A
transformação da pesquisa em batalha política pode levar ao risco de um
levantamento com menor qualidade técnica
O
Brasil é um dos países com melhor qualidade de suas estatísticas no mundo.
Diversas instituições públicas mantêm bases de dados detalhadas sobre regiões,
empresas e indivíduos que permitem revelar fatos desconhecidos sobre a
realidade brasileira.
Os
dados sobre vínculos formais de emprego identificados no nível da empresa e do
trabalhador, mantidos pelo Ministério da Economia, são utilizados por pesquisadores
do mundo inteiro para estimar os efeitos de políticas públicas sobre o mercado
de trabalho.
Foi
com eles que Rafael Dix-Carneiro, brasileiro professor da Universidade Duke,
pôde estudar a liberalização comercial dos anos 1990 e concluir que a mobilidade
de trabalhadores entre regiões brasileiras é muito lenta.
Esses dados não são úteis somente para responder perguntas econômicas. Combinando dados de auditorias da Controladoria-Geral da União e da Justiça Eleitoral, o professor da Universidade da Colúmbia Britânica e meu colega nesta coluna Cláudio Ferraz demonstrou que prefeitos em primeiro mandato tendem a cometer menos atos de corrupção.
Ou
seja, a possibilidade de uma reeleição futura reduz os incentivos para
corrupção presente.
Frequentemente
eu uso dados do IBGE nesta coluna. Sem eles, eu e vocês teríamos um retrato
muito menos preciso do que ocorre no país e quais são as possíveis tendências
futuras.
O
Brasil se destaca ainda mais quando comparado a outros países em
desenvolvimento. Em 2015, quando os produtos desapareceram das prateleiras por
causa da política de controle de preços da Venezuela, o governo simplesmente
deixou de publicar o índice que media a escassez de produtos.
Durante
muito tempo as estatísticas de inflação na Argentina não eram críveis, porque o
governo interveio no instituto de estatística nacional para subestimar a
inflação real.
Este
ano, o Brasil deu um passo atrás. A realização do Censo decenal, programada
inicialmente para 2020 e atrasada para 2021 por causa da pandemia, foi
cancelada pelo governo federal sob a alegação de “falta de recursos”. A
presidente do IBGE, Suzana Cordeiro Guerra, pediu demissão em protesto contra
os cortes.
Só
com o recurso alocado para emendas parlamentares (R$ 49 bi) daria para custear
quase 25 censos (R$ 2 bi). Portanto, a realidade é que, no lugar de entendê-los
como essenciais para o país, os gestores políticos entenderam que os recursos
do Censo poderiam ser alvo de barganha política. É uma visão míope, por dois
motivos principais.
O
Censo é o único retrato preciso que temos da realidade dos municípios que não
são capitais nem estão em Regiões Metropolitanas. Com dados desatualizados, é
difícil saber o que priorizar em bairros e cidades específicas.
Além
disso, os Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios utilizam
estimativas oficiais da população para distribuir seus recursos. Os gestores
locais podem ficar prejudicados e receber menos recursos com o atraso do Censo,
o que impacta nas bases dos próprios parlamentares.
Após
o cancelamento, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liminar que
obriga o governo a realizar o Censo ainda este ano. O problema é que a liminar
não determina qual é o volume de recursos adequado para a realização da
pesquisa nem versa sobre a viabilidade da realização após cancelamento inicial.
Somente
o IBGE pode analisar se de fato há restrições reais para que o recenseamento
ocorra ou se ele é viável tecnicamente. Segundo o sindicato dos trabalhadores
do instituto, o Censo 2021 já estaria inviabilizado, pois não foram contratados
e treinados os 200 mil recenseadores necessários para a realização da pesquisa.
No
fim, a falta de priorização do Censo pelo governo e a transformação da pesquisa
em batalha política pode levar ao pior equilíbrio possível: o risco de um Censo
com menor qualidade técnica simplesmente para atender à decisão do STF.
Um
Censo atrasado, que já é ruim, pode ser “menos pior” do que um Censo malfeito.
Sem orçamento para a preparação necessária, mesmo um Censo em 2022 pode ficar
prejudicado.
Transparência,
periodicidade dos dados públicos e independência dos órgãos que mensuram a
realidade são parte importante do desenvolvimento institucional de um país.
Eles ajudam a revelar a realidade brasileira nas pesquisas científicas e
ilustrá-las nas páginas de jornais.
Por isso, a politização da realização do Censo em 2021 é preocupante. Seja por sua ausência ou pelo risco de uma realização com menor qualidade, neste ano, pode faltar bom Censo.
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