Como
o bolsonarismo se reorganizará depois do fracasso nas urnas de 2020
Natália
Portinari e Naira Trindade, de Brasília, e Gustavo Schmitt e Guilherme Caetano
| Revista Época
SÃO PAULO - O sábado 14, um dia antes do primeiro turno das eleições municipais, foi quando o presidente Jair Bolsonaro caiu em si. Apesar de ter passado a última semana fazendo lives em prol dos candidatos que apoiaria no dia seguinte, já sabia que o desfecho que se desenhava não era promissor. Suas principais apostas, Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro, amargavam números desanimadores, segundo as últimas pesquisas. Sem muita modéstia, atrelou o mau resultado dos aliados a sua própria ausência da corrida eleitoral — já que suas lives se tornaram frequentes apenas às vésperas do pleito. Mas reconheceu estar preocupado mesmo com outra coisa: o desempenho de seu filho Carlos Bolsonaro, candidato à reeleição para vereador no Rio de Janeiro.
Não
se tratava, obviamente, do medo de que o zero dois não se elegesse. Carlos
tinha sido o vereador com mais votos em 2016, e sua recondução ao cargo estava
assegurada. O que deixava o presidente tenso era a possibilidade de sua votação
ser abaixo do esperado. Bolsonaro atingiu em setembro o maior índice de
aprovação numa pesquisa do Ibope desde que assumiu — 40% —, mas o respaldo dos
eleitores ao filho serviria como um termômetro atualizado da popularidade do
pai no reduto eleitoral da família. Abertas as urnas, ficou claro que os
temores do presidente tinham, sim, fundamento. Carlos, que o acompanhou em
carro aberto no dia da posse, acabou saindo menor do que entrou na campanha
municipal. Em 2016, obteve 106 mil votos. Neste ano, não passou de 71 mil, uma
queda de 33%. E, de quebra, o filho perdeu o posto de vereador mais votado da
cidade para Tarcísio Motta, do PSOL.
Esse
foi o pior recado do pleito, mas não o único. Russomanno, que contou com o
apoio expresso do presidente, largou na frente nas pesquisas. No começo da
campanha, isso encheu de esperança o Palácio do Planalto, que anseia fincar
raízes no reduto eleitoral de seu adversário, João Doria, governador de São
Paulo. Na tarde nublada de 3 de outubro, na Zona Sul de São Paulo, após um
evento de campanha de Russomanno, Fabio Wajngarten, secretário executivo da
Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), era só otimismo. A bordo de
um jipe Mercedes preto, disse a ÉPOCA, sorridente: “Ele (Russomanno) já está eleito”.
E prosseguiu em sua análise: “De um lado, a esquerda está acabada por causa da
Lava Jato. De outro, tem o PSDB desgastado em São Paulo. Ninguém aguenta mais.
Foi assim em 2018”, apostou o secretário. Russomanno amargou o quarto lugar,
com apenas 560 mil votos (10,5% do total), enquanto o adversário do tucano
Bruno Covas no segundo turno será Guilherme Boulos, do PSOL — cenário que
configura dupla derrota para o presidente, que há dois anos venceu na capital
paulista com 60% dos votos.
Em todo o país, dos 44 candidatos que ganharam o aval do presidente, apenas nove se elegeram. Entre esses poucos sortudos não estão parentes de sobrenomes considerados ilustres no bolsonarismo, como o irmão da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). Ela tem 1 milhão de seguidores no Twitter e 2,2 milhões no Facebook. Ele atraiu apenas 12 mil votos, abaixo da linha de corte para conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. O pai de Zambelli, candidato a vice-prefeito em Mairiporã, no interior paulista, tampouco prosperou. Edson Salomão, líder do Movimento Conservador e aliado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o zero três, ficou de fora da Câmara de Vereadores de São Paulo. No Rio de Janeiro, Rogéria Bolsonaro, ex-mulher do presidente e mãe de seus três filhos mais velhos, não foi eleita, apesar do sobrenome e do empenho, principalmente de Carlos.
Antes
de dormir, no dia 15, Bolsonaro tentou minimizar a contagem de mortos e
feridos. Escreveu em sua conta no Twitter que sua “ajuda a alguns poucos
candidatos a prefeito resumiu-se a 4 lives num total de 3 horas”, que a
esquerda saiu derrotada e que a “onda conservadora chegou em 2018 para ficar”.
Dois dias depois, ao se reunir com alguns parlamentares empenhados na criação
de seu (ainda inexistente) partido, o Aliança pelo Brasil, compartilhou uma
análise mais realista sobre o pleito. Para o presidente, a direita foi
prejudicada em razão da pulverização partidária: “Quem saiu ganhando foi o
pessoal do (Luciano) Huck”,
vaticinou. A preocupação exposta naquela conversa não demorou a migrar para
dentro do grupo de WhatsApp do Aliança pelo Brasil, onde deputados, senadores,
ministros e integrantes do governo Bolsonaro debatem a criação do novo partido.
