De
início, Carrefour decretou o fechamento da unidade por um dia em respeito ao
morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago
"Quando
crimes se empilham, eles se tornam invisíveis", escreveu Bertolt Brecht às
vésperas da Segunda Guerra. O dramaturgo alemão referia-se a crimes do Terceiro
Reich que apenas pressentia. A extensão do horror só ficou explicitada quando
os campos de concentração foram escancarados. E fotografados. Naquele tempo, 75
anos atrás, o telefone celular ainda estava longe de fazer parte da mão humana.
Hoje tornou-se extensão do nosso existir, e a realidade parece só existir se
houver seu comprovante instantâneo, de preferência com imagem em movimento. Um
grande salto de engenhosidade, progresso tecnológico, totem de um futuro sem
fronteiras. Ficou faltando aprimorar o essencial: o próprio bípede humano,
ainda tão imperfeito e cego.
O
assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas na garagem de um
supermercado Carrefour gaúcho, à noite, tinha tudo para permanecer obscurecido.
Só deixou de depender de versões dissonantes, querelas circunstanciais ou
imprecisas, porque alguém gravou a cena esclarecendo a natureza do crime pelo
celular. Assistimos assim a um assassinato a sangue quente, primitivo, sem a
intermediação sequer de uma arma. O homem negro já subjugado foi espancado na
cabeça e rosto até lhe faltar vida. Sua morte teve por testemunha a esposa
impedida de socorrê-lo, uma penca de seguranças e funcionários do Carrefour,
além da plateia global que foi se inteirando do fato. No chão da garagem
respingada de sangue, sobrou de João Alberto um solitário chinelo de dedo.
Não
foi, portanto, um crime invisível. Ou será que foi? Na pergunta está embutido o
horror maior: apesar de saberem que estavam sendo filmados, os dois matadores
profissionais (um PM e um segurança, ambos brancos) não interromperam o ato.
“Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis”, repetiria Brecht sobre
o crime contra a raça negra que, de tanto sustentar a construção do Brasil, se
tornou invisível — mesmo quando visível.
O
Brasil acabou com a escravidão e adentrou a pós-abolição sem criar leis
claramente segregacionistas. Mas encontrou formas igualmente perversas de lidar
com os negros, contou em entrevista à BBC, anos atrás, a historiadora Luciana
Brito, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Segundo a professora, “a
educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito tornou
mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo
visível... Você entra numa loja e não é expulso, mas a vendedora a ignora. Quem
não a ignora é o segurança. Até o policial negro é treinado pelo Estado para
achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está
de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de
qualidade. Vira o ‘negro de
bem’ ”.
As
primeiras reações do Brasil oficial que despertou na sexta feira para a morte
do soldador João Alberto foram as esperadas. Era o Dia da Consciência Negra, e
o presidente da República estreou logo cedo elogiando Pelé. Silenciou sobre o
crime que, no final da tarde, levaria o Brasil real às ruas. A Brigada Militar
informou que o policial assassino é apenas “PM temporário” e que a corporação é
“uma instituição dedicada à proteção e à segurança de toda a sociedade”; para
Roberta Bertoldo, delegada do caso no 2º Departamento de Homicídios e de
Proteção à Pessoa (DHPP) de Porto Alegre, “não há indícios de racismo até o
momento”. Para o vice Hamilton Mourão, “no Brasil, não existe racismo”.
O
Carrefour se manifestou já de madrugada, até porque não poderia continuar
dormindo. Tem no currículo, em dobradinha com os serviços de segurança que
contrata, o espancamento de um deficiente físico e de outro cliente negro
suspeito de estar assaltando o próprio carro, além de controlar a ida ao
banheiro de funcionárias, e de ter mantido encoberto por guarda-sóis e
caixotes, durante quatro horas, o corpo de um promotor que morrera numa unidade
do Recife. Em nota, a empresa garantiu adotar “as medidas cabíveis para
responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso” e, de início, decretou
o fechamento da unidade de Porto Alegre por um dia em respeito ao morto. Não
parece ter entendido o tamanho do estrago.
O
repórter Matheus Prado, do CNN Brasil Business, ouviu dois analistas do
mercado, e nenhum deles acreditava que o caso teria impacto duradouro no preço
das ações do Carrefour. “Uma revolta a curto prazo, talvez”, resumiu um deles,
da Guide. Bom teste para o Brasil.
Caráter, ou a disposição de aceitar responsabilidade pela própria vida, é a fonte da autoestima, escreveu Joan Didion num de seus notáveis ensaios. Se o conceito for aplicado também a países e suas sociedades, fica a pergunta: o Brasil tem caráter?
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