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O Globo
O
formidável Tim Maia eternizou uma máxima brasileira que demonstra como, entre
nós, o paradoxal acaba sendo normalizado, às vezes em decorrência de uma
afabilidade presumida. “Prostituta tem orgasmo, traficante cheira e cafetão se
apaixona”, repetia às gargalhadas. Eram tempos outros, em que ainda se
acreditava que o país era abençoado por Deus. Bonito por natureza continua
sendo, mas com um governo que não sossega enquanto não torná-lo feio, degradado,
desesperançado.
André Trigueiro, meu colega da Globonews especialista em meio-ambiente, cunhou
uma dessas frases que refletem o estado das coisas, com a amargura que a frase
de Tim Maia não tinha. “Funai intimida indígenas. Fundação Palmares rechaça
movimento negro. Ministério do Meio Ambiente intimida fiscais do Ibama”. É um
retrato do país hoje, quando se distorce a função na medida dos interesses
regressivos de setores da sociedade que não querem se enquadrar nos códigos
modernizantes que regem o mundo ocidental.
No caso do desmatamento, o país, que já teve voz importante na questão, hoje é
tido como vilão contra o meio-ambiente, a ponto de as exportações brasileiras
estarem em xeque. Delegado da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva, que
apreendeu toneladas de troncos arrancados ilegalmente, acabou sendo afastado da
função, e a carga liberada.
Teve que recorrer ao Supremo Tribunal Federal com uma notícia-crime contra o
ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, e presidente do Ibama Eduardo Bim, e
o senador de Roraima Telmário Mota que, juntamente com outros deputados e
senadores da região, pressionaram o ministério do Meio-Ambiente a favor dos
madeireiros.
Já o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, um negro racista,
desde que assumiu o cargo, vem dando declarações contra os movimentos negros,
que seriam “uma escória maldita”, e classificou Zumbi como “um filho da puta
que escravizava negros”. Tomou decisões polêmicas, como mandar retirar da lista
de “personalidades negras” da Fundação nomes como Marina Silva, Benedita da
Silva, Gilberto Gil, Madame Satã, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Elza
Soares.
Sérgio Camargo foi considerado “inapto” para a função pela ONU, que enviou uma
carta ao governo brasileiro questionando ações da Fundação, como a redução das
áreas quilombolas. Já a Funai tem na sua origem o Serviço de Proteção ao Índio,
criado pelo Marechal Rondon mas, no governo Bolsonaro, começou a ser
desmontada.
Um dos primeiros atos do novo governo foi passar a demarcação de terras
indígenas e de quilombolas para o ministério da Agricultura, o que não
aconteceu porque o Congresso mudou a medida provisória para manter o controle
no ministério da Justiça. A ação da Funai, porém, vem sendo muito criticada,
inclusive nessa pandemia, por não ter lutado para que os indígenas e
quilombolas tivessem prioridade para a vacinação.
Para completar, a própria Funai pediu à Polícia Federal que abrisse um
inquérito contra a líder indígena Sônia Guajajara, que foi intimada a prestar
depoimento sobre as críticas feitas contra o Governo federal em um documentário
da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que ela coordena.
O documentário “Maracá” retrata, em episódios, a maneira como os índios estão
sendo tratados nessa pandemia, e foi considerado pela Funai uma ação de
“calúnia e difamação”, e não um protesto daqueles que deveria proteger. O juiz
Frederico Botelho, de Brasília, mandou arquivar o inquérito e disse que houve
uma tentativa de usar a Lei de Segurança Nacional contra a líder indígena.
Esses paradoxos regressivos têm provocado até mesmo problemas familiares. O pai
de Sérgio Camargo é um tradicional e importante líder negro e, embora não
o critique, diz que tem uma “distância de ideias, um valor bastante fundo”. A filha
de Regina Duarte, a também atriz Gabriela Duarte, deixa claro que não
compartilha as mesmas bandeiras ideológicas da mãe. E o embaixador aposentado
Luiz Felipe Seixas Correa considerava que, à política externa que seu genro
Ernesto Araújo comandava, faltava clareza.
Essa distorção dos organismos institucionais existentes tem provocado uma
regressão cultural marcante nesses dois anos e meio de governo Bolsonaro,
fazendo com que o país perca o papel de destaque que já teve nessas e em outras
áreas, como a da cultura, cujo secretário, Mario Frias, diz que o governo não
tem obrigação de “bancar marmanjo”, referindo-se à Lei Rouanet.
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