domingo, 9 de maio de 2021

José Eduardo Faria* - Os direitos, os vouchers e a dignidade da condição humana

- Estado da Arte – revista de cultura, artes e ideias

Ao afirmar que em matéria de eficiência e controle dos gastos seria melhor distribuir vouchers à população pobre do que manter creches, escolas e hospitais públicos, o ministro Paulo Guedes recolocou na agenda um tema já conhecido: a política de conditional cash transfers, que, em princípio, asseguraria as necessidades básicas dos pobres e desvalidos.

Esse tema se relaciona com os programas de renda mínima e foi desenvolvido pelo liberalismo extremado que há algumas décadas orienta o curso de economia da Universidade de Chicago, onde o ministro fez a pós-graduação. Esses programas também foram defendidos por organismos multilaterais, como o Banco Mundial, sob a justificativa de “dar aos pobres condições para que se tornem advogados mais efetivos dos seus próprios interesses”. A polêmica que essa política implica não é nova[*]. Ela decorre do fato de que, se do ponto de vista do gasto público propicia uma economia de recursos que garantiria o equilíbrio fiscal, do ponto de vista das conquistas civilizatórias envolve uma progressiva substituição da ideia de universalização dos direitos por programas de focalização. São programas que tendem a concentrar os gastos sociais num público-alvo bem definido e selecionado em situação-limite de sobrevivência e pobreza, com o objetivo de garantir a maximização da eficiência alocativa de recursos escassos.

Quando afirmou que a concessão de um voucher a um pobre permitirá a este optar entre um hospital Albert Einstein ou um hospital do SUS, o que o ministro da Economia afirmou é que ao Estado caberia apenas o dever de garantir certo grau de segurança social. Ou seja, haveria apenas a obrigação de suprir parte do que os indivíduos desfavorecidos não conseguiriam obter por meio do mercado ou de recursos familiares ou comunitários. Essa é uma afirmação apressada e perigosa. Seu maior problema está no fato de que, do modo como vem tratando os pobres e a pobreza em suas falas, o ministro demonstra não ter consciência dos limites morais inerentes ao funcionamento da livre economia de mercado e revela ter ideia do que é o princípio de solidariedade invocado no plano doutrinário por muitos defensores responsáveis das políticas de focalização. Certos ou errados, estes sempre entenderam que as transferências de recursos mínimos em dinheiro assegurariam a autodeterminação dos indivíduos menos favorecidos, na medida em que teriam a possibilidade de definir seus gastos prioritários e os serviços básicos que considerariam necessários.

Já para o ministro, que se apresenta como um liberal extremado, daqueles que hiper-responsabilizam os cidadãos por seu futuro ao mesmo tempo em que promovem a desresponsabilização de agentes econômicos, a focalização não é vista como uma redistribuição fiscal de vencedores para perdedores. Ou seja, como uma redistribuição baseada em compromissos de caráter ético, dada as acentuadas disparidades na distribuição de riqueza e renda. Trata-se, isto sim, de uma fala que, ao menosprezar os setores que considera sociais inferiores ou desvalidos, entreabre um darwinismo não assumido publicamente. É uma narrativa que naturaliza a ideia de que uma sociedade pode descartar os que nela vivem com menos recursos econômicos. Afinal, o modelo de economia defendido pelo ministro é aquele em que os agentes financeiros procuram obter vantagens de curto prazo, ao mesmo tempo em que desprezam suas obrigações para com os outros e para a própria comunidade.

“O setor público não vai conseguir acompanhar a questão da saúde. Setor privado é a solução”, disse a principal autoridade econômica do governo, defendendo tanto uma privatização indiscriminada de serviços públicos quanto uma economia não regulamentada. Mais precisamente, uma economia onde a regra é a exploração ilimitada da conjuntura, com os agentes procurando maximizar a qualquer preço todas as vantagens possíveis. O fio condutor da fala do ministro é a visão da política da focalização como simples questão de pragmatismo e de funcionalidade baseada em dois argumentos.

O primeiro argumento é no sentido de que, com suas políticas keynesianas e suas Constituições-dirigentes, os governos social-democratas do final do século 20 teriam promovido uma hipertrofia de direitos, inviabilizando com isso a obtenção de equilíbrio fiscal. Na ótica do ministro, como se vê, o liberalismo é tratado apenas em sua dimensão econômica. Para ele, que parece encarar a Constituição exclusivamente do ponto de vista de sua adequação à consecução de metas estabelecidas a partir de uma lógica econométrica, e não impostas por uma vontade política democrática, os direitos comprometeriam a eficácia alocativa dos fatores de produção.

Esquece-se, contudo, da importância de alguns dos mais importantes primados do Estado de Direito no plano político, e que são fundamentais para os agentes econômicos. Esse é o caso, por exemplo, do acesso aos tribunais, do direito ao devido processo legal, do instituto jurídico da defesa da concorrência e do direito do consumidor. Também releva que, se a concepção clássica de liberalismo assegura as condições necessárias ao funcionamento do mercado, à acumulação e ao estímulo às vocações empreendedoras, ao mesmo tempo defende a institucionalização das liberdades públicas e dos direitos — inclusive os sociais — como marcos normativos do jogo econômico. Por fim, ignora que, apesar de serem pró-mercado, os liberais mais refinados entendem que, quando o Estado é reduzido ao mínimo, o contrato social tende a se corroer, levando ao risco de o estado civil retroceder ao estado da natureza.

