Mortos
de fome, de Covid, a bala, pobres se decepcionam menos com o presidente
Pouco
antes do segundo turno
de 2018, o Datafolha perguntou
qual era o candidato a presidente que mais defendia os ricos. Deu Jair
Bolsonaro com 55% e Fernando Haddad (PT) com 22%.
Quem
mais defendia os pobres? Haddad, 54%, Bolsonaro, 31%. Os mais pobres, com renda
familiar de menos de dois salários mínimos, eram algo mais estritos na
definição de classe: Bolsonaro defendia os mais ricos para 59%, Haddad defendia
os mais pobres para 60%.
“Tudo
bandido”, disse Hamilton Mourão sobre os mortos do
bairro pobríssimo e apartado do Jacarezinho (“apartado” também
no sentido de “apartheid”).
No que interessa aqui, tanto faz qual era a situação jurídica das vítimas do massacre: tanto fazia para Mourão. No universo mental bolsonariano atira-se primeiro, esquece-se depois. Os pobres e apartados em geral são “tudo bandido”, filho de porteiro que tira zero, empregada que viaja para fora, filho desajustado de mãe solteira, quilombola gordo imprestável etc. Tudo isso é mui sabido, inclusive o autoritarismo da turma: naquele Datafolha, Bolsonaro era o mais autoritário para 75%.
Nem
o insulto bolsonarista nem a injúria da vida dura bastam para fazer com que os
pobres larguem de vez Bolsonaro. É ingenuidade citar estatísticas
socioeconômicas para explicar bolsonarices, mas convém lembrar delas.
Foram
os pobres que mais perderam
emprego e renda na epidemia, bidu, os que mais ficaram sem
escola ou mesmo merenda. Segundo os estudos disponíveis (com dados do ano
passado), são os que mais adoecem e morrem de Covid-19.
Nos
últimos 12 meses, a inflação média para pessoas de renda muito baixa foi de
7,2%; para as de renda alta, 4,7% (dados da Carta de Conjuntura do Ipea). Desde
que Bolsonaro assumiu, a inflação média (IPCA) acumulada foi de 11,2% —o
salário médio subiu menos do que isso, o dos mais pobres, informais, menos
ainda, isso quando têm renda de trabalho. A inflação média da comida foi de
28,9%.
Apenas
entre os mais pobres Haddad deve ter vencido a eleição, segundo o Datafolha da
véspera da votação de 2018. No Datafolha mais recente, de março, 30% do
eleitorado dá “ótimo/bom” a Bolsonaro, com diferenças estatisticamente
irrelevantes entre as classes de renda. Mas a taxa de decepção com Bolsonaro é
muito maior entre os mais ricos (medida pela diferença entre a parcela dos que
dão nota “ótimo/bom” agora e a votação em 2018).
Os
pobres das grandes cidades vivem sob ocupação de milícias e facções, que são
também polícia do Estado de terror. A milícia é um modo alternativo de ascensão
social, por assim dizer, de ex-militares de baixa patente e agregados, a
mobilidade de parte do precariado. Já tem vínculos firmes com a política
municipal de regiões metropolitanas, avança nas Assembleias e pôs um pé no
Congresso e no poder federal, vide os Bolsonaro.
A
ocupação dos bairros pobres assim se institucionaliza, também no sentido de ter
apoio estatal permanente. Em um movimento de pinça, os Bolsonaro apoiam tanto
matanças policiais como milícias nos bairros pobres. Apresentadores de TV
sanguinários fazem a propaganda do bolsonarismo político e militar-miliciano.
É
fácil perceber que diagnósticos socioeconômicos não ajudam a explicar a
persistência do bolsonarismo popular, como não explicavam parte da política,
digamos, normal. Mas cabe a pergunta, que não é acadêmica: por que não
explicam?
É
assunto para outro dia, mas bolsonarismo tem a ver com machice, ressentimentos
e medos reativos vários, religião e autoritarismo “raiz”. Mas também é revolta
contra o “sistema” que larga os pobres à própria sorte, revolta que pode ter
essa ou aquela conformação, autoritária ou outra, a depender da conjuntura e da
política, de esquerda em particular.
Quem é que vai “lá” falar com os pobres?
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