Era
para ser um texto leve sobre o Dia das Mães — uma oportunidade rara neste
espaço de saudar com delicadeza um domingo especial. Um domingo sem referências
a desassossego, pandemia ou Bolsonaro. Era para ser um texto leve, também, em
homenagem à radiação afetiva e contagiante de Paulo Gustavo, que deixou órfão
um Brasil inteiro. Seu humor, humanidade, talento e coerência com a vida
mereciam essa tentativa de leveza.
Mas
não deu. Fica para outra vez.
A
fuzilaria policial desencadeada quinta-feira na Favela do Jacarezinho, no Rio,
nos faz retroceder com crueza ao cotidiano nacional. O horizonte ficou
vermelho. Desta vez foram 28 os mortos (inclusive um policial civil) em
operação planejada para eliminar alvos, não fazer prisioneiros. Assim, de uma
só tacada, a série estatística sobre lei e ordem no estado, que já era
estarrecedora, deu novo salto. Segundo levantamento do Instituto de Segurança
Pública (ISP), 20.957 pessoas morreram em confronto com a polícia do Rio entre
janeiro de 1998 e março de 2021. Descascando melhor a frieza dessa matança, O
GLOBO deu uma recalculada para mais perto: ao longo dos últimos 23 anos, a
polícia do Rio matou, em média, uma pessoa a cada 10 horas.
Impossível chamar a isto de sociedade, nem de civilização ou exercício da lei.
Foi
tudo tão abissalmente errado na execução da invasão ao Jacarezinho que nem
sequer é necessário elencar, neste espaço, a cascata inteira de desvios. O
importante é frisar que, à exceção de um ou outro detalhe, foi tudo planejado
para terminar como terminou. A operação foi idealizada para ser espetaculosa,
ao estilo tous azimuts da
ocupação militar do Complexo do Alemão em 2010 — apenas sem apoio popular nem
da mídia, como houve à época. Desta vez, os delegados encarregados de
justificar a ação explicitaram um ato de fé. Ou, como apontou o advogado e
filósofo Silvio de Almeida, um ato de afirmação de poder pela Polícia Civil —
poder este que não se submete a nenhuma lei e que desconhece a Constituição.
“Foi um recado, uma mensagem em forma de espetáculo, assinado com o sangue no
chão e nas paredes das casas”, escreveu ele.
Nem
todo o sabão do mundo será capaz de erradicar as manchas da violência de Estado
impregnadas no Jacarezinho. Impossível esquecer o testemunho desamparado do pai
de uma menina de 9 anos que teve, primeiro, o quarto invadido por um suspeito
em fuga, já ferido; em seguida, pai e filha viram a policia irromper na casa à
procura do invasor. A execução parece ter sido a frio, antes de os moradores
conseguirem sair dali, rumo a um trauma indelével. “O maior desespero e a maior
tristeza para um pai é não ter ideia de como fazer para salvar um filho. Não
sei nem por onde começar”, disse ele. Referia-se ao futuro da filha. Vale para
o futuro do Brasil negro, pardo, pobre e trabalhador.
Imagens
de qualquer chacina, seja ela no Iraque, nos Estados Unidos ou no Rio de
Janeiro, embolam qualquer estômago minimamente humano. Por vezes, olhando para
além de paredes, pisos e camas tingidas de sangue, ou para além de mobiliários
contorcidos pela violência, é possível entrever pedaços de um cotidiano
destruído. Lana de Holanda, em seu perfil nas redes sociais, apontou para o
esmero na decoração de uma sala ensanguentada — as plantas que adornavam
prateleiras continuavam verdejantes. E um livro de Felipe Neto sem manchas
permanecia numa bancada. Outro internauta notou o controle remoto da Sky em
cima da mesma bancada, imaginando que aquela sala devia ser um local de
alegria, de família assistindo a futebol, série ou filme.
Para
o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, o caso é simples e segue a
lógica da pena de morte seletiva que vigora no Brasil: “Era tudo bandido”. (Das
27 vítimas consideradas suspeitas, pelo menos 25 tinham passagem pela polícia,
o que costuma ser suficiente para serem eliminados.) Felizmente, o entendimento
do ministro do Supremo Edson Fachin foi outro, levando-o a solicitar à
Procuradoria-Geral da República que investigue a ação num prazo de cinco dias.
Segundo ele, haveria indícios que poderiam configurar ter ocorrido uma
“execução sumária” no Jacarezinho.
Como falar de Dia das Mães num país onde a polícia e a milícia atiçadas pelo seu líder formam uma mesma tropa de combate à esperança? Não dá. Fica para 2022.
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