Os
órfãos de Thatcher e Reagan se preocupam com a dívida pública, pelo aumento das
despesas do Estado
Em
“Annie Hall”, Woody Allen relata uma antiga piada sobre duas senhoras em um
resort. Uma delas diz: “Rapaz, a comida nesse lugar é terrível”. A outra
responde: “Sim, eu sei! E em porções tão pequenas”. “É essencialmente assim meu
sentimento em relação à vida - repleta de solidão, miséria, sofrimento,
infelicidade e acaba rápido demais”, afirma o cineasta.
Nesta
existência exposta a todo tipo de contingência, é quase natural que a tomada de
consciência incline o ser humano à fantástica ideia de controlar os golpes do
destino. Mas o tempo, que dá origem e rege as coisas deste mundo, é um cara
gozador e adora brincadeira. Quis a ironia condenar a ação humana a
frequentemente produzir o contrário das suas intenções.
Dizem
os algoritmos dos aplicativos de música que, desde o anúncio do Plano Biden, a
mais ouvida entre os analistas que dominaram a opinião econômica publicada nas
últimas décadas é “Meu mundo caiu”, na voz da saudosa e maravilhosa Maysa. Boa
parte ainda não foi capaz de superar o trauma da ruptura. Em estado de negação,
repetem “não é nada disso que você está pensando” ou “nós somos diferentes,
isso tudo não se aplica ao nosso relacionamento”.
Oferecemos aos colegas o ombro de quem também já foi traído pelo destino. A arquitetura financeira dos anos dourados do pós-guerra engendrou o mundo que pariu Reagan e Thatcher, da mesma forma que estes últimos produziram o ambiente para a ascensão da China, a crise de 2008 e o Plano Biden, golpe final às políticas econômicas adotadas desde a década de 1980.
As
ideias que repousam no conforto da conclusão de que o inferno são os outros
carecem da percepção do movimento que integra os contrários. Não enxergam os
desdobramentos históricos onde as contradições oferecem as condições da
emergência do novo. O novo irrompe nos rega-bofes do pensamento estático e
binário dos admiradores do homo oeconomicus como o fantasma de Banquo
assombrava os banquetes do egóico Macbeth.
Os
pretendentes que disputam a economia atribuem um ao outro as causas pela
infidelidade do destino. Quem passou os últimos anos se opondo ao reagonomics,
resgatando a história para demonstrar que a agenda proposta já deu errado no
passado, agora escuta o mesmo dos críticos do bidenomics. A dicotomia “Certo ou
Errado” é adequada para programas de auditório, mas não serve para perscrutar
as complexidades do conhecimento histórico-social.
O
diálogo pressupõe a ausência de algum tipo de sociopatia que se contraponha aos
objetivos do programa recém anunciado. Garantir renda a quem tem sua
subsistência ameaçada por questões econômicas, ampliar o acesso à educação e
cuidados com a saúde, infraestrutura e empregos para edificar uma economia
social e ambientalmente mais amigável, são propósitos que candidamente
acreditamos estar no horizonte de todas as posições consideráveis, apresentadas
no debate democrático. Como caminhar nesta direção é o cerne da questão.
Os
órfãos de Thatcher e Reagan reclamam preocupação com a dívida pública, em
função do aumento das despesas do Estado. Os três programas anunciados pela
nova gestão americana somam US$ 6 trilhões, denunciados por editoriais como
irresponsabilidade de um homem de “78 anos que não arcará com as consequências
de sua prodigalidade. Passada a emergência, a conta a pagar em uma economia
enfraquecida”.
Segundo
dados do FMI, nas três décadas de 1951 a 1981 os gastos públicos nos EUA e
Reino Unido aumentaram sua participação em 20% do PIB. Nos trinta anos seguintes,
que vão até o fim da primeira década deste século, a participação das despesas
públicas em relação ao PIB caiu 8% no caso Reino Unido e apresentou crescimento
menor que o período anterior nos EUA, de 7%.
No
início dos anos 1950, a participação da dívida em relação ao PIB era
equivalente a 200% no Reino Unido e a 75% nos EUA. No começo da década de 1980
a proporção cai para aproximadamente 45% e 40% para Reino Unido e EUA
respectivamente, voltando a crescer para mais de 81% no Reino Unido e quase
100% nos EUA nos 30 anos seguintes.
A
dinâmica contraintuitiva revela que a razão entre gasto público, dívida e PIB
não apresenta o comportamento almejado pelos arquitetos da estática ptolomaica.
“ E pur si muove” murmurou Galileu diante das crueldades do Cardeal Belarmino.
Quando tudo se move, relevantes passam a ser as velocidades relativas.
A
interpretação indica que se o PIB (denominador) cresce mais que os gastos ou a
dívida pública (numeradores), dimensões integradas à primeira, a razão entre
elas pode diminuir. Deduzir uma determinação direta e linear entre gasto
público, crescimento e redução da dívida proporcionalmente ao PIB, seria
retornar ao mesmo equívoco, mas chegando pelo caminho inverso.
As
hipergeneralizações ridículas, excessivamente simples, a partir de
categorizações reducionistas e binárias, compartimentam o bem e o mal em
representações icônicas. Uma espécie de autossabotagem do pensamento oferecido
pelo desejo de controle, vício inerente à razão instrumental.
O
debate precisa ser deslocado das oposições binárias entre público e privado,
mais ou menos Estado, para a dialógica democrática que questiona a qualidade
das políticas públicas. Quais são as despesas e tributos que fazem sentido não
apenas para o crescimento do PIB, mas para colaborar com o desenvolvimento da
sociedade desejada.
O
reconhecimento de que a ação humana está condenada a produzir efeitos
contrários às intenções não se propõe a apresentar uma visão pessimista do
mundo, indutora da inação pelo ceticismo, mas reclama um exercício de humildade
ao aceitar as limitações diante do incomensurável. A ambição de uma solução
definitiva embute a pretensão de se eliminar a dinâmica do tempo e sua
imprevisibilidade e substituí-la por algo estático, sempre igual. O desejo por
uma validação absoluta, incriticável, repercute as angústias de um ser
temporalmente determinado.
A
possibilidade de progresso depende da nossa capacidade enquanto sociedade de
atualização destas contradições, movê-las a novos estágios para superarem uma
circularidade vazia de conteúdo. Abrigar a crítica para escapar à rigidez
cadavérica dos dogmas.
*Gabriel
Galípolo é presidente do Banco Fator, sócio-diretor da Galípolo Consultoria e
mestre em economia (PUC-SP).
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp,
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