quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Raul Jungmann* - Militares e elites civis – liderança e responsabilidade

- Capital Político

Aos 18 dias de novembro de 2016, o Presidente da República, Michel Temer, enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que nós, à época, tínhamos coordenado na qualidade de Ministro da Defesa que éramos. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o Presidente do Senado e do Congresso, Senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção.

Considerando que seu governo estava praticamente findo, o Presidente Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos.

O Presidente Jair Messias Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior (e não de Estado, o que eles verdadeiramente são), e não os sancionou. Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados.

Nós fomos o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica. Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, decidir sobre as diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal.

Ao negociar as emendas à proposta original com o Ministro Nélson Jobim, imaginávamos o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto à nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço do diálogo democrático. Em vão.

Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública. Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota.

Já sua votação, nas duas casas, foi simbólica e não nominal, sem debates ou pronunciamento dos líderes. O “histórico diálogo” e o consequente “avanço democrático” fracassaram melancolicamente…Por quê? São três os motivos principais.


As elites civis e o poder político do país não vislumbram quaisquer ameaças no horizonte a nos desafiar. E, vale lembrar, o nosso último conflito interestatal data de 150 anos, a Guerra do Paraguai, se descontarmos nossa participação nas I e II guerras mundiais. Secundariamente, defesa e as Forças Armadas não dão retorno político-eleitoral, sendo que as Forças, instituições de Estado, são impessoais, e seu efetivo é infenso a indicações políticas.

Por fim, as intervenções militares ao longo da nossa história, sendo a última em 1964, e o fato que parte dos quadros dirigentes da política fizeram oposição ao regime militar, não estimulam pontes e diálogos. Em consequência, hoje existe um distanciamento entre poder político, elites civis e Forças Armadas, que nos leva a uma dupla disfunção.

De um lado, o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, não a levando a sério. De outro, os militares, cuja “raison d’être” é justamente a defesa nacional, diante do alheamento do poder político sobre a nossa soberania, integridade e independência, passam a assumir a tutela da existência da nação.

A segunda das consequências é que a defesa e as Forças Armadas necessitam da liderança civil por bons motivos. Um, que cabe privativamente aos representantes políticos da nação, definir qual defesa necessitamos, seu rumo, estrutura e organização, em face de nossos objetivos nacionais e projeto de desenvolvimento.

A segunda é que, sem que líderes civis em diálogo com os militares proponham mudanças, as Forças Armadas, como toda grande corporação, tendem à manutenção do status quo. Exemplo disso é o Ministério da Defesa. Sua elaboração levou cinco anos para ser concluída, sendo iniciada no primeiro e finda no segundo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

À época, havia forte resistência no meio militar à sua criação. Dentre outros motivos, porque os quatro ministérios militares existente passariam a se tornar comandos militares das Forças, sob a direção superior de um único ministro, que seria um civil.

Mas a criação do Ministério da Defesa é uma exigência da guerra moderna, onde as forças singulares devem estar sob um comando único e superior a elas, como também em razão da complexidade, logística e dimensões adquiridas pelos conflitos bélicos, sobretudo após as duas guerras mundiais. Tanto é fato que a maioria dos países desenvolvidos instituíram ministérios da defesa há décadas, inclusive os sul-americanos, a exemplo da Argentina e Chile.  

Cabe notar o que afirmamos: não fora a persistente liderança do poder político, a criação do Ministério da Defesa, uma necessidade militar, ressalve-se, não teria se tornado realidade.

Cabe também recordar um outro exemplo. Declarada nossa independência em 1822, as elites Imperiais viram-se a braços com questões estratégicas para a constituição e o futuro do Estado nacional. Elas eram: a manutenção da unidade e integridade do território, a definição das fronteiras e o impedimento que Argentina, Bolívia e Paraguai viessem a formar um polo de poder ao sul, que nos contrastasse e fizesse sombra.

Em todas essas complexas tarefas, a elite imperial saiu-se a contento e, em todas elas, fez uso das nossas Forças Armadas.  Isto porque, além de ter um projeto de país a construir, elas tinham clareza quanto ao papel e orientação dar aos militares – algo que nossas elites atuais não possuem.

Findo o regime militar, as Forças Armadas recolheram-se aos quartéis e, durante um quarto de século, viveram num vazio estratégico, sem que lhes fossem atribuídas competências e rumos na nossa renascente democracia e num projeto nacional de desenvolvimento, o que só começa a mudar em 2008 com a Primeira Estratégia Nacional de Defesa.

Já o vazio de interlocução e de diálogo persiste. Na academia, mídia, sociedade, empresariado e no Congresso, raros são os que conhecem o tema defesa, dele entendem e têm diálogo com as Forças e militares. Os partidos políticos lhes dedicam rarefeitas e precárias linhas “de ofício”, meramente declaratórias. Não possuem especialistas, tão pouco unidades de estudo e proposição de políticas públicas.

Nas eleições e debates nacionais, a defesa e as Forças Armadas primam pela ausência. Democratas de vários matizes delas guardam distância, com também raríssimas exceções.  

Dialogar e liderar as nossas Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil, é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana.  Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as Forças Armadas, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão nacional-democrática, incontornável e premente.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.

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