Ao
participar há dias de um debate sobre utopia, não foi difícil constatar que
estamos vivendo justamente o contrário, uma distopia como nunca vivemos: um
acúmulo de crises — sanitária, política, econômica, ética, social, ambiental.
Por isso, para muitos, a utopia do século XXI é a sustentabilidade, isto é, o
equilíbrio entre progresso, bem-estar social e conservação dos recursos
naturais. E, se não o fim, pelo menos a redução das distâncias obscenas entre
riqueza e pobreza.
Aliás, a utopia sempre foi, digamos, meio utópica, desde o começo. Thomas Morus, o filósofo autor do livro “Utopia”, que em grego quer dizer “não lugar”, “lugar que não existe”, apresentava em 1516 o cenário de uma sociedade em que todos seriam felizes, ninguém era dono de nada, todos eram ricos. Porém o criador desse paraíso utópico morreu infeliz. Preso na Torre de Londres, foi executado por ordem de Henrique VIII. Quer dizer: o criador da utopia teve um fim distópico.
O
Brasil tinha 3 anos de idade quando entrou para a história da utopia. Em 1503,
o navegador italiano Américo Vespúcio exclamou: “Aqui é o paraíso”. Era a Ilha
de Fernando de Noronha, que, ao que tudo indica, inspirou Morus a escrever seu
famoso livro. De um jeito ou de outro, experimentamos sempre o sentimento da
utopia. Seja olhando para a frente, como “país do futuro” (por sinal, Stefan
Zweig suicidou-se aqui, ele e a mulher), ou para trás, com nostalgia de anos
dourados, em geral idealizados. Não se pode esquecer que a lenda situava o
Eldorado, o país do ouro, entre o Brasil e a Venezuela. Estamos sempre
esperando alcançar algo que nunca chega ou que já passou.
“Utopia
selvagem”, de Darcy Ribeiro, sonha substituir o país oficial centrado na figura
do branco, do índio e do negro por um povo novo, miscigenado —“um povo para ser
a mais bela nação da Terra”. O antropólogo viveu durante dez anos entre as
tribos dos kadiwéus, terenas, kaiowás e bororos.
Por
se tratar do terreno que envolve a imaginação e o sonho, a utopia está sempre
presente nele de alguma maneira, como inspiração ou como referência. Um dos
poemas mais populares de Manuel Bandeira é “Vou-me embora pra Pasárgada”, o
lugar ideal onde o poeta quer se refugiar: “Vou-me embora pra Pasárgada/ Lá sou
amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”. Noutra
versão, o compositor e poeta Dorival Caymmi canta: “Eu vou pra Maracangalha, eu
vou (...) Se Anália não quiser ir , eu vou só...”.
O
professor Francisco Ortega, estudioso do fenômeno médico-fisicalista, tem uma
tese original: “Não podendo mudar o mundo, tentamos mudar o corpo, o único
espaço que restou à utopia”. Seriam as utopias corporais substituindo as
sociais.
Essa
“ideologia” do corpo sarado, siliconado cria a obsessão por intervenções como
bodybuilding, cuting, tatuagem e piercing —na língua, no nariz, no bico dos
seios e até nos lugares mais recônditos da mulher e do homem. A mais comum
dessas mudanças consiste nas cirurgias plásticas.
Mas nossa grande utopia mesmo é o fim da pandemia e a comprovação pela CPI da Covid dos responsáveis pelo genocídio de mais de 400 mil pessoas em pouco mais de um ano no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário