vez mais, alimentando um círculo vicioso que mantém o Brasil aferrado
ao atraso.
O
estrago só não se consumará como a pior projeção feita por Paes de Barros
porque uma parte dos alunos conseguiu manter algum tipo de atividade
educacional por meio remoto em 2020; e porque aquele número desolador pode
servir como um despertar de consciência para as autoridades responsáveis por
planejar e executar políticas na área de Educação.
A
propósito, o que tem feito o Ministério da Educação (MEC)? Qual será o plano do
ministro Milton Ribeiro para coordenar em nível nacional com os secretários
estaduais e municipais de Educação uma volta às aulas segura? O Estado tenta
obter um posicionamento do MEC sobre esse tema fundamental para o País desde o
dia 23 de outubro, sem sucesso. No final de setembro, convém lembrar, o
ministro Ribeiro praticamente lavou as mãos ao afirmar que “acesso à internet e
volta às aulas não são temas da pasta” que está sob sua responsabilidade. O que
haveria de ser, então? Mais não disse.
Só
não se pode afirmar que “lavar as mãos” tenha sido a tônica da atuação do
governo do presidente Jair Bolsonaro no curso da pandemia porque não foram
poucas as vezes em que o próprio presidente sujou as suas para, pessoalmente,
sabotar ações corretas adotadas por governadores e prefeitos, amparadas pela
comunidade científica.
A
ironia desse descalabro é que Bolsonaro sempre se defendeu argumentando que
buscava “proteger a economia”, cuja debacle, em suas palavras, “mataria muito
mais do que o vírus”. Pois é o obscurantismo do presidente da República um dos
maiores riscos à vida e à atividade econômica nessa hora tão grave para o País.
Os
jovens fora da escola não poderão se beneficiar do que os economistas e especialistas
em educação chamam de “efeito-diploma”. Os alunos que concluem o ensino médio,
em geral, têm um incremento de R$ 212 na sua renda mensal, de acordo com uma
estimativa do economista Naércio Menezes Filho, do Centro de Políticas Públicas
do Insper. A cada ano de estudo até a conclusão do ensino médio, o incremento
na renda mensal do estudante é de R$ 70. O impacto benfazejo do chamado
“efeito-diploma” é ainda mais substancial no ensino superior, cuja conclusão é
capaz de dobrar a renda média do trabalhador.
A
inação do governo federal diante da emergência sanitária tem causado muitos
danos ao País. As mais de 165 mil vidas perdidas para a covid-19 são a face
mais dolorosa da negação da gravidade da doença e do desdém de Bolsonaro pelo
bem-estar dos brasileiros. Mas tantas outras vidas, de milhões de jovens,
também podem ficar aquém de suas potencialidades porque não lhes foram dadas as
condições para seguir estudando.
A
desarticulação das esferas de governo para formular e executar ações concretas
para mitigar os efeitos da pandemia sobre esses jovens não põe em risco apenas
o futuro de cada um deles. Atrela os dramas individuais ao destino da Nação.
Antes da vacina – Opinião | Folha de S. Paulo
Otimismo
com imunizante não isenta país de combater risco de piora da epidemia
Em
meados de setembro, surgiram indícios de que uma segunda onda da pandemia
começava na Europa. De lá para cá, a taxa de mortes diárias por Covid-19 saltou
de 0,5 por milhão de habitantes para quase 7 na União Europeia.
O doloroso
exemplo europeu e, agora, os indícios de repique do contágio no
Brasil suscitam o debate se aqui também haverá segunda onda. Não há, cabe dizer
de antemão, definição precisa de tal conceito; no caso brasileiro, nem mesmo
chegou a ser obtido o controle da epidemia; ademais, existem problemas na
contabilidade oficial.
Considerações
à parte, há indícios menos equívocos de que o número de mortes cresce em alguns
estados, tanto naqueles em que a taxa de mortes acumuladas é maior, como na
região Norte, como menor, a exemplo do Sul.
Evidência
preocupante, o número de internações
aumentou em diversas cidades, como em São Paulo.