O
sentimento geral, segundo um membro do grupo relatou a ÉPOCA, foi de um “choque
de realidade” diante do que a cúpula da legenda reconhece ser uma derrota da
extrema-direita. Sem um partido que abarcasse toda a direita radical, seus
candidatos haviam ficado dispersos por várias siglas nas eleições municipais.
“A direita bolsonarista aprendeu uma lição nesta eleição, a de que existe um
eleitor de direita não necessariamente bolsonarista”, disse Alexandre Borges,
analista político e proveniente de antigos círculos de estudo de Olavo de
Carvalho. “É uma descoberta dura para o bolsonarismo, que se achava dono desse
campo político.”
Entre
os que aproveitaram o fraco desempenho dos aliados do Planalto nas urnas para
criticar o presidente, ninguém se compara aos que o ajudaram a se eleger em
2018 e depois romperam. “O grande derrotado dessas eleições é o bolsonarismo. O
presidente virou o Mick Jagger. Ele apoiava alguém e o cara morria (nas pesquisas) no dia
seguinte”, disse o Major Olimpio, senador do PSL por São Paulo, referindo-se à
fama de pé-frio do vocalista dos Rolling Stones. O senador defende um “expurgo”
de bolsonaristas do PSL e cita a deputada Zambelli como alvo. “A direita, na
verdade, por princípio, respeita o indivíduo e a individualidade. O
autoritarismo não convive com uma filosofia direitista. A lógica bolsonarista é
muito mais próxima de Stálin, que perseguiu seus principais apoiadores”, disse
a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), convidada para ser a vice na
chapa de Bolsonaro em 2018 e hoje uma feroz crítica. Mesmo dentro do bolsonarismo
não faltou virulência.
Parafraseando
a máxima do escritor russo Tolstói, quando vencem, todos os grupos políticos se
parecem, mas, quando perdem, cada um perde a sua maneira. Isso ficou evidente
após a eleição. Os apoiadores do presidente deram início a um processo de busca
de causas e explicações com características bem bolsonaristas. Não faltaram
dissimulações e uma facção apontando o dedo contra a outra. O presidente logo
engatou uma segunda marcha e passou a defender a interlocutores que o pleito
municipal não serve como previsão do que ocorrerá na eleição presidencial de
2022. Mas a tentativa de baixar a temperatura não evitou uma lavagem de roupa
suja e o fogo amigo.
Mateus
Colombo Mendes, diretor do Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais Digitais
da Secom, escreveu uma longa análise e desabafo em sua rede social. “Chega do
pensamento mágico de confiar apenas na imagem do presidente e de se ficar
sempre esperando que o presidente resolva tudo sozinho, enquanto o restante
fica resmungando nas redes, cada um na sua.” Filipe Martins, assessor especial
da Presidência, compartilhou a postagem, logo depois de fazer sua própria
reflexão, expondo indiretamente seu chefe. “Muitos se perguntam por que
candidatos apoiados por cabos eleitorais de peso foram derrotados. A resposta é
simples: perderam porque eleição municipal é base, é construção, não é
improviso. Não adianta chegar às vésperas da eleição e dar carteirada nem
tentar levar no grito”, escreveu.
O
guru de Martins e do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, aproveitou o momento de
fragilidade para endurecer as críticas aos alvos de sempre: os militares, que
ele acredita terem um projeto próprio de poder que não inclui necessariamente
Bolsonaro e o núcleo ideológico de seu governo. “O péssimo desempenho dos
bolsonaristas na eleição não tem mistério nenhum. Ludibriado pela conversa mole
de generais-melancias, o presidente confiou demais no sucesso inevitável da sua
liderança pessoal, sem perceber que ela não passava, precisamente, disso: uma
liderança pessoal sem respaldo militante e incapaz, por isso, de transmitir seu
prestígio a qualquer aliado.” “Melancia”, no vocabulário da direita extremada é
sinônimo de quem é vermelho (comunista) por dentro.
Para
a fúria ainda maior dos mais radicais da extrema-direita, Luiz Eduardo Ramos,
ministro da Secretaria de Governo e, aparentemente, um dos “melancias” na visão
de Carvalho, foi às redes comemorar o desempenho do centrão nas eleições. Ramos
disse que o PT foi mal e frisou que PSD, PP, DEM e MDB vão governar mais
prefeituras do que o partido do ex-presidente Lula. Para os olavistas, o
centrão é o problema, não a solução. Para a ala mais pragmática do governo, o
caminho após o fracasso eleitoral é mais, e não menos, centrão. A aposta é que,
nas eleições presidenciais de 2022, a base de sustentação da campanha de
Bolsonaro será formada por partidos tradicionais, os mesmos que o apoiam hoje
no Congresso.
Como
num roteiro de série de TV, os principais atores do bolsonarismo vivem um drama
que envolve passado e futuro. Muitos apoiadores não acreditam que Bolsonaro
conseguirá se firmar como um candidato competitivo à reeleição seguindo a
fórmula adotada em 2018, com foco quase que exclusivo nas redes sociais. Para
os defensores dessa tese, as eleições municipais deram algumas evidências
favoráveis ao mostrar que forças de diferentes pontos do espectro político
acordaram para a necessidade de ocupar espaços nas redes sociais. WhatsApp,
Facebook, Instagram e Twitter já não são uma raia exclusiva do bolsonarismo.
Isso aconteceu, por exemplo, na campanha para a prefeitura de São Paulo.
Trabalhar nas redes sociais foi o que fizeram tanto Guilherme Boulos como Arthur
do Val, o Mamãe Falei, ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL), que atraiu 10%
dos votos. “Nós trabalhamos bem com a rede. O PT apanhou e perdeu espaço para o
PSOL porque ainda está na lógica ‘meio acadêmico, sindicato e Igreja’. O PSOL
fez uma campanha virtual boa”, reconheceu o deputado federal Kim Kataguiri
(DEM-SP), um dos fundadores do MBL.
Enquanto
o campo virtual tem sido povoado por diferentes nuances partidárias, o mundo
real ainda carece de ser compreendido pelos políticos da nova direita advinda do
bolsonarismo — fraqueza que muitos enxergam como a principal ameaça à
continuidade de um projeto conservador no Brasil. Estrategistas políticos que
trabalharam em campanhas de candidatos ditos conservadores nestas eleições
relataram a ÉPOCA as dificuldades em convencer seus clientes da importância de
articulação política e dos atos de rua. “Eu disse a eles: ‘Saiam da internet’.
Mas eles não entendiam. Diziam que o Jair Bolsonaro tinha sido eleito pela
força das redes sociais e que em 2020 seria assim de novo. Diziam que não
precisavam de coligação porque o PSL não havia feito isso em 2018”, afirmou
Rodrigo Morais, que trabalhou no governo de transição de Bolsonaro e hoje tem
uma consultoria política.
No
entorno do presidente, é ruidoso o grupo que, ao contrário do general Ramos,
defende que o bolsonarismo precisa de um partido para chamar de seu. Daí as
tentativas, até agora infrutíferas, de criar o Aliança pelo Brasil. Bolsonaro
nunca foi dirigente partidário, tampouco seus filhos. A dinâmica maçante da
formação de uma sigla e seus diretórios é o que garante musculatura para que
candidatos disputem cargos a cada dois anos. Sem isso, não surpreende que o
presidente não tenha conseguido engajar eleitores para o pleito municipal. A
burocracia partidária e seus dissabores — incluindo divergências políticas —
foi o que ajudou a azedar a relação de Bolsonaro com sua legenda anterior, o
PSL. Mas quem apoia o presidente hoje diz que, quando ele tiver seu próprio
partido, tudo será diferente. “A eleição municipal deixa claro a desvantagem da
direita em relação à esquerda, já que falta estrutura partidária. Fora isso, a
esquerda tem ONGs, centro de estudo e de formação de pensamento. A direita
também tem de ter isso”, disse o empresário Otávio Fakhoury, aliado de primeira
hora de Bolsonaro e hoje investigado nos inquéritos das fake news e da promoção
de atos não democráticos.
Um
ano depois de sua concepção, o plano de fundar o Aliança não conseguiu reunir
nem 10% das 492 mil assinaturas necessárias para o registro da legenda junto ao
Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E as trocas de farpas entre bolsonaristas
durante todo o processo denota que a concordância ideológica não se converte em
harmonia na hora de dividir o poder. Integrantes do grupo rivalizam entre si
por protagonismo e sofrem com uma ausência de definição, da parte de Bolsonaro,
de quem é o verdadeiro responsável pelo Aliança. Quem vem assumindo as rédeas
do projeto é o advogado Luis Felipe Belmonte, que coordenou viagens e eventos
em prol da sigla nos últimos meses. Mas o futuro do Aliança é ainda incerto.
Parte da base de apoiadores nos estados se voltou contra os organizadores, como
Belmonte e os também advogados Karina Kufa e Admar Gonzaga. As brigas
dificultam ainda mais a criação da legenda e a coleta de assinaturas.
Oficialmente, porém, o grupo atribui à pandemia e às eleições municipais a
demora do registro dos apoiamentos no TSE.
Depois
dos desentendimentos passados com Luciano Bivar, presidente do PSL, o
presidente parece estar reticente diante da possibilidade de “entregar” seu
partido às mãos de alguém que não seja um de seus filhos. Bolsonaro também teme
que o gesto de alavancar o Aliança desagrade ao centrão, que hoje é a base de
seu governo, sobretudo diante da possibilidade, cada vez mais concreta, de que
ele se filie a um partido tradicional para concorrer em 2022, como o PP, o PL e
Republicanos, que é onde estão abrigados seus filhos Carlos e Flávio Bolsonaro.
Sem a onda antipolítica alimentada pela Operação Lava Jato e com poder de fogo
das redes sociais reduzido, o caminho para a direita bolsonarista a partir de
2021 é incerto porque requer diálogo — item escasso por aquelas bandas.
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