A ralé virtual no poder
O Estado de S. Paulo
Absolutamente
desqualificado para a vida pública, Jair Bolsonaro subordina-se, e a seu
governo, ao “gabinete do ódio”
Os primeiros depoimentos na CPI da Pandemia confirmam que há uma espécie de “gabinete paralelo” no Palácio do Planalto, cuja influência sobre o presidente Jair Bolsonaro parece ser maior do que a exercida pelo gabinete de ministros.
Esse
“poder paraestatal”, na definição do relator da CPI, senador Renan Calheiros,
já era mais ou menos conhecido. O espantoso foi observar em detalhes sua imensa
capacidade de determinar os atos e palavras do presidente da República.
Como
informado pelo próprio Bolsonaro em discurso, o tal “gabinete paralelo”,
chamado também de “gabinete do ódio” e qualificado pelo presidente como “gabinete
da liberdade”, é liderado por Carlos Bolsonaro. O segundo filho do presidente,
embora seja vereador no Rio de Janeiro, passa vários dias em Brasília
assessorando o pai. Carlos Bolsonaro, sem cargo no governo, é na prática, o
mais poderoso ministro de Bolsonaro, a julgar pelo que veio à luz na CPI.
Soube-se que Carlos Bolsonaro participou de várias reuniões do presidente com ministros, “tomando notas”, segundo informou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Conforme o testemunho de Mandetta, isso fazia parte de “um assessoramento paralelo” – que, em resumo, confrontava as decisões técnicas do Ministério da Saúde e insistia na adoção formal da cloroquina como medicamento contra a covid-19, embora já houvesse evidências de que o remédio era ineficaz. A queda de dois ministros da Saúde, entre outras razões por sua resistência à cloroquina, mostra a força desse “poder paraestatal”.
Carlos
Bolsonaro não tem a menor qualificação para dar opinião sobre os grandes temas
de Estado, em especial sobre a pandemia, mas o “gabinete” que ele lidera tem
uma qualidade muito valorizada pelo presidente: julga-se capaz de traduzir para
Bolsonaro a mixórdia das redes sociais.
Como
parece acreditar piamente que foi eleito graças a essa interação com lunáticos
da internet, o presidente Bolsonaro concluiu que as redes sociais são uma
genuína expressão dos desejos populares. Sendo o intérprete das redes, dando
sentido, por assim dizer, às teorias da conspiração que pululam naquele
ambiente, o “gabinete paralelo” sobrepõe-se, na hierarquia do governo, aos
ministros de Estado – que, por definição, devem se ater à realidade fria de
decisões muitas vezes impopulares.
O
governo formal, então, é submetido ao filtro do “gabinete paralelo”,
tornando-se, na prática, refém da irresponsabilidade dos agitadores de
internet. O presidente da República, exatamente por ter consciência de que não
tem a menor capacidade para governar, parece sentir-se o tempo todo ameaçado
pelo poder formal, institucionalizado, o qual desrespeita desde seus tempos de
deputado. As demissões de ministros que o presidente tratou como inimigos, por
se concentrarem em fatos concretos e não em delírios do clã presidencial,
ilustram o clima de paranoia existente no Palácio do Planalto – alimentado dia
e noite pelo “gabinete paralelo”.
O
fato é que hoje o País é governado a partir das fantasias das redes sociais,
sem qualquer lastro institucional e, sobretudo, moral. A esta altura, já é
possível concluir que o presidente Bolsonaro não toma nenhuma decisão sem levar
em conta os conselhos do “gabinete paralelo”.
É
sintomático que Bolsonaro tenha recrudescido recentemente os ataques a seus
inimigos imaginários – a lista, extensa, é encabeçada pelo Judiciário, pelos
governadores e pelos comunistas chineses – depois de passar dias recebendo
conselhos de Carlos Bolsonaro. E as recomendações foram seguidas à risca, a
julgar pela truculência do presidente, como reação à pressão exercida pela CPI,
em particular, e pela crise, em geral. De Carlos Bolsonaro – chamado pelo
próprio pai de “pitbull” e orgulhoso exegeta do “pensamento” raivoso das redes
sociais – não se esperava que sugerisse moderação ao presidente.