Diante
dos dados, o país não pode se entregar à negligência contemplativa e teórica
—mesmo com as perspectivas mais otimistas para a chegada de
uma vacina.
As
autoridades não podem hesitar em caso de necessidade de soar o alerta geral.
Neste final de ano, cumpre enfatizar a necessidade do uso de máscaras e
reiterar que aglomerações são uma irresponsabilidade pessoal e social.
Os
governos devem ainda ponderar, a cada dia, se é preciso reestabelecer normas
obrigatórias de distanciamento e mesmo de fechamento de atividades que
propiciam o espalhamento do vírus. Pesquisa Datafolha revelou que cerca de dois
terços dos moradores de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife apoiam tais
possibilidades.
Quanto
a vacinas, há de fato esperanças cada vez mais fundamentadas. Entretanto os
dois imunizantes com eficácia já comprovada não estarão tão cedo à disposição
em quantidade relevante para o Brasil, que restringiu seus contratos de compra
antecipada aos produtos da Universidade de Oxford-Astra-Zeneca e da Sinovac.
Ainda
não foram concluídos os testes decisivos desses imunizantes. Se eles se
mostrarem eficazes, ainda terão de ser aprovados pelas autoridades,
distribuídos e aplicados em dezenas de milhões de pessoas antes que comecem a
fazer efeito no controle da doença.
Trata-se
de processo que levará até meados de 2021, ao menos. Até lá, o país terá de
combater o risco de piora da epidemia, com mais disciplina do que demonstra
hoje.
Contas do passado – Opinião | Folha de S. Paulo
Estados
tiram dinheiro da União para compensar lei de 1996, em sinal inquietante
Uma
prolongado impasse entre os entes da Federação vai chegando ao fim —espera-se,
ao menos— com a aprovação pelo Senado do projeto que
disciplina pagamentos da União aos estados e municípios como compensação por
alegadas perdas com a Lei Kandir,
de 1996. O desfecho não é alentador para a gestão das finanças públicas.
A
lei que criou a controvérsia isentou de ICMS —um tributo estadual repartido com
as prefeituras— as exportações de bens primários e semimanufaturados, a partir
da lógica correta de que não cabe tributar vendas ao exterior.
A
União se comprometeu a compensar as perdas de receita até 2002, mas os
montantes sempre foram objeto de disputa política e de sucessivas incertezas
legais.
Após
anos de idas, vindas e pagamentos obtidos à base de pressão no Congresso,
chegou-se nos governos estaduais à tese de que a União ainda teria a pagar
astronômicos R$ 549 bilhões, referentes a perdas entre 1996 e 2016.
A
conta era estapafúrdia, como se demonstrou em estudos técnicos apresentados ao
Congresso. Entretanto os governadores não saíram de mãos abanando da ofensiva.
O
texto agora aprovado pelo Senado, que deve passar com facilidade pela Câmara
dos Deputados, confirma um acordo entre União e homologado pelo Supremo
Tribunal Federal. Pelo entendimento, o governo federal desembolsará ao menos R$
58 bilhões até 2037.
Há
possibilidade de transferências adicionais de R$ 3,6 bilhões, caso seja
aprovada a proposta de emenda constitucional que busca mudar o pacto
federativo. Outros R$ 4 bilhões dependem de leilões de petróleo do pré-sal.
Prevalece,
mais uma vez, o tratamento paternalista aos governos regionais, que assim
ganham incentivos à gestão permissiva de seus Orçamentos. A rotina extrativista
do Congresso não parece compreender que a União também está sujeita a
limitações.
Na
pandemia, por exemplo, os parlamentares aprovaram repasses federais de R$ 60
bilhões, com contrapartidas pouco rigorosas. Os cofres federais ficam
especialmente vulneráveis quando a coordenação política do Executivo é frágil,
como se dá sob Jair Bolsonaro.
O
caso da Lei Kandir tampouco é bom prenúncio para as discussões da reforma
tributária, que envolverão, em dimensões bem maiores, perdas e ganhos dos entes
federativos. O risco de impasses longos e custosos se mostra elevado.
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