EDITORIAIS
Bolsonaro, aprendiz de Lula
O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro ainda não tem
partido político. Nem precisa: usa o Estado como sua máquina partidária e os
recursos públicos como verba de campanha.
Sempre que resolve passear e fazer comício,
o que tem acontecido com muita frequência, o presidente obriga o Estado a se
desdobrar, a um custo em geral milionário, para lhe garantir segurança e
bem-estar.
Todo chefe de governo, quando se desloca,
requer esse tratamento, e é justo que seja assim: afinal, o presidente é o
principal líder político e administrativo do País. Mas supõe-se que essa
estrutura exista basicamente para dar conforto e proteção ao presidente
sobretudo quando está a trabalho, como esperam os contribuintes de cujos impostos
sai o dinheiro para bancá-la.
Vá lá que o chefe de governo também tenha
direito a algum descanso, razão pela qual o Estado também deve lhe providenciar
escolta e tranquilidade em seus momentos de relaxamento, pois o presidente não
deixa de sê-lo só porque eventualmente está de folga.
O problema é que os momentos de refrigério do presidente se multiplicaram a tal ponto que hoje se tornou difícil dizer quando Bolsonaro está de férias e quando está trabalhando. Em meio à pandemia de covid-19, que tem obrigado os brasileiros em geral aos mais duros sacrifícios, o presidente, entusiasta do dolce far niente, achou que era o caso de mobilizar o aparato oficial, a um custo estimado em R$ 2,4 milhões, para se divertir em praias de São Paulo e em Santa Catarina entre os dias 19 de dezembro e 4 de janeiro.
Chamado pela Câmara para explicar a
extravagância, o ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Wagner
Rosário, disse que o alto custo da viagem se deveu à estrutura necessária para
atendimento dos protocolos sanitários em razão da pandemia – embora Bolsonaro
tenha aparecido na praia sem máscara e provocando aglomerações. Ademais, disse
o ministro Rosário, Bolsonaro estava ali a trabalho, pois “presidente da
República não tem direito a férias”.
Pode parecer estranho que o ministro tenha
chamado de “trabalho” uma viagem do presidente à praia, mas, do ponto de vista
bolsonarista, o principal “trabalho” do presidente é fazer campanha por sua
reeleição – e nesse labor Bolsonaro não descansa jamais, a ponto de transformar
seus frequentes passeios em oportunidades para fazer comícios. Tudo bancado com
dinheiro que deveria ser usado para financiar os gastos do presidente, e não as
despesas da campanha do postulante à reeleição.
No fim de semana passado, Bolsonaro veio a
São Paulo especialmente para participar de um passeio de motos. A presença do
presidente obrigou o governo paulista a providenciar um enorme aparato de
segurança, a um custo de R$ 1,2 milhão.
O Brasil é um dos poucos países do mundo
que dispõem de uma Justiça Eleitoral, e são essas ocasiões que deveriam servir
para justificar sua existência. Afinal, está claro que o presidente Bolsonaro
está em plena campanha antecipada, proibida pela legislação eleitoral, fazendo
de seus caríssimos “passeios” meros pretextos para reiterar promessas
eleitorais e atacar adversários.
Muitas vezes é difícil distinguir o que é
um ato de governo e o que é um evento eleitoral. No caso de Bolsonaro, contudo,
está cada vez mais fácil: tudo se presta a lhe servir de palanque. Por isso,
fez bem o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União ao encaminhar
ofício ao Tribunal Superior Eleitoral questionando o caráter dos eventos
protagonizados por Bolsonaro, pois são óbvios atos de propaganda eleitoral
ilegal. Conforme lembra o ofício, noticiado pelo Valor, cabe ao TSE,
“garantir a lisura e a paridade dos candidatos nas disputas eleitorais”. É o
mínimo que se espera numa República decente.
Mas, como já ensinava o então presidente
Lula da Silva, mestre da desfaçatez, quando fazia campanha antecipada à
reeleição em 2006, “um homem público não precisa de época de eleição para fazer
campanha, ele faz campanha da hora em que acorda à hora em que dorme: 365 dias
por ano”. Bolsonaro é um aplicado aprendiz de Lula.