Nesse
sentido, Bolsonaro mostra-se ainda menor do que sempre foi. Absolutamente
desqualificado para a vida pública, que dirá para a Presidência da República,
subordina-se, e a seu governo, à ralé virtual – a cujo irresponsável arbítrio
Bolsonaro submete o Brasil.
Os desafios do multilateralismo
O Estado de S. Paulo
O
multilateralismo deve ser pensado em uma perspectiva funcional muito mais
flexível
O fato desconcertante sobre o multilateralismo hoje é que o momento em que ele é mais necessário para enfrentar desafios globais, como as mudanças climáticas, a não proliferação nuclear ou a regulação do universo digital, é o momento em que ele está mais debilitado. A pandemia acentuou esta contradição. “O vírus não vê diferenças entre um brasileiro, um americano e um chinês”, disse o pesquisador do Asia Research Institute Kishore Mahbubani. “No passado, 193 países viviam como que em 193 barcos. Se um barco pegasse um vírus, ninguém dava a mínima. Hoje não vivemos em 193 barcos, mas em 193 cabines do mesmo barco.”
Junto com
Mahbubani, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais recebeu diplomatas e
pesquisadores para debater os desafios do multilateralismo. “Há um
chamado renovado para o multilateralismo”, disse a mediadora, Anna Jaguaribe,
“mas que não envolve simplesmente um retorno às negociações do passado.” Hoje
“falta um consenso sobre se a política multilateral deve ser orientada por
valores ou negociada com base em interesses nacionais”.
Considerem-se,
por exemplo, os conflitos entre EUA e China que condicionam o universo
geopolítico. Pesquisadores como N. Anderson e B. Posen creem que prevalece em
Washington uma orientação bipartidária de que a ascensão da China torna
imperativa uma hegemonia liberal guiada pela política apta a implementá-la. Henry
Kissinger, por sua vez, alega que a política internacional deveria ser guiada
por um novo equilíbrio de poder que conjugue competição e cooperação entre as
partes. As negociações deveriam evitar a busca por soluções definitivas.
O
seminário ilustrou notavelmente estas visões contrastantes. Mahbubani, por
exemplo, se mostrou otimista: nunca a humanidade viveu tal progresso
socioeconômico, e isso se deve em boa medida às organizações globais. Para ele,
elas devem ser “rejuvenescidas”.
Em
oposição, para Richard Haass, do Council of Foreign Relations, as chances de
uma “reforma significativa” de organismos desenhados no pós-guerra são
“essencialmente zero”. Para ele, há um dilema entre organismos amplamente
representativos, mas ineficazes (como a Assembleia-Geral da ONU), e blocos
regionais menos representativos, mas eficazes (como a Otan ou a UE). A seu ver,
a imobilidade dos organismos globais em conflitos como o genocídio em Ruanda, a
guerra nos Balcãs ou a invasão da Ucrânia sugere que, se o multilateralismo tem
um futuro, será por meio de algo como um “minilateralismo”.
Seu
modelo de “coalizões de vontades” é baseado na experiência federativa
norte-americana, na qual os Estados são como que “laboratórios da democracia”,
nos quais novas ideias são introduzidas, desenvolvidas e, se bem-sucedidas,
adotadas ou adaptadas em nível nacional. “Mais do que ver o multilateralismo
como um conceito universal de cima para baixo, devemos pensá-lo em uma
perspectiva funcional muito mais flexível, de baixo para cima.”
Esta
flexibilidade parece especialmente pertinente quando se pensa, por exemplo, que
cerca de 90% das mudanças climáticas são causadas por 15 países, ou quando se
consideram os desafios da regulação do ciberespaço ou da saúde global sem o
envolvimento direto das Big Techs ou da indústria farmacêutica.
