quarta-feira, 16 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Bolsonaro, aprendiz de Lula

O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro ainda não tem partido político. Nem precisa: usa o Estado como sua máquina partidária e os recursos públicos como verba de campanha.

Sempre que resolve passear e fazer comício, o que tem acontecido com muita frequência, o presidente obriga o Estado a se desdobrar, a um custo em geral milionário, para lhe garantir segurança e bem-estar.

Todo chefe de governo, quando se desloca, requer esse tratamento, e é justo que seja assim: afinal, o presidente é o principal líder político e administrativo do País. Mas supõe-se que essa estrutura exista basicamente para dar conforto e proteção ao presidente sobretudo quando está a trabalho, como esperam os contribuintes de cujos impostos sai o dinheiro para bancá-la.

Vá lá que o chefe de governo também tenha direito a algum descanso, razão pela qual o Estado também deve lhe providenciar escolta e tranquilidade em seus momentos de relaxamento, pois o presidente não deixa de sê-lo só porque eventualmente está de folga.

O problema é que os momentos de refrigério do presidente se multiplicaram a tal ponto que hoje se tornou difícil dizer quando Bolsonaro está de férias e quando está trabalhando. Em meio à pandemia de covid-19, que tem obrigado os brasileiros em geral aos mais duros sacrifícios, o presidente, entusiasta do dolce far niente, achou que era o caso de mobilizar o aparato oficial, a um custo estimado em R$ 2,4 milhões, para se divertir em praias de São Paulo e em Santa Catarina entre os dias 19 de dezembro e 4 de janeiro.

Chamado pela Câmara para explicar a extravagância, o ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, disse que o alto custo da viagem se deveu à estrutura necessária para atendimento dos protocolos sanitários em razão da pandemia – embora Bolsonaro tenha aparecido na praia sem máscara e provocando aglomerações. Ademais, disse o ministro Rosário, Bolsonaro estava ali a trabalho, pois “presidente da República não tem direito a férias”.

Pode parecer estranho que o ministro tenha chamado de “trabalho” uma viagem do presidente à praia, mas, do ponto de vista bolsonarista, o principal “trabalho” do presidente é fazer campanha por sua reeleição – e nesse labor Bolsonaro não descansa jamais, a ponto de transformar seus frequentes passeios em oportunidades para fazer comícios. Tudo bancado com dinheiro que deveria ser usado para financiar os gastos do presidente, e não as despesas da campanha do postulante à reeleição.

No fim de semana passado, Bolsonaro veio a São Paulo especialmente para participar de um passeio de motos. A presença do presidente obrigou o governo paulista a providenciar um enorme aparato de segurança, a um custo de R$ 1,2 milhão.

O Brasil é um dos poucos países do mundo que dispõem de uma Justiça Eleitoral, e são essas ocasiões que deveriam servir para justificar sua existência. Afinal, está claro que o presidente Bolsonaro está em plena campanha antecipada, proibida pela legislação eleitoral, fazendo de seus caríssimos “passeios” meros pretextos para reiterar promessas eleitorais e atacar adversários.

Muitas vezes é difícil distinguir o que é um ato de governo e o que é um evento eleitoral. No caso de Bolsonaro, contudo, está cada vez mais fácil: tudo se presta a lhe servir de palanque. Por isso, fez bem o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União ao encaminhar ofício ao Tribunal Superior Eleitoral questionando o caráter dos eventos protagonizados por Bolsonaro, pois são óbvios atos de propaganda eleitoral ilegal. Conforme lembra o ofício, noticiado pelo Valor, cabe ao TSE, “garantir a lisura e a paridade dos candidatos nas disputas eleitorais”. É o mínimo que se espera numa República decente.

Mas, como já ensinava o então presidente Lula da Silva, mestre da desfaçatez, quando fazia campanha antecipada à reeleição em 2006, “um homem público não precisa de época de eleição para fazer campanha, ele faz campanha da hora em que acorda à hora em que dorme: 365 dias por ano”. Bolsonaro é um aplicado aprendiz de Lula.

A Lei de Improbidade

O Estado de S. Paulo

Atropelando a comissão especial que desde 2019 estuda a reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), pautou para esta semana a votação em plenário da matéria. Ainda não se conhece a versão final do texto, sob relatoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP).

É evidente a necessidade de reforma da legislação sobre a improbidade administrativa. Mas o modo de proceder do presidente da Câmara não condiz com a seriedade do tema. O País precisa de um marco jurídico sóbrio e idôneo, impossível de ser feito às pressas e sem a devida transparência.

Aprovada sob a promessa de instaurar um novo padrão de moralidade na administração pública, a Lei 8.429/92 não cumpriu seu propósito de acabar com os malfeitos envolvendo a gestão pública. Além disso, em quase 30 anos de vigência, a lei gerou um cenário de grande insegurança jurídica.

Ao tentar redigir um texto capaz de abarcar tudo o que fosse contrário à administração pública, o Congresso acabou por aprovar, em 1992, uma lei excessivamente vaga, sujeita a dúbias interpretações.

O art. 11 da Lei 8.429/92 é exemplo da falta de precisão. “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”, diz o texto legal. Assim, na prática, a Lei 8.429/92 permite, por exemplo, que o Ