domingo, 22 de novembro de 2020

Bernardo Mello Franco - O negacionismo no poder

- O Globo

A Amazônia não está em chamas. O aquecimento global é uma ficção. O Brasil nunca teve ditadura. A Covid é só uma gripezinha. Não há mais corrupção no governo.

Na sexta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão deu uma nova contribuição à galeria de mentiras oficiais. “No Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar”, afirmou o general.

O negacionismo é um dos pilares do bolsonarismo. O capitão e seus aliados travam uma guerra permanente contra a verdade. Não se trata de discordar do politicamente correto. A ordem da extrema direita é desacreditar os fatos, a ciência e as instituições que fiscalizam o poder: imprensa, universidades, organizações não governamentais.

Mourão negou a existência do racismo no Dia da Consciência Negra, criado para lembrar o que figuras como ele tentam esconder. Neste ano, a data foi banhada de sangue. Na véspera do feriado, dois seguranças brancos espancaram um homem negro até a morte numa filial do Carrefour em Porto Alegre.

A negação do racismo é coerente com o histórico de declarações do general. Em agosto de 2018, ele culpou a miscigenação por uma suposta aversão dos brasileiros ao trabalho.

“Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano”, afirmou, numa palestra em Caxias do Sul.

Dois meses depois, Mourão fez uma piada racista ao elogiar a aparência do neto. “Meu neto é um cara bonito, viu ali? Branqueamento da raça”, disse, em Brasília.

O crime do Carrefour escancara o que hoje é chamado de racismo estrutural. João Alberto Silveira Freitas pode não ter sido morto por ser negro, mas provavelmente estaria vivo se fosse branco. Brasileiros pretos e pardos sabem o que é entrar numa loja e serem tratados como suspeitos em potencial. Estão mais expostos a revistas, humilhações e espancamentos.

A rotina de discriminação se reflete nas estatísticas da violência. Negros têm 2,7 vezes mais chances de serem assassinados, informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Representam 56% da população e 74% das vítimas de homicídio doloso no país. Oito entre dez brasileiros mortos pela polícia são pretos ou pardos. João Alberto foi espancado até a morte por um PM e um segurança particular.

O racismo sempre esteve entre nós, mas agora se instalou no gabinete presidencial. Bolsonaro já responsabilizou os negros pela escravidão, chamou a política de cotas de “coitadismo” e equiparou quilombolas a animais que têm o peso medido em arrobas. A Procuradoria-Geral da República o denunciou por crime de racismo, mas o Supremo arquivou o caso às vésperas da eleição de 2018.

Cada ofensa que permanece impune vira um novo incentivo à violência. No poder, o capitão entregou a Fundação Palmares a um provocador profissional, cuja única tarefa é atacar ativistas negros. O general Mourão não está na Vice-Presidência por acaso. Apesar das divergências eventuais, ele é um legítimo representante da turma.

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