Não
obstante, a metáfora do barco único de Mahbubani é incontornável. E a afirmação
do ex-chanceler Celso Lafer de que no comércio interconectado contemporâneo é
inviável substituir uma instituição como a OMC por entendimentos regionais é
irrefutável. O próprio Haass, apesar de seu ceticismo sobre os organismos
multilaterais, sugeriu: “deveríamos pensar não em rejuvenescê-los, mas em
suplementá-los”. Suplementar é bem diferente de descartar.
Tal
solução de compromisso sugere que o dilema contemporâneo talvez não seja
insolúvel. Talvez a política multilateral, para ser eficaz, tenha de ser
construída em blocos, de baixo para cima, com base em interesses nacionais.
Mas, para que sejam legítimas, essas negociações devem ser inelutavelmente
condicionadas, de cima para baixo, por valores universais.
O tempo do Legislativo
O Estado de S. Paulo
A
precipitação na atividade parlamentar não é funcional, não é inteligente
Dois recentes movimentos da Câmara evidenciam como a atividade parlamentar requer calma e reflexão. A função legislativa, ao contrário do que muitos pensam, não é dar respostas imediatas aos problemas do País. A lei deve ser a resposta adequada, apta a perdurar ao longo do tempo – e isso não se consegue sem a devida maturação dos temas.
Um
Poder Legislativo que atua apressadamente estará sempre instado a correr ainda
mais, pois, junto às suas muitas tarefas habituais, terá ainda de corrigir os
erros que seu afobamento continuamente gerará. A precipitação na atividade
parlamentar não é funcional, não é inteligente.
No
dia 4 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que revoga a Lei
de Segurança Nacional (LSN, Lei 7.170/83) e altera o Código Penal, para incluir
crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A
necessidade de rever a LSN não é um tema novo. Tanto é assim que a proposta
aprovada reúne projetos elaborados em 1991 e 2002. No entanto, esses projetos
estavam havia muito tempo parados. O assunto voltou à baila com o governo de
Jair Bolsonaro.
A
pedido do Ministério da Justiça, inquéritos com base na Lei 7.170/83 foram
abertos com o intuito de intimidar opositores políticos. Para essa manobra –
claramente inconstitucional –, o governo federal recorreu ao art. 26 da LSN,
que prevê pena de reclusão de um a quatro anos para quem caluniar ou difamar o
presidente da República. A partir de uma interpretação abusiva do texto legal,
o Executivo federal queria recriar o crime de maldizer o rei.
Por
causa desses abusos, o debate sobre a recepção da LSN pela Constituição de 1988
voltou à cena pública. Surgiram vozes pedindo que o Supremo Tribunal Federal
(STF) alterasse sua orientação, declarando inconstitucional a Lei 7.170/83.
Nesse cenário, o Congresso – a quem de fato cabe ponderar sobre a revisão da
LSN – adiantou-se e, a partir de antigos projetos, pôs em tramitação uma
proposta de lei, aprovada agora pela Câmara e encaminhada ao Senado.
A
pressa foi tanta que o texto aprovado pelos deputados continua mantendo, por
exemplo, incriminação especial para as ofensas contra a honra de algumas
autoridades – precisamente o tema que deu margem aos abusos do governo federal.
Seria um equívoco que a nova legislação em defesa do Estado Democrático de
Direito, que deve proteger o funcionamento das instituições, incluísse a defesa
da honorabilidade das instituições e suas autoridades, o que depois poderia ser
usado para limitar a liberdade de expressão e criminalizar a manifestação de
opinião.
Os
abusos cometidos pelo governo federal com base na LSN são graves, mas uma
açodada atuação do Congresso não vai resolvê-los. O Estado Democrático de
Direito dispõe de meios, em especial com o Ministério Público e o Judiciário,
para trancar inquéritos abusivos.
