- O Globo
A
nova versão influente do governo Bolsonaro para se lavar da responsabilidade
por não haver contratado a vacina Pfizer em agosto/setembro de 2020 é alegar
que inexistia legislação — naquela época — capaz de cobrir a operação. É falso.
Mais uma distorção num conjunto de mentiras que pretendeu desqualificar o
imunizante — e o próprio valor da imunização.
A primeira mentira: as doses daquele laboratório demandariam uma rede de refrigeração impeditiva. A segunda: a contratação dessa vacina, antes do aval da Anvisa, como se alguém fosse aplicá-la sem a certificação sanitária, colocaria em risco a integridade do brasileiro — o levaria a se tornar jacaré. Lembremo-nos: sem aprovação da agência reguladora, o Ministério da Saúde contrataria, meses depois, os imunizantes Sputnik V e Covaxin. A terceira: a oferta da Pfizer seria modesta. A oferta: 3 milhões de doses até março de 2021, metade das quais a serem entregues já em dezembro do ano passado — volume que, segundo Pazuello, frustraria a população. Lembremo-nos: a malta que argumentara assim comemorou, no final da semana passada, a entrega de 1 milhão de doses dessa mesma vacina.
No
curso dessa sucessão de embustes, registre-se, o governo — o presidente se
dizia incomodado com alguns termos do contrato — jamais falou na necessidade de
uma lei específica destinada a equacionar o que seria um problema. Nada. O
Planalto apontava um suposto impasse formal. E nada propunha como saída. Ou
poderia ter remetido um projeto em regime de urgência ao Parlamento; né? No
entanto: nada.
E
então a lei. Diante da crise, o presidente do Senado se reuniria com a Pfizer,
colheria dados e formularia o que seria a Lei 14.125/21. Iniciativa do
Congresso exclusivamente. Uma lei desnecessária, contudo. Como lei, para o que
produz uma lei: desnecessária. Explico. Uma aquisição pública emergencial de
vacinas, em meio a uma pandemia e sob a natureza calamitosa do período,
ajusta-se às especificidades do que é, afinal, um mercado internacional,
ademais tocado em circunstâncias excepcionais; de modo que caberia ao governo
justificar a admissão da cláusula considerada excessiva como condição para transitar
competitivamente, em nome do interesse do cidadão, no comércio mundial de
imunizantes. Seria a Constituição Federal a se sobrepor. O próprio direito à
saúde. Um direito fundamental cuja imposição — acima da existência de qualquer
lei — deriva diretamente do texto constitucional.
A
lei era desnecessária. Porém, vá lá, um governo que fosse genuinamente
preocupado, ainda que mal assessorado juridicamente, poderia — uma vez
inseguro, e dada a demanda urgente por vacinas — encaminhar e liderar a solução
por meio de simples medida provisória; uma como essas tantas que edita para,
por exemplo, facilitar a vida de grileiros. Nada fez.
A
lei era desnecessária. Repito. O governo poderia ter firmado contrato com a
farmacêutica no ano passado. Não quis. Preferiu desacreditar a cultura vacinal
e investir na farsa do tratamento precoce. E só se converteu em vacinador
convicto ante a imposição do mundo real no corpo da impopularidade crescente. A
lei era desnecessária, mas teve um mérito político. Uma lei supérflua atuando
como vara no lombo do Planalto. A iniciativa do Senado desamarrou, desnudou
politicamente, as desculpas de Bolsonaro. Não haveria mais como rebolar para
não assinar. Assinou-se. (Uma lei que deu respaldo para que o valente Bolsonaro
se deixasse abusar pelas cláusulas escorchantes da Pfizer. Sei...)
Por
outro lado: a lei desnecessária, que teve aquele mérito, desmontar as desculpas
do governo, viraria desculpa ela mesma na mão dos narradores bolsonaristas. É
onde estamos. Acossado pela CPI, o governo se escora na lei — a prova de que,
mui responsável, não poderia ter contratado a Pfizer em 2020. Mentira.
Importante:
os governistas alegam que haveria pareceres da AGU e da CGU contrários ao
contrato com a Pfizer. Sim. Documentos datados, ambos, de 3 de março —
curiosamente, um dia depois da aprovação da lei no Congresso. Uma mente maldosa
poderia pensar mal dos órgãos, que teriam — sei que jamais o fariam — produzido
pareceres para esquentar o discurso bolsonarista, como se o governo, de súbito
zeloso e proativo, tivesse contribuído para a solução legislativa que, na
verdade, o botou contra a parede, mas cuja onda ora surfa. AGU e CGU nunca
fariam isso — insisto. Os pareceres, entretanto, estão na boca dos milicianos.
Os
pareceres vieram tardiamente, incapazes de controlar os dois pesos e duas
medidas do governo. Que, escudando-se na Fiocruz, importou — antes da lei, em
janeiro de 2021, na correria improvisada para tentar competir com a primazia da
CoronaVac — doses prontas do imunizante fabricado pela AstraZeneca. Doses
prontas — não para ser envasadas aqui. Adquiridas ao instituto indiano Serum.
Compra direta, importação pura — feita sob os mesmos “riscos” que haveria na
aquisição junto à Pfizer. Nada a ver com o acordo para transferência de
tecnologia pactuado com a AstraZeneca; cujo contrato, diga-se, ainda não foi
assinado — sendo fato que a tão esperada produção autônoma pela Fiocruz, essa
joia do Brasil, já vai com o calendário comprometido.
Aliás: o que há para que esse contrato — tão usado como propaganda — ainda não tenha sido firmado?
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