terça-feira, 4 de maio de 2021

Gabriel Galípolo*, Luiz Gonzaga Belluzzo* - Meu mundo caiu

- Valor Econômico

Os órfãos de Thatcher e Reagan se preocupam com a dívida pública, pelo aumento das despesas do Estado

Em “Annie Hall”, Woody Allen relata uma antiga piada sobre duas senhoras em um resort. Uma delas diz: “Rapaz, a comida nesse lugar é terrível”. A outra responde: “Sim, eu sei! E em porções tão pequenas”. “É essencialmente assim meu sentimento em relação à vida - repleta de solidão, miséria, sofrimento, infelicidade e acaba rápido demais”, afirma o cineasta.

Nesta existência exposta a todo tipo de contingência, é quase natural que a tomada de consciência incline o ser humano à fantástica ideia de controlar os golpes do destino. Mas o tempo, que dá origem e rege as coisas deste mundo, é um cara gozador e adora brincadeira. Quis a ironia condenar a ação humana a frequentemente produzir o contrário das suas intenções.

Dizem os algoritmos dos aplicativos de música que, desde o anúncio do Plano Biden, a mais ouvida entre os analistas que dominaram a opinião econômica publicada nas últimas décadas é “Meu mundo caiu”, na voz da saudosa e maravilhosa Maysa. Boa parte ainda não foi capaz de superar o trauma da ruptura. Em estado de negação, repetem “não é nada disso que você está pensando” ou “nós somos diferentes, isso tudo não se aplica ao nosso relacionamento”.

Oferecemos aos colegas o ombro de quem também já foi traído pelo destino. A arquitetura financeira dos anos dourados do pós-guerra engendrou o mundo que pariu Reagan e Thatcher, da mesma forma que estes últimos produziram o ambiente para a ascensão da China, a crise de 2008 e o Plano Biden, golpe final às políticas econômicas adotadas desde a década de 1980.

As ideias que repousam no conforto da conclusão de que o inferno são os outros carecem da percepção do movimento que integra os contrários. Não enxergam os desdobramentos históricos onde as contradições oferecem as condições da emergência do novo. O novo irrompe nos rega-bofes do pensamento estático e binário dos admiradores do homo oeconomicus como o fantasma de Banquo assombrava os banquetes do egóico Macbeth.

Os pretendentes que disputam a economia atribuem um ao outro as causas pela infidelidade do destino. Quem passou os últimos anos se opondo ao reagonomics, resgatando a história para demonstrar que a agenda proposta já deu errado no passado, agora escuta o mesmo dos críticos do bidenomics. A dicotomia “Certo ou Errado” é adequada para programas de auditório, mas não serve para perscrutar as complexidades do conhecimento histórico-social.

O diálogo pressupõe a ausência de algum tipo de sociopatia que se contraponha aos objetivos do programa recém anunciado. Garantir renda a quem tem sua subsistência ameaçada por questões econômicas, ampliar o acesso à educação e cuidados com a saúde, infraestrutura e empregos para edificar uma economia social e ambientalmente mais amigável, são propósitos que candidamente acreditamos estar no horizonte de todas as posições consideráveis, apresentadas no debate democrático. Como caminhar nesta direção é o cerne da questão.

Os órfãos de Thatcher e Reagan reclamam preocupação com a dívida pública, em função do aumento das despesas do Estado. Os três programas anunciados pela nova gestão americana somam US$ 6 trilhões, denunciados por editoriais como irresponsabilidade de um homem de “78 anos que não arcará com as consequências de sua prodigalidade. Passada a emergência, a conta a pagar em uma economia enfraquecida”.

Segundo dados do FMI, nas três décadas de 1951 a 1981 os gastos públicos nos EUA e Reino Unido aumentaram sua participação em 20% do PIB. Nos trinta anos seguintes, que vão até o fim da primeira década deste século, a participação das despesas públicas em relação ao PIB caiu 8% no caso Reino Unido e apresentou crescimento menor que o período anterior nos EUA, de 7%.

No início dos anos 1950, a participação da dívida em relação ao PIB era equivalente a 200% no Reino Unido e a 75% nos EUA. No começo da década de 1980 a proporção cai para aproximadamente 45% e 40% para Reino Unido e EUA respectivamente, voltando a crescer para mais de 81% no Reino Unido e quase 100% nos EUA nos 30 anos seguintes.

A dinâmica contraintuitiva revela que a razão entre gasto público, dívida e PIB não apresenta o comportamento almejado pelos arquitetos da estática ptolomaica. “ E pur si muove” murmurou Galileu diante das crueldades do Cardeal Belarmino. Quando tudo se move, relevantes passam a ser as velocidades relativas.

A interpretação indica que se o PIB (denominador) cresce mais que os gastos ou a dívida pública (numeradores), dimensões integradas à primeira, a razão entre elas pode diminuir. Deduzir uma determinação direta e linear entre gasto público, crescimento e redução da dívida proporcionalmente ao PIB, seria retornar ao mesmo equívoco, mas chegando pelo caminho inverso.

As hipergeneralizações ridículas, excessivamente simples, a partir de categorizações reducionistas e binárias, compartimentam o bem e o mal em representações icônicas. Uma espécie de autossabotagem do pensamento oferecido pelo desejo de controle, vício inerente à razão instrumental.

O debate precisa ser deslocado das oposições binárias entre público e privado, mais ou menos Estado, para a dialógica democrática que questiona a qualidade das políticas públicas. Quais são as despesas e tributos que fazem sentido não apenas para o crescimento do PIB, mas para colaborar com o desenvolvimento da sociedade desejada.

O reconhecimento de que a ação humana está condenada a produzir efeitos contrários às intenções não se propõe a apresentar uma visão pessimista do mundo, indutora da inação pelo ceticismo, mas reclama um exercício de humildade ao aceitar as limitações diante do incomensurável. A ambição de uma solução definitiva embute a pretensão de se eliminar a dinâmica do tempo e sua imprevisibilidade e substituí-la por algo estático, sempre igual. O desejo por uma validação absoluta, incriticável, repercute as angústias de um ser temporalmente determinado.

A possibilidade de progresso depende da nossa capacidade enquanto sociedade de atualização destas contradições, movê-las a novos estágios para superarem uma circularidade vazia de conteúdo. Abrigar a crítica para escapar à rigidez cadavérica dos dogmas.

*Gabriel Galípolo é presidente do Banco Fator, sócio-diretor da Galípolo Consultoria e mestre em economia (PUC-SP).

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, 

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