O
segundo caso de pressa da Câmara foi ainda mais grave. Felizmente corrigiu-se a
tempo. Contrariados com a atuação do STF, alguns parlamentares queriam alterar
a Lei 1.079/50, para incluir, entre os crimes de responsabilidade, a conduta,
por parte de ministro do Supremo, de “usurpar competência do Congresso
Nacional”. O objetivo da proposta, rejeitada pela Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) da Câmara, era criminalizar decisões do STF que extrapolam as
atribuições do Judiciário.
Não
há dúvida de que o Supremo extrapolou suas funções constitucionais em alguns
casos, com interpretações irrazoavelmente amplas. Mas a correção desses
equívocos não virá pela ampliação dos crimes de responsabilidade, menos ainda
pela criminalização da livre atividade jurisdicional. Há remédios
constitucionais mais eficazes (por exemplo, o Senado realizar de forma mais
efetiva a sabatina dos indicados ao Supremo) e que não trazem desequilíbrios
institucionais. Um Judiciário refém das pressões do Legislativo e do Executivo
é tremendamente prejudicial para o País.
O
Congresso não deve ser lento, tampouco omisso. Mas seu trabalho exige pensar
com cuidado os problemas e as soluções. Caso contrário, suas soluções produzem
novos problemas.
Que o plenário decida
Folha
de S. Paulo
Norma
deve mudar para presidente da Câmara não concentrar poder em impeachment
No
que possivelmente é um recorde mundial, acumula-se na Câmara dos Deputados mais
de uma centena de pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. O
afastamento do presidente é questão que divide ao meio a sociedade brasileira.
Pelo Datafolha, em março 50% dos eleitores eram contra a medida, e 46%, a
favor.
Não
importa o que se pense sobre o mérito de um impeachment, não se mostra razoável
que, pela vontade de um único cidadão, a proposta não possa ser debatida nas
esferas competentes.
Entretanto
é o que ocorre hoje no Brasil, devido à combinação de uma falha do regimento
interno da Câmara com a esperteza de sucessivos presidentes da Casa.
O
impedimento foi concebido para ser um instituto democrático e simples de
acionar. A lei 1.079/50, que regula a matéria, permite que qualquer cidadão
denuncie o presidente, por crimes de responsabilidade. Estabelece como
requisitos para a peça acusatória apenas o reconhecimento de firma e uma
fundamentação mínima da denúncia.
O
regimento interno da Câmara corretamente deixa ao presidente da Casa a
incumbência de uma primeira avaliação. Se os requisitos estão presentes e a
denúncia não é um despropósito, ele deveria deferir o pedido, que começaria
automaticamente a tramitar, sendo avaliado quanto à procedência por uma comissão
especial antes de seguir para o plenário.
Caso
contrário, deveria indeferi-lo, o que o remeteria ao arquivo. O detalhe
importante é que, nessa hipótese, cabe recurso ao plenário, como convém numa
democracia.
Na
prática, porém, sucessivos presidentes da Câmara têm preferido manter os
pedidos numa espécie de limbo. As peças recebidas nem são aceitas —e assim não
começam a tramitar— nem são recusadas —de modo que não se abre a possibilidade
de recurso.
Está
tudo de acordo com a letra da Constituição, da lei e do regimento, mas não de
acordo com o espírito da legislação, que é o de facilitar o recebimento da
denúncia.
Seria
simples corrigir isso. Basta, por exemplo, que o regimento estabeleça um prazo
para o presidente da Câmara se manifestar sobre cada pedido. Em caso de
indeferimento, o plenário terá a oportunidade de dizer se concorda ou não com a
avaliação do presidente.
Aqui
seria conveniente que a legislação exigisse maioria absoluta (257 dos 513
deputados) para um veredito contrário, como proteção ao mandato presidencial. O
afastamento, como se sabe, depende de dois terços dos parlamentares.
Um
órgão colegiado como a Câmara dos Deputados não deve concentrar poderes demais
nas mãos de apenas um de seus membros. Não é bom para a Casa, não é bom para o
equilíbrio dos Poderes, não é bom para a democracia.