O segundo argumento é no sentido de que o potencial desagregador dos bolsões de excluídos poderia ser neutralizado por meio de gastos seletivos. Nesta ótica, que limita o espaço público democrático dos direitos na medida em que vê a justiça social somente como algo abstrato, a desigualdade é tratada somente a partir da relação entre custo e benefício. Seja por limitar sua visão do liberalismo ao princípio da não interferência do Estado na esfera do mercado, seja, talvez, por não discernir moralmente as diferenças entre uma democracia e uma ditadura, à qual serviu no Chile, o ministro da Economia não lembra o que disseram liberais consistentes e respeitados, como John Rawls e Ronald Dworkin, e seus interlocutores comunitaristas (como Charles Taylor, Michael Sandel e Michael Walzer), para quem a ideia de bem comum vai além da mera somatória das vontades individuais. Para esses filósofos, embora não caiba ao Estado indicar o que é felicidade aos cidadãos, ele tem de atuar para que o jogo político seja menos desequilibrado. Isto porque, onde há desigualdade, nem todos podem decidir em iguais condições.

Segundo estes pensadores, para ser efetivamente livre o indivíduo necessita de condições materiais básicas. Sem elas, o alcance de seu campo de escolha é limitado — e isso exige repensar os direitos vinculando-os a mecanismos compensatórios capazes de atenuar os desequilíbrios produzidos pelo livre jogo de mercados. Para esses filósofos, que fizeram da liberdade, equidade e dos direitos o objeto de suas reflexões, as políticas de focalização não se preocupam com essas necessidades materiais básicas, enquanto condição da dignidade humana.

Este é, justamente, o ponto mais vulnerável da argumentação do ministro. Pelo que tem falado, as políticas de focalização, em vez de ajudar a destravar os gargalos estruturais que impedem a redução da pobreza, são concebidas como medidas compensatórias meramente pontuais e transitórias. No limite, como os cidadãos pobres beneficiados por essas medidas não são empregáveis numa economia formal, por falta de qualificação técnica para lidar com a Revolução Industrial 4.0, eles são considerados potencialmente desagregadores, no plano político, e disfuncionais, no plano social. Entre outros motivos, porque sobrecarregam a manutenção da segurança pública, são violadores em potencial da propriedade privada e desrespeitam os direitos patrimoniais.

Essa é a distância entre os liberais respeitáveis e aqueles mais ardilosos, porém doutrinariamente inconsistentes, que costumam ser comparados às lojas de conveniência de postos de gasolina. Os primeiros não confundem liberalismo com um contexto em que as forças de mercado possam agir de modo indiscriminado. Sabem que, se determinadas atividades públicas podem ser terceirizadas, determinadas responsabilidades públicas não podem. No mesmo sentido, também consideram a ideia de liberdade indissociável de uma igualdade obtida pela distribuição equitativa da educação, pela garantia mínima em face de doenças e desemprego, pelo uso de instrumentos como o imposto de renda negativo, pelo combate aos monopólios e pela multiplicação de oportunidades de emprego.

Já os segundos entendem o mercado como uma economia liberta de quaisquer constrangimentos pelo poder público. Consideram natural a transformação da política pública em negócios privados. Também aceitam como natural a redução do tamanho do Estado por meio da desconstitucionalização de direitos e de reformas que, sob a justificativa de baratear o custo do trabalho, geram subemprego, relegando socialmente as pessoas e se mostrando assim avessas à dignidade das pessoas. Sem compreender que o contrato social e o pacto moral nele implícito são erodidos quando determinados serviços públicos são reduzidos ao conceito geral de mercadoria, aceitando e defendendo sua transferência da esfera governamental para o do mercado, esse é o pessoal que causa espanto ao afirmar, sem saber que estava sendo gravado: “Pobre tá doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no [sic] Einstein? Vai no [sic] Einstein. Quer ir no SUS [sic], pode usar seu voucher onde quiser”.

Estes são os pretensos liberais que, menosprezando a essência do liberalismo, não só consideram os cidadãos pobres inúteis na produção dos bens coletivos para o desenvolvimento da sociedade, mas também acham que eles fedem, atrapalham e põem em risco as contas públicas.

Nota:

[*] No meu caso, eu a discuto desde a crise financeira de 2008. Ver, nesse sentido, O Estado e o Direito depois da crise, São Paulo, Fundação Getúlio Vargas/Saraiva, 2011 (1ª edição) e 2017 (2ª edição, reformulada e mais aprofundada). No Estado da Arte, meu último artigo sobre o tema, A saúde pública, entre o Estado e o mercado, foi publicada em 20 de abril de 2020).

*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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