domingo, 9 de maio de 2021

Carlos Góes - Falta de bom Censo

- O Globo

A transformação da pesquisa em batalha política pode levar ao risco de um levantamento com menor qualidade técnica

O Brasil é um dos países com melhor qualidade de suas estatísticas no mundo. Diversas instituições públicas mantêm bases de dados detalhadas sobre regiões, empresas e indivíduos que permitem revelar fatos desconhecidos sobre a realidade brasileira.

Os dados sobre vínculos formais de emprego identificados no nível da empresa e do trabalhador, mantidos pelo Ministério da Economia, são utilizados por pesquisadores do mundo inteiro para estimar os efeitos de políticas públicas sobre o mercado de trabalho.

 Foi com eles que Rafael Dix-Carneiro, brasileiro professor da Universidade Duke, pôde estudar a liberalização comercial dos anos 1990 e concluir que a mobilidade de trabalhadores entre regiões brasileiras é muito lenta.

Esses dados não são úteis somente para responder perguntas econômicas. Combinando dados de auditorias da Controladoria-Geral da União e da Justiça Eleitoral, o professor da Universidade da Colúmbia Britânica e meu colega nesta coluna Cláudio Ferraz demonstrou que prefeitos em primeiro mandato tendem a cometer menos atos de corrupção.

Ou seja, a possibilidade de uma reeleição futura reduz os incentivos para corrupção presente.

Frequentemente eu uso dados do IBGE nesta coluna. Sem eles, eu e vocês teríamos um retrato muito menos preciso do que ocorre no país e quais são as possíveis tendências futuras.

O Brasil se destaca ainda mais quando comparado a outros países em desenvolvimento. Em 2015, quando os produtos desapareceram das prateleiras por causa da política de controle de preços da Venezuela, o governo simplesmente deixou de publicar o índice que media a escassez de produtos.

Durante muito tempo as estatísticas de inflação na Argentina não eram críveis, porque o governo interveio no instituto de estatística nacional para subestimar a inflação real.

Este ano, o Brasil deu um passo atrás. A realização do Censo decenal, programada inicialmente para 2020 e atrasada para 2021 por causa da pandemia, foi cancelada pelo governo federal sob a alegação de “falta de recursos”. A presidente do IBGE, Suzana Cordeiro Guerra, pediu demissão em protesto contra os cortes.

Só com o recurso alocado para emendas parlamentares (R$ 49 bi) daria para custear quase 25 censos (R$ 2 bi). Portanto, a realidade é que, no lugar de entendê-los como essenciais para o país, os gestores políticos entenderam que os recursos do Censo poderiam ser alvo de barganha política. É uma visão míope, por dois motivos principais.

O Censo é o único retrato preciso que temos da realidade dos municípios que não são capitais nem estão em Regiões Metropolitanas. Com dados desatualizados, é difícil saber o que priorizar em bairros e cidades específicas.

Além disso, os Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios utilizam estimativas oficiais da população para distribuir seus recursos. Os gestores locais podem ficar prejudicados e receber menos recursos com o atraso do Censo, o que impacta nas bases dos próprios parlamentares.

Após o cancelamento, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liminar que obriga o governo a realizar o Censo ainda este ano. O problema é que a liminar não determina qual é o volume de recursos adequado para a realização da pesquisa nem versa sobre a viabilidade da realização após cancelamento inicial.

Somente o IBGE pode analisar se de fato há restrições reais para que o recenseamento ocorra ou se ele é viável tecnicamente. Segundo o sindicato dos trabalhadores do instituto, o Censo 2021 já estaria inviabilizado, pois não foram contratados e treinados os 200 mil recenseadores necessários para a realização da pesquisa.

No fim, a falta de priorização do Censo pelo governo e a transformação da pesquisa em batalha política pode levar ao pior equilíbrio possível: o risco de um Censo com menor qualidade técnica simplesmente para atender à decisão do STF.

Um Censo atrasado, que já é ruim, pode ser “menos pior” do que um Censo malfeito. Sem orçamento para a preparação necessária, mesmo um Censo em 2022 pode ficar prejudicado.

Transparência, periodicidade dos dados públicos e independência dos órgãos que mensuram a realidade são parte importante do desenvolvimento institucional de um país. Eles ajudam a revelar a realidade brasileira nas pesquisas científicas e ilustrá-las nas páginas de jornais.

Por isso, a politização da realização do Censo em 2021 é preocupante. Seja por sua ausência ou pelo risco de uma realização com menor qualidade, neste ano, pode faltar bom Censo.

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