Armas fora da lei
Folha
de S. Paulo
Urge
que o Supremo delibere sobre decretos de Bolsonaro que aviltam estatuto
Enquanto
o Supremo Tribunal Federal não retoma o julgamento sobre a ação que questiona
um decreto pró-armas de 2019, a norma segue em vigor. A matéria se encontra
parada por causa de um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes em março
deste ano.
O
decreto de Jair Bolsonaro inverte a lógica do Estatuto de Desamamento, de 2003:
em vez de o comprador precisar comprovar a efetiva necessidade da posse de uma
arma, como era o caso, agora se presume que a declaração pessoal confirme tal
condição.
Como
não há decisão individual do relator do caso, o ministro Edson Fachin, a regra
continua a facilitar a proliferação de armas.
O
decreto compõe uma série de medidas nesse sentido adotadas por Bolsonaro desde
que tomou posse —foram mais de 30 até fevereiro, segundo dados do Instituto
Igarapé, do Instituto Sou da Paz e da ONG Conectas.
Hoje,
o Brasil conta 1,15 milhão de armas legais nas mãos da população, 65% acima do
verificado em dezembro de 2018 —sem contar os produtos que nascem legais e
acabam nas mãos do crime.
Outro
caso, de relatoria da ministra Rosa Weber, também foi objeto de pedido de vista
de Moraes. Aqui, discutem-se quatro decretos publicados por Bolsonaro às
vésperas do Carnaval deste ano, incluindo a norma que aumenta de quatro para
seis o limite de armas que um cidadão comum pode adquirir.
Nesse
processo, a magistrada suspendeu trechos dos regulamentos antes do pedido de
vista de Moraes.
Apesar
da complexa teia de normas, o embate jurídico é relativamente simples: decretos
servem para fazer com que a lei, no caso o Estatuto do Desarmamento, seja
cumprida, e não para desvirtuá-la.
Em
outro exemplo, retira-se a exigência —prevista no estatuto— de prévia
autorização do Comando do Exército para aquisição de armas por caçadores,
colecionadores e atiradores desportivos.
No
Congresso Nacional tramitam projetos de decreto legislativo para sustar os
efeitos das medidas de Bolsonaro, mas a inércia tem prevalecido até aqui.
Dado
que se trata de desvirtuamento da legislação em vigor, com graves implicações
na política de segurança pública, urge que Alexandre de Moraes devolva os casos
e o plenário do STF finalmente venha a definir os limites às sandices
armamentistas do Planalto.
Brasil precisa andar mais rápido rumo à economia limpa
O
Globo
O Brasil se comprometeu a reduzir a zero as emissões líquidas de gases causadores de efeito estufa até 2050. Em 2025, nossa meta é emitir 37% a menos que em 2005. Com o aumento da devastação da Amazônia no governo Bolsonaro, aquilo que era plenamente factível em 2015, quando foi firmado o Acordo de Paris, transformou-se num objetivo que vai se tornando a cada dia menos viável. Precisamos mudar isso — e o tempo é curto.
Quase
metade das emissões brasileiras — equivalentes a 2 bilhões de toneladas de gás
carbônico — resulta da devastação de florestas. Um quarto deriva de atividades
agrícolas, em especial da pecuária (reses emitem metano, gás com potencial de
aquecimento 30 vezes superior ao carbônico). Pouco mais de 20%, dos transportes
e da energia, setor em que metade da matriz já é limpa.
Nosso
maior problema para cumprir a meta é conhecido: desde 2017, o desmatamento
interrompeu a trajetória de queda e voltou a quebrar recordes no governo
Bolsonaro. Mas, além de cumprir a promessa de acabar com a devastação da
Amazônia, a transição para a economia de baixo carbono também exigirá ação
determinada nos demais setores. Sobretudo transportes, saneamento, siderurgia,
metalurgia, petróleo e agropecuária. A boa notícia é que, na maior parte deles,
será possível realizar a transição por meio de investimentos lucrativos em
novas tecnologias.