A Lei de Improbidade
O Estado de S. Paulo
Atropelando a comissão especial que desde
2019 estuda a reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), o
presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), pautou para
esta semana a votação em plenário da matéria. Ainda não se conhece a versão
final do texto, sob relatoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP).
É evidente a necessidade de reforma da
legislação sobre a improbidade administrativa. Mas o modo de proceder do
presidente da Câmara não condiz com a seriedade do tema. O País precisa de um
marco jurídico sóbrio e idôneo, impossível de ser feito às pressas e sem a
devida transparência.
Aprovada sob a promessa de instaurar um
novo padrão de moralidade na administração pública, a Lei 8.429/92 não cumpriu
seu propósito de acabar com os malfeitos envolvendo a gestão pública. Além
disso, em quase 30 anos de vigência, a lei gerou um cenário de grande
insegurança jurídica.
Ao tentar redigir um texto capaz de abarcar
tudo o que fosse contrário à administração pública, o Congresso acabou por
aprovar, em 1992, uma lei excessivamente vaga, sujeita a dúbias interpretações.
O art. 11 da Lei 8.429/92 é exemplo da
falta de precisão. “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta
contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que
viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às
instituições”, diz o texto legal. Assim, na prática, a Lei 8.429/92 permite,
por exemplo, que o Ministério Público considere ato de improbidade
administrativa qualquer decisão da prefeitura da qual discorde.
Dessa forma, a lei que vinha acabar com os
malfeitos no âmbito da administração pública ampliou irrazoavelmente a
discricionariedade dos órgãos de controle, com resultados negativos para toda a
coletividade. A máquina pública tornou-se mais lenta e menos eficiente; e o
controle, menos técnico e mais político.
A redação ampla da Lei de Improbidade
Administrativa também desestimulou muita gente honesta a atuar nos órgãos
públicos. Não há como negar: a possibilidade de ser enquadrado em alguma
hipótese da lei é enorme ônus para quem se dispõe a atuar na vida pública. A
passagem por um cargo público pode depois significar anos de batalhas
judiciais.
Ao mesmo tempo, nesse estado de coisas, muitos
gestores simplesmente deixaram de tomar decisões, esperando ser obrigados pela
Justiça a atuar. É a administração da coisa pública por ordem judicial, para
evitar processos por improbidade.
Além de conduzir ao chamado “apagão de
canetas”, tal fenômeno representa grave inversão de funções. Decisões de
natureza executiva, que deveriam ser tomadas por quem tem responsabilidade
política, são definidas pelo Ministério Público ou pelo Judiciário. No entanto,
a Lei de Improbidade Administrativa deveria estimular a responsabilidade, e não
a omissão do gestor público.
Diante de tal cenário, em 2019, a Câmara
dos Deputados criou um grupo de juristas, coordenado pelo ministro Mauro
Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que redigiu uma proposta de
reforma da legislação sobre improbidade administrativa. Depois, o texto foi
encaminhado para estudo de uma comissão especial da Câmara.
Agora, antes mesmo de o texto da comissão
ser apresentado, Arthur Lira pautou a votação da matéria. Trata-se de perigoso
açodamento. É preciso sair da atual situação de criminalização da atividade
político-administrativa, mas não se deve cair em cenário oposto, a favorecer a
impunidade e a autorizar práticas perniciosas, como o nepotismo.
A legislação sobre improbidade administrativa
deve trazer critérios claros e precisos. O gestor público deve saber com
segurança o que pode e o que não pode fazer. O Ministério Público deve dispor
de meios para coibir com eficiência eventuais ilegalidades, mas sem interferir
na gestão pública.
Nada disso é alcançado com afoiteza. Se o
objetivo é promover a segurança jurídica e a moralidade pública, o próprio
Congresso deve atuar com cuidado e transparência.
