Trata-se
de questão ética: como ser feliz num país racista
Muitos
brasileiros fazem a seguinte pergunta diante do espelho: "Por que o Brasil
não dá certo?". Geralmente, quem faz a indagação não tem muito do que
reclamar. Sua vida é melhor aqui, mais fácil, mais farta, com maior acesso ao
que o país oferece de melhor a seus cidadãos, do que seria se ele vivesse em
outra economia de renda média ou mesmo numa nação rica, ainda que sendo
proporcionalmente detentor de renda equivalente. A péssima distribuição de renda
explica parte dessa história.
Evidentemente,
aqui, todos, pobres e ricos, reclamam da extrema violência que ceifa anualmente
a vida de cerca de 60 mil pessoas - em 2018 (último dado disponível), foram
57.956, mas, como há algo de podre no reino das estatísticas dos Estados, visto
que nos anos recentes houve aumento exponencial de mortes violentas sem causa
determinada, o número de mortos está subestimado.
O
contingente de pessoas que sai de casa num determinado dia para morrer parece
uma espécie de maldição estatística, uma vez que, com poucas variações, se
repete ano a ano. Maldição? Praga? Predestinação diabólica de um povo condenado
à miséria e ao sofrimento? Não creia nisso. Não há nada intangível nas
estatísticas da violência no país chamado Brasil.
Os
dados oficiais da violência mostram que 75,7% dos brasileiros assassinados há
dois anos eram negros - entre as mulheres, o percentual é 68%, informa o Atlas
da Violência 2020, elaborado pelo Ipea com base nas ocorrências registradas
pelas secretarias estaduais de segurança pública em 2018. Mais da metade
(29.064) eram jovens com idade entre 15 a 29 anos.
Em 2018, uma mulher foi assassinada neste país a cada duas horas, somando 4.519 vítimas. Olhemos mais de perto os números e num período maior de tempo, para tentar achar uma pista que aponte alguma tendência desta terrível mazela nacional: entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa de mulheres negras assassinadas aumentou 12,4%.
O
resumo da violência neste imenso território é o seguinte: os homicídios
vitimizam, principalmente, homens (91,8% dos casos), jovens (53,5%), negros
(75,7% dos casos), pessoas de baixa escolaridade (74,3% dos homens vitimados
possuem apenas sete anos de estudo) e solteiros (80,4% do total de homens
assassinados). O principal instrumento de agressão é a arma de fogo, usada em
77,1% dos casos de morte de homens e em 53,7%, no caso de mulheres.
Convenhamos:
os números são de uma racionalidade espantosa, é desnecessário desenhar: a
sociedade brasileira assiste, indiferente, a um verdadeiro genocídio de jovens,
em sua maioria absoluta, negros e pobres, o que também se aplica às mulheres
negras. Será que é difícil saber qual é a verdadeira monstruosidade que explica
esta vilania que nos caracteriza como sociedade e que, em vez de diminuir, só
tem aumentado?
Como
o tema não é novo neste espaço, um leitor escreveu para dizer que, nesta guerra
civil interminável, morrem mais negros porque estes são a maioria entre os
pobres. Trata-se da tese de que quase 42 mil negros foram assassinados neste
canto do mundo em 2018 não porque eram negros, mas porque eram pobres. Trata-se
de uma falsa questão.
Na
música "Haiti", Caetano Velloso e Gilberto Gil escrevem o seguinte, a
respeito do massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, quando
111 presidiários foram mortos e 37 ficaram feridos após ação da polícia - como
não se tratava de um presídio, a maioria dos mortos ainda não havia sido
julgada ou tido a sua sentença definida pela Justiça:
"
(...) Cento e onze presos indefesos
Mas
presos são quase todos pretos
Ou quase
pretos
Ou quase
brancos, quase pretos de tão pobres
E pobres
são como podres
E todos
sabem como se tratam os pretos (...)"
O
poema afiado como navalha de barbeiro nos lembra que, nestes tristes trópicos,
é tão ruim ser negro que, se você é pobre, muito pobre, é "quase
preto".
Senhores,
56% das pessoas que habitam a quarta maior extensão de terra contínua do
planeta se declararam pardos ou negros no último censo demográfico conduzido
pelo IBGE. A maioria de nós, portanto, é negra. Nosso problema, acima de
qualquer outro, é o racismo secular, estrutural, vicejado pela minoria branca,
remediada, rica e mais educada, contra a maioria.
O
Brasil não dá certo por essa razão. Como poderia suceder? A escravidão nos
acompanha desde a chegada dos europeus. Quando a abolimos por meio de uma lei,
quase 400 anos depois, não a abolimos de fato porque o mundo quase acabou - os
barões do café exigiram compensação financeira do Estado pela perda de
"propriedade", "demitiram" os negros, derrubaram a
monarquia, implantaram uma República condominial (sem povo e com rodízio no
comando entre dois dos três Estados mais ricos), forçaram o governo a importar
mão de obra do Japão e de nações europeias para substituir a mão de obra
escrava, impediram os negros de ter acesso a escolas...
Por
que ainda há entre nós quem seja contrário a políticas de reparação à população
negra, posta em desvantagem por séculos na história deste país? Nossa sociedade
não é racista, ela é o próprio racismo. Este faz parte da paisagem nacional
tanto quanto o samba, o futebol (onde, aliás, manifestações racistas são
crescentes), o carnaval, mas, enquanto esses símbolos são projetados como parte
de nossa identidade cultural, a discriminação aos negros é negada de forma
vergonhosa e institucional.
Não é mais possível (nunca foi) olhar a realidade política, econômica, social, cultural, sem as lentes que corrijam a pior das miopias: a de que o racismo é apenas mais um problema a ser enfrentado, uma obrigação cidadã, uma determinação constitucional. Nada disso. Não é mais possível admirar nada neste país de 210 milhões de habitantes sem pensar, a cada segundo, que vivemos numa sociedade profundamente escravagista, onde a maioria é discriminada pela minoria. Trata-se de uma questão ética: como viver, como aceitar viver numa sociedade assim?
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