É
o caso da troca de frotas de caminhões e transporte urbano por veículos
elétricos, da instalação de parques energéticos solares e eólicos, de geradores
a partir do gás dos esgotos ou ainda da mudança no modelo de criação de gado,
para revezar o pasto com áreas de plantio e compensar as emissões. Instituições
financeiras não terão dificuldade em destinar crédito a projetos que
demonstrarem capacidade consistente de gerar maior produtividade. Em geral,
eles envolvem grande investimento inicial de capital para colher o resultado
num prazo dilatado.
Há
setores, contudo, em que zerar as emissões não será lucrativo. Em alguns, será
impossível trazê-las a zero. Os mais problemáticos são siderurgia, indústria de
cimento e aqueles que usam combustíveis fósseis. Para acelerar a adesão às
tecnologias mais limpas, será preciso criar algum mecanismo por meio do qual
alguns setores compensem as emissões dos outros. Enquanto aqueles terão
incentivos para plantar árvores ou instalar dispositivos de captação dos gases,
estes pagarão para continuar a produzir poluindo. Fazer isso de modo justo
exige que se estabeleça um preço para o carbono emitido.
Há
basicamente duas formas de implementá-lo: ou simplesmente criando novos
impostos, ou então desenvolvendo um mecanismo mais sofisticado, conhecido como
“mercado de carbono”. Já existem 28 iniciativas do tipo funcionando no mundo,
de acordo com o Banco Mundial. As principais, na Califórnia e na União
Europeia. O Brasil está atrasado. O que existe aqui é um mercado voluntário,
dependente de empresas pioneiras ou projetos de natureza ambiental. É pouco
para promover a transição para a economia limpa na velocidade exigida pelas nossas
metas.
A
lei de 2009 que criou a política nacional de mudança climática estipulou que
fosse criado um mercado de carbono, regulado pela Comissão de Valores
Mobiliários. A iniciativa não vingou. Desde então, o Ministério da Economia
passou a estudar a implementação e produziu uma série de documentos para
orientá-la.
No
começo ano, a Câmara começou a analisar um projeto de lei, do deputado Marcelo
Ramos (PL-AM), que transfere a responsabilidade pelo mercado de carbono da CVM
a uma nova agência reguladora, batizada Instituto Nacional de Registro e Dados
Climáticos (INRDC), fiscalizada e regulada pelo Ministério da Economia. O
projeto reconhece o que já é negociado no mercado voluntário, dá alguma
segurança jurídica aos contratos e, mais importante, estabelece um prazo de
cinco anos para que tudo funcione como determina a lei de 2009. Vários pontos
ainda precisam ser ajustados, mesmo assim trata-se de uma iniciativa essencial
para as próximas décadas.
A
criação de um mercado local de carbono obrigaria as empresas que ainda dão de
ombros para a questão climática a prestar atenção aos riscos para seus negócios
e também às oportunidades. Quem poluir terá de pagar; quem ajudar a despoluir
terá a receber. Isso contribuirá para criar no país a cultura necessária à
transição rumo à economia limpa.
Acelerar
a iniciativa ajudaria a preparar o Brasil para a COP-26, a conferência
ambiental da ONU marcada para novembro em Glasgow. A discussão central se dará
em torno dos mecanismos de troca internacionais para os direitos de emissão,
estabelecidos nos artigos 6.2 e 6.4 do Acordo de Paris. É um desafio gigantesco
para o planeta criar um mercado de carbono global, ou ao menos uma governança
capaz de monitorar com credibilidade a transição em todos os países
signatários. Nossa diplomacia deveria ter uma estratégia para negociar
propostas favoráveis no que diz respeito à preservação de florestas ou ao uso
de biocombustíveis.
Talvez seja pedir demais do presidente Jair Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que já deram inúmeras provas de não estar à altura da tarefa. Mas a transição precisa ser feita a despeito e à revelia deles. Acabando com a devastação da Amazônia, criando um mercado nacional de carbono e permitindo que recursos sejam destinados aos projetos e às oportunidades sem limites que a economia limpa oferece ao nosso país.
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