O custo da irresponsabilidade
O Estado de S. Paulo
Como mostrou reportagem do Estado, os Estados endividados que negociam
seu ingresso no novo Regime de Recuperação Fiscal começam a enfrentar
resistência nas Assembleias Legislativas. A União precisa se precaver para que
não se repita o roteiro dos últimos anos, em que unidades federadas em estado
falimentar recebem o benefício da suspensão das dívidas sem promover as medidas
de reajuste contratadas, repassando aos demais membros da Federação, na
prática, o custo de sua irresponsabilidade.
O agravamento da crise fiscal dos Estados
se tornou um fenômeno cíclico e crônico. No final dos anos 90, promoveu-se uma
ampla rodada de negociação das dívidas com o Tesouro Nacional. Entre 2002 e
2014 a dívida dos entes subnacionais caiu 0,8% ao ano, mas entre 2014 e 2018
subiu 0,5% ao ano, obrigando a novas operações de socorro. Em 2016, 20 Estados
aderiram à renegociação das dívidas com a União, adotando como contrapartida as
regras do teto de gastos com pessoal. Contudo, 11 desses Estados não cumpriram
o prometido.
O caso mais grave e paradigmático é o do
Rio de Janeiro. Em 2017, o Rio aderiu ao Regime de Recuperação Fiscal. Entre as
exigências para a suspensão da dívida estavam a obrigação de não contratar
funcionários nem conceder aumentos salariais, fixar teto para as despesas
obrigatórias e privatizar estatais. Por meio de todo tipo de manobra, o Rio
burlou praticamente todas essas contrapartidas. Até meados do ano passado,
pelas contas do Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal do
Estado, o governo fluminense estava cerca de 85% abaixo da meta pactuada.
No fim de 2020, o Congresso instituiu o
novo Regime de Recuperação Fiscal, que harmonizou regras contábeis para impedir
que os Estados “maquiassem” o real estado de suas finanças, redefiniu
contrapartidas e flexibilizou os critérios de ingresso no Regime de
Recuperação. Estima-se que o programa proporcionará um alívio de R$ 217 bilhões
aos governos endividados. Os 11 Estados que descumpriram seus acordos firmados
em 2016, por exemplo, ficaram livres de penalidades que custariam R$ 43
bilhões. Some-se a isso o fato de que, segundo o Banco Central, com o socorro
federal durante a pandemia e a arrecadação superior à prevista, os entes
subnacionais fecharam 2020 com um superávit primário de mais de R$ 40 bilhões.
Mas, apesar das concessões da União – ou,
talvez, justamente por causa delas –, muitos Estados dão sinais de que
pretendem reeditar seus estratagemas para embolsar o bônus e se furtar ao ônus,
e, ao invés de utilizar o alívio momentâneo para reestruturar seus gastos, se
valerão dele como um anestésico para mascarar sua indisciplina e procrastinar
suas obrigações.
Estados como Goiás, Pará, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, por exemplo, já aprovaram medidas como
reajustes ou aditivos salariais, gratificações ou novos concursos públicos. A
Assembleia do Rio de Janeiro aprovou uma lei que desconta do cálculo das despesas
de pessoal os custos bancados por royalties do petróleo, o que na prática
permitirá ao Estado despender artificialmente acima do teto previsto na Lei de
Responsabilidade Fiscal. O governo fluminense também tem acenado que não
utilizará os R$ 18 bilhões faturados com a concessão da Cedae para honrar
dívidas.
As novas regras exigem que os Estados que aderirem ao Regime de Recuperação implementem as contrapartidas de reajuste em 180 dias para que o plano seja homologado. Como apurou o Estado, sob o pretexto da proximidade do ano eleitoral, nas Assembleias do Rio e de Minas Gerais, dois dos Estados em pior situação fiscal, já se fala eufemisticamente em “atalhos” para que sejam aceitos no programa sem cumprir o roteiro de reajuste. Espera-se que, ao contrário do habitual, a União seja rigorosa ao exigir as obrigações previstas em lei, e que o Judiciário não condescenda à irresponsabilidade suspendendo essas obrigações por meio de generosas liminares a prazo indeterminado. Do contrário, os “atalhos” tomados por Estados irresponsáveis serão mais uma vez revertidos em custos para os outros entes da Federação.
