O
governo tem de gastar, diz o seu líder, para ter seus projetos aprovados
Votos
custam dinheiro, muito dinheiro, no Congresso Nacional. Por isso o governo
precisa gastar para ampliar sua base e conseguir aprovação de projetos. Quem
diz isso é o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR). Diz
em público, e suas falas têm sido noticiadas. Na terça-feira ele acusou órgãos
de controle de causar um “apagão das canetas”, impedindo a liberação de verbas
para obras de interesse de parlamentares. A discussão continuou e na
quinta-feira já se falava, em Brasília, de negociações com o Tribunal de Contas
da União. A ideia era obter autorização para empenhar recursos, neste fim de
ano, para investimentos em 2021. Tudo foi dito abertamente, como se fosse
normal e saudável, numa democracia, abrir o cofre em troca de apoio parlamentar.
Nenhum
sinal de hipocrisia, até aí. A propósito, a hipocrisia, repetia-se em outros
tempos, lembrando La Rochefoucauld, é a “homenagem que o vício presta à
virtude”. Pressupõe-se no hipócrita, portanto, alguma noção de virtude, assim
como algum respeito aos costumes valorizados numa sociedade. A fala aberta, sem
subterfúgios, seria um sinal ainda mais certo da reverência àqueles valores.
Será possível, no entanto, sustentar esse pressuposto no caso dos protestos
contra o “apagão das canetas”? É duvidoso. Os envolvidos podem ter simplesmente
usado em público, sem autocensura, a linguagem própria do seu meio e dos seus
costumes.
O
apagão, nesse caso, foi luminoso. Tornou mais clara, até ensolarada, a natureza
da relação entre o Executivo chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro e a sua,
por assim dizer, “base de apoio”. Esta expressão é imprópria, embora usada no
dia a dia, e também isso pode ter ficado mais visível para os menos atentos.
Não se trata, de fato, de uma base, mas de um reservatório de votos, uma fonte
acessível de acordo com as condições e as cotações de cada momento.
Outras
práticas, diferentes da negociação de votos por verbas, são mais frequentes em
outras democracias, especialmente naquelas onde os partidos têm cores mais
definidas. Há acordos de conveniência, assim como conchavos e jogadas
eleitorais, mas é possível, em geral, associar a votação a princípios
partidários e ideológicos. Embora avariado, o Partido Republicano ainda é
reconhecível. Nem o presidente Donald Trump conseguiu desfigurá-lo totalmente e
convertê-lo em instrumento de seu populismo nacionalista, neofascista e,
sobretudo, personalista.
Sem
censura, a fala aberta revelou também, no episódio do apagão das canetas, a
inversão de noções fundamentais da vida política. Segundo o líder Ricardo
Barros, “o deputado quer uma obra”, isto é, quer “mostrar serviço a seus
eleitores”. O governo, portanto, deve entregar o benefício ao congressista,
para deixá-lo satisfeito. “Precisamos estabelecer a relação republicana que
precisa existir entre parlamentar e governo”, concluiu o líder, segundo relato
do Estadão.
Esse
é um conceito muito particular de republicanismo. “Relação republicana”
designa, em sentido próprio, algo muito diferente de um intercâmbio desse tipo,
isto é, da troca de um benefício político-eleitoral, pago com dinheiro do
Tesouro, por um voto a favor de um projeto.
A
noção de república, em sentido próprio, remete a uma ordem comum, sujeita a um
poder soberano (atributo do Estado) e caracterizada por leis conhecidas e
formuladas segundo processos legitimados. Essas leis estabelecem, entre outros
aspectos da vida coletiva, a distinção entre o público e o privado. Essa
distinção desaparece quando meios públicos são usados para fins particulares.
Meios
públicos podem ser dinheiro, empresas, instalações estatais, recursos humanos
de qualquer escalão ou ainda processos e órgãos típicos de Estado. Exemplo: se
um presidente, por hipótese, convocar dois altos funcionários para discutir
problemas legais de um de seus filhos, meios públicos serão usados para fins
privados. Esse uso é estranho às funções e aos poderes presidenciais e nada
tem, portanto, de republicano.
A
lei submete o Orçamento ao exame e à aprovação do Congresso. Congressistas
podem apresentar emendas de interesse de suas bases eleitorais. A lei regula as
condições de execução dessas emendas. Mas nenhuma lei confere caráter
republicano à negociação de vantagens privadas com base nesse ou em qualquer
outro uso de bens públicos.
Em
quase todo o mundo o exercício do governo envolve negociações, articulações e
trocas de vantagens políticas. A presença de mais de um partido no Ministério
pode ser um meio de fortalecer a ação do Executivo. Mas isso pressupõe,
normalmente, uma convergência possível entre orientações partidárias distintas
– quando cada partido merece esse nome.
Interesses particulares, em escala nacional, regional ou local, sempre serão afetados, de forma positiva ou negativa, por decisões políticas de alguma importância. Decisões de caráter republicano sempre serão tomadas, no entanto, com base em princípios gerais e levando em conta as funções e os limites do poder público. Fugir disso é privatizar o Estado.
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