quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Aylê-Salassié F. Quintão* - ¿Por qué no te callas?

É Natal!  Estão todos ocupados. No Brasil, políticos e governantes concentram-se em uma insólita disputa para a eleição do próximo presidente da Câmara dos Deputados. Isolados, mas conectados, os cidadãos discutem ferozmente a validade das vacinas da pandemia.  Como se todos, coniventemente silenciosos, dissessem, “não estamos nem aí”: para os venezuelanos, para os haitianos, para os bolivianos, para  os hondurenhos imigrados para o Brasil.

Sem emprego, nem oportunidades de trabalho disponíveis, esses imigrantes continuam, em grande número, a   viver por aqui em abrigos, nas periferias e nas ruas ignorados e, praticamente, abandonados com suas crianças, sobrevivendo de esmolas.  São ex-professores, professoras, comerciantes, agricultores, engenheiros, enfermeiras, dentistas e até médicos refugiados, fugindo de uma suposta ação revolucionária capitaneada, na Venezuela, por um grupo político instalado no Poder.

“Socorro! Sou venezuelana. Tenho um filho menor, e não temos o que comer” : é a mensagem, escrita a carvão em uma folha de papelão, por uma jovem dos seus 28 a 30 anos, enfermeira, pedindo ajuda no sinal de trânsito. Sob uma chuva fina e intermitente, disputa, perigosamente, em frente a um shopping, os espaços entre os carros ali parados.

O quadro em Brasília repete-se em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Vitória, etc.. Os venezuelanos foram espalhados pelas grandes cidades do País, e todos estão órfãos, precisando do apoio das populações locais. Continuam concentrados em Pacaraima, cidade fronteiriça, e em Boa Vista. Mais de 30 mil venezuelanos passaram a residir em Roraima desde o início da fuga em massa, em 2016. Muitos não conseguiram sair do estado. Outro tanto, sem abrigos, vive ao relento.

Continuam a ser discriminados, xingados e mal recebidos pelas sociedades locais, incomodadas com suas presença em praças públicas, como vendedores ambulantes ou pedindo esmolas. Há muitos indígenas entre eles. Já se chegou a relacionar, injuriosamente, o aumento de índices de criminalidade com a presença dos venezuelanos. A maioria tenta sobreviver produzindo ou vendendo artesanato, mas quem vai comprar? Roraima é o estado menos populoso do País (605 mil hab) com a renda individual das mais baixas também (R$ 1.204,00). Na imaginação preconceituosa do brasileiro, a palavra venezuelano virou sinônimo de imigrante: “Esses venezuelanos que andam por aí!”

Em 2017, aprovou-se a Lei nº 13.445, dispondo sobre a entrada e estada de imigrantes no País. Ampliou-se a política de vistos humanitários que se aplicava apenas para sírios e haitianos. Os venezuelanos passaram a ter direito a documentos brasileiros, número de seguridade social, passaporte e carteira de trabalho. Mas, a regulamentação (Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017) criou outras dificuldades e limitações, sobretudo a pessoas com histórico de associação com organizações criminosas ou tráfico de drogas, cujas interpretações terminam por afetar quem nada tem a ver com isso. Substituiu-se, contudo, o tal Estatuto do Estrangeiro, que exigia contrato de trabalho para ser aceito no Brasil.

As autoridades da fronteira tem dificuldade de reconhecer a autenticidade de alguns dos documentos apresentados e para decidir sobre as categorias indígenas que, em geral, não possuem qualquer tipo de identificação formal, dificultando o cadastramento até para os serviços de saúde.

O Brasil não é um país relevante em termos de fluxos migratórios. As estimativas mais conhecidas apontam 1,5 milhão de migrantes e refugiados no país. Aproximadamente, 84% das pessoas nessa condição são originárias de países pobres e procuram, em geral, países em desenvolvimento.  Cerca de 2 milhões de migrantes vão para a Turquia, Jordânia e Irã. A migração para a Europa e os EUA envolvem outras conotações.

Os brasileiros precisam entender que não há propriamente uma invasão da vida cotidiana pelos venezuelanos, nem ameaça à segurança de ninguém. Trata-se de uma questão de solidariedade identitária de raiz continental e, acima de tudo, humanitária, que requer um regulamento decente capaz de facilitar o desenho de políticas migratórias, em particular intrarregional.

É Natal. A pandemia ignora as festas. Está devorando milhares de vidas. O auxílio do governo, próximo de ser suspenso, é a única renda de 36% das famílias beneficiadas. Mas, tem-se aí pela frente um déficit fiscal enorme no orçamento público, e milhares de venezuelanos vagando como “mortos vivos” pelas ruas, mendigando sobras de alimentos. Brasília está cheia deles. Impossível ignorar isso.

Enfim, é o que o capitão coronel Hugo Chávez legou aos vizinhos e para os próprios venezuelanos, temerosos da sua incontida verborragia, essa mesma praticada, sem qualquer demonstração de culpa, pelo sucessor Nicolás Maduro. A revolução de Chávez é fruto de uma retórica vaidosa, fundada no pensamento aristocrático de Bolívar que ele, Chávez, um rústico militar de carreira, pretensiosamente queria transformar, a seu modo, em uma teoria revolucionária. Para isso, formou milícias por todo o país, cooptou as forças armadas, destruindo a nação venezuelana, e chegando perto também do Mercosul e de outros organismos de integração regional. Quase destrói a América Latina toda. Apesar disso, o rei Juan Carlos, da Espanha, não tinha virtudes suficientes para interromper a fala de Chávez.  Mas os que estão no Brasil precisam, neste momento, no mínimo, de uma palavra de estímulo ou de conforto. É Natal.

*Aylê-Salassié F. Quintão, jornalista e professor

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