Recorde de desigualdade na pandemia
O Globo
Uma pesquisa do Centro de Políticas Sociais
da Fundação Getulio Vargas (FGV) traduz em números um fenômeno que já podia ser
sentido de forma empírica nas principais cidades brasileiras durante a
pandemia. Trabalhadores com mais educação e maior renda em geral se adaptaram
ao trabalho remoto. No outro extremo, os menos preparados sofreram com o
fechamento ou com a queda de faturamento de segmentos que absorvem grandes
quantidades de mão de obra menos qualificada, em particular a empregada no
trabalho informal.
Usando o conceito de renda efetiva do
trabalho, que considera o dinheiro de fato recebido pela população, a pesquisa,
coordenada pelo economista Marcelo Neri, demonstra que a distância entre ricos
e pobres nunca foi tão grande desde que a medida começou a ser feita, em 2012.
O índice de Gini, segundo o qual 1 equivale a uma sociedade totalmente desigual
e 0 a uma sem nenhuma desigualdade, é a métrica adotada para estimar essa
distância. No primeiro trimestre de 2020, o Gini era 0,642. Passado um ano,
pulou para 0,674. Numericamente, são centésimos. Em termos de desigualdade, é
um salto enorme. A renda média per capita caiu 10,9% entre o primeiro trimestre
de 2020 e o mesmo período de 2021. Para a metade mais pobre dos trabalhadores,
a queda foi de 20,8%. Em outras palavras, todo mundo perdeu, mas quem ganha
menos perdeu bem mais.
A pandemia acelerou uma tendência anterior
à Covid-19. A disparidade entre a renda dos trabalhadores brasileiros registrou
seu nível mais baixo no final de 2014. De lá para cá, as crises, recessões e o
crescimento econômico sofrível aumentaram a quantidade de desalentados (aqueles
que desistiram de procurar emprego), mantiveram a taxa de desemprego em níveis
altos e fizeram o Gini subir constantemente.
Diante desse quadro, fica claro mais uma
vez — para quem quiser ver — que o Brasil precisa agir. Para reduzir o mais
rápido possível o número escandaloso de quase 15 milhões de desempregados e 6
milhões de desalentados, é urgente vacinar toda a população, fazer campanhas
sobre os cuidados que mesmo os vacinados devem ter e adotar quarentenas quando
os índices de infecções e mortes aumentarem. Como mostra o exemplo britânico,
novas cepas do coronavírus impõem a adoção de medidas restritivas mesmo quando
boa parte da população está imunizada. Quanto mais rápido nos livrarmos do
vírus, mais prontamente veremos os empregos voltarem.
Outra questão crucial é a modernização do
Estado, por meio da reforma administrativa. O serviço público abriga a parcela
da população mais privilegiada, que menos sofreu na pandemia. É uma verdadeira
máquina de gerar desigualdade, em que as corporações se aferram aos privilégios
de modo canino.
Por fim, é preciso retomar o caminho
virtuoso dos programas voltados para a melhoria da educação e para a inclusão
produtiva dos jovens. É necessário acabar com as políticas sociais sabidamente
ineficazes, como abonos salariais, para concentrar esforços na população
realmente necessitada e naquilo que funciona.
CPI revela por que sobrou cloroquina e
faltaram vacinas para os brasileiros
O Globo
Por mais que Bolsonaro hoje tente antecipar
a entrega de remessas da Pfizer, a CPI da Covid vai empilhando provas sobre
provas de seu desdém pelas vacinas e de sua aposta em medicamentos ineficazes
contra a Covid-19, como a cloroquina e a hidroxicloroquina.
De acordo com documentos entregues à CPI a
que o “Jornal Nacional” teve acesso, em julho de 2020 a embaixada do Brasil em
Pequim informou ao Itamaraty que o governo chinês queria fazer uma reunião com
ministros das Relações Exteriores da América Latina e do Caribe para tratar da
pandemia. O então chanceler Ernesto Araújo esnobou o convite. Alegou que a
presença do “governo ilegítimo da Venezuela” inviabilizaria o encontro. Balela.
Mesmo depois de informado que o país vizinho não integrava a lista de
convidados, Araújo não arredou pé da decisão. Soube-se mais tarde que a China
pretendia oferecer uma linha de crédito de US$ 1 bilhão para a compra de
vacinas.
Não foi a única demonstração de pouco-caso
com imunizantes. À medida que os trabalhos da CPI avançam, fica cada vez mais
nítido o quadro de negligência. O governo não fazia o menor esforço para
comprar doses de vacina, enquanto outros países reservavam quantidades
colossais.
As ofertas da Pfizer para entregas a partir
de dezembro de 2020 foram ignoradas pelo Ministério da Saúde. O ex-secretário
executivo da pasta Elcio Franco, número dois de Pazuello, chegou a dizer que
não pôde responder aos e-mails porque seu computador estava com problema.
Patético.
Informações também em poder da CPI mostram
que, em 29 de maio de 2020, o embaixador do Brasil em Washington, Nestor
Forster, comemorou a doação de 2 milhões de doses de cloroquina pelo governo
americano em e-mail enviado a Norberto Moretti, então secretário de Comércio
Exterior do Itamaraty: “Caro Norberto, Habemus hidroxicloroquinam!”. Na época, a droga
já estava desacreditada para tratamento da Covid-19.
Hoje o país sente o reflexo da política
torta que privilegiou medicamentos sem eficácia em detrimento das vacinas. O
Brasil tem mais de 660 milhões de doses contratadas, quantidade mais que
suficiente para imunizar toda a população (213 milhões). Mas nem um terço desse
total está disponível, porque as encomendas foram feitas tarde demais. A maior
parte das entregas está prevista para o segundo semestre.
Se tivéssemos aplicado 2 milhões de doses
por dia nos últimos três meses, pelo menos 60 mil vidas teriam sido salvas,
segundo estimou estudo da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade
Estadual Paulista (Unesp). A projeção foi feita a partir de dados reais de
vacinação no primeiro trimestre. Ontem o Brasil vacinou 1,2 milhão com a primeira
e a segunda doses.
Está claro que não foi só incompetência ou omissão. A cada dia, informações que chegam à CPI mostram que o desdém pelas vacinas e a aposta na cloroquina foram um ato deliberado do governo. É preciso que os responsáveis paguem por suas decisões.
Opção na pandemia
Folha de S. Paulo
Passaporte da imunidade, alvo da
mistificação de Bolsonaro, facilita gestão
O Senado aprovou uma permissão para que o
poder público institua o chamado passaporte
da imunidade, já objeto de uma controvérsia política pouco
produtiva.
Conforme o projeto, em situações de surtos
ou de epidemias de doenças infectocontagiosas quaisquer, União, estados, o
Distrito Federal e municípios poderão autorizar que pessoas vacinadas ou
testadas tenham acesso a certos serviços e locais públicos e privados de algum
modo sujeitos a restrições devido a problemas sanitários.
A inspiração do texto, que ainda precisa
passar pelo crivo da Câmara dos Deputados, vem obviamente das dificuldades
criadas pela Covid-19 e de medidas similares adotadas em outros países.
O presidente Jair Bolsonaro de pronto
afirmou que pretende
vetar a proposta, pois não teria cabimento “a vacina ser obrigatória
no Brasil” —como disse à sua claque no Palácio da Alvorada.
Como de costume, Bolsonaro faz propaganda
ideológica e aposta na confusão. O projeto de lei que cria o Certificado de
Imunização e Segurança Sanitária (CSS), o passaporte, não determina que
cidadãos sejam testados ou vacinados.
Procura, isso sim, dar segurança jurídica à
possível adoção de mais uma providência que possa limitar os danos sanitários,
sociais e econômicos de um surto ou epidemia.
Nesse caso particular, a intenção é
justamente abrandar as restrições à circulação de pessoas que, mais do que
criticadas, são sabotadas pelo presidente.
Medidas do gênero já são adotadas pelo
país, do limite a movimentações pelas cidades à exigência de uso de máscaras
—trata-se, aliás, de providências cabíveis ou implementadas em várias situações
de risco de saúde. Se um dispositivo legal permite relaxar com segurança tais
limitações, tanto melhor.
Um problema possível, porém, é o
afrouxamento excessivo. A vacinação não garante imunidade, no sentido estrito,
nem impede sempre a transmissão do vírus.
Decerto um conjunto de pessoas integralmente
vacinadas, em um ambiente ainda sujeito a cuidados adicionais, como o uso de
máscaras, correrá risco bem baixo. No entanto, como se vê em tantas
aglomerações ilegais, inseguras e irresponsáveis, a possibilidade de excessos
não é desprezível.
Em uma situação de escassez de vacinas, há
também o risco de que se leve à Justiça a hipótese de discriminação negativa. A
maioria da população não se imunizou apenas porque não há doses disponíveis.
No mais, o texto do projeto não esclarece
como será criada a base de dados que permita a emissão do certificado de
imunidade. Fala-se em uma “plataforma digital”, mas não se sabe como as
informações chegarão até lá, como serão certificadas e como será fiscalizado e
financiado tal serviço. O projeto precisa ser aperfeiçoado ou objeto de
regulamentação clara.
De todo modo, tal instrumento jurídico permite a administração mais racional da epidemia, a critério de governadores e prefeitos. Não é solução —e muito menos motivo para batalha ideológica.
Poupar energia
Folha de S. Paulo
Convém debater desde já incentivos para a
redução do consumo de eletricidade
Represas das usinas hidrelétricas estão a
esvaziar-se, sobretudo no Sudeste e no Centro-Oeste, entrando no período de
estiagem com níveis inseguros para garantir fornecimento de eletricidade no
final do ano. Não se descarta a ocorrência de apagões por novembro, nos
horários de pico.
Mais uma vez o país se vê forçado a
improvisar, numa crise para a qual não se organizou. Sim, fenômenos climáticos
como La Niña estão por trás da pior estiagem em décadas, mas não são
desconhecidos; há muito já deveriam ter sido computados entre fatores
contingentes contra os quais cabe precaver-se.
No sufoco, restam poucas opções de curto
prazo para assegurar oferta de energia bem no momento em que a economia
nacional ensaia alguma recuperação. O primeiro recurso, quase o único, está no
acionamento constante das termelétricas para suprir a eletricidade que deixa de
ser produzida nas turbinas hidráulicas.
O consumidor é o primeiro a pagar pela
crise. Essas usinas de reserva têm operação cara, e o custo recairá sobre
clientes. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) agora dá como certo
que as tarifas avancem para a bandeira vermelha 2, com acréscimo de 20% nas
contas de luz.
Mais limitadas são opções como importar
energia extra da Argentina e do Uruguai. Ou, ainda, acelerar obras de linhas de
transmissão —com os obstáculos orçamentários e burocráticos a que estão
sujeitos os investimentos públicos.
A maior interligação dos subsistemas permitiria
distribuir cargas entre regiões com regimes pluviométricos díspares, aumentando
a robustez do todo. Não se estendem milhares de quilômetros de linhões da noite
para o dia, contudo.
Outra providência seriam incentivos para diminuir a demanda de eletricidade em horários de pico. Descontos tarifários poderiam ser ofertados a empresas e domicílios capazes de deslocar o consumo para períodos do dia em que a atividade se reduz, como o noturno. Convém, de fato, que essa alternativa seja debatida desde já.
Pautas do retrocesso político chegam a
plenário na Câmara
Valor Econômico
Câmara e Bolsonaro buscam o passado e
desprezam o futuro
Em novo surto de ativismo do presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), irão direto a plenário projetos que representam
retrocessos no campo político e no combate à corrupção. Há mais a caminho: em
breve, ainda no primeiro semestre, serão votadas propostas que modificam as
regras eleitorais, eliminando as boas modificações introduzidas em 2017, e
buscando ressuscitar, mais uma vez, o voto impresso. Em determinados assuntos a
inação dos deputados seria uma bênção para os cidadãos e os bens públicos.
A Câmara deve votar logo o projeto que
modifica a lei de improbidade administrativa (8429, de 2 de junho de 1992, do
governo Collor). De autoria de Roberto Lucena (Pode-SP), ele traz uma lufada de
tranquilidade a administradores e agentes públicos que deixam de fazer a coisa
certa. A lei vigente discrimina ações dolosas e culposas para uma série de
condutas, como ordenar despesas não autorizadas em lei, negligência na
arrecadação de tributos, na celebração e fiscalização de prestação de contas de
parcerias, negação de publicidade aos atos oficiais, ilicitudes em concursos
públicos e falta de prestação de contas, mesmo quando ela é obrigatória. O
projeto de lei 2522, de 2015, retira a menção a ações culposas, isto é, aquelas
em que houve dano por imprudência, negligência ou imperícia (falta de
habilidade técnica, por exemplo).
Ficaram em cena as ações dolosas, nas que
houve intenção de praticar os atos lesivos. O projeto pretende coibir a
criminalização extensa dos atos dos agentes públicos inscritas em lei, mas na
prática elimina punições que fazem sentido e figurariam em qualquer código
transparente e republicano. Há prefeitos processados por não prestar contas ou
dar publicidade de seus atos, o mínimo que um bom administrador não pode deixar
de fazer. É certo que há casos em que o administrador prefere a inação a
incorrer no amplo e circunstanciado leque de delitos, mas não são maioria. São
mais comuns os abusos de prefeitos, governadores e servidores, que fazem o que
bem entendem, acham que não devem satisfação a ninguém.
O projeto de lei, apoiado pelo presidente
Jair Bolsonaro, que se opõe a “engessar” a ação dos prefeitos, deixará de lado,
por exemplo, crimes que são a essência da apropriação do aparelho de Estado por
interesses privados, como o emprego de parentes e a célebre “carteirada”, uso
de status de autoridade pública para obter privilégios, burlar leis e coagir
quem as quer cumpridas por todos.
Na prática o projeto circunscreve a
improbidade ao “acréscimo ilícito ao patrimônio” (vulgo roubo). Lucena
justifica sua escolha. “Existem os atos que não implicam relevante dano ao
erário, embora sejam atos que ofendam a moralidade e às vezes ao patrimônio
administrativo. Possuem baixo poder ofensivo - ou baixa relevância, ou baixa
significância -, mas são ontologicamente atos de improbidade”. Para o
enriquecimento ilícito o limite das penas foi rebaixado de 8 a 10 anos para 4 a
10 anos.
O desmanche das boas mudanças na legislação
eleitoral, que entrará na pauta, tem efeitos mais gerais e deletérios para o
sistema político. O “puxadinho” de permitir as federações entre partidos, que
interessa às legendas que ficaram para trás com a cláusula de barreira - 15,
pelos números do pleito de 2018 - é uma forma de manter o Legislativo congestionado
de legendas que não merecem esse nome. A dose que reúne o “distritão” - só os
mais votados são eleitos -, a volta das coligações para pleitos proporcionais,
que faz com que o eleitor vote em um candidato e eleja outro (em geral, pior) e
a ofensiva contra a cláusula de barreira é letal para as aspirações de um
sistema mais democrático e representativo, e para o avanço de decisões
legislativas conscientes em torno de princípios.
À maior parte dos 28 partidos que recebem
dinheiro do fundo eleitoral e partidário, e tempo de TV, interessa manter o
péssimo status quo e uma existência na qual não precisam batalhar sempre para
conquistar o maior número de filiados e, assim, progredir financeira e
politicamente. A roda da política aqui gira em sentido inverso. É a perspectiva
de um dinheiro do Estado que leva aventureiros de todo o tipo a criar um
partido, para receber verbas e depois “vender” seu apoio aos necessitados do
“presidencialismo de coalizão”.
Há quem veja, como o presidente da República, que o principal problema não está aí, mas na ausência de voto impresso, objeto de grossas fraudes, só eliminadas pelo voto eletrônico. Câmara e Bolsonaro buscam o passado e desprezam o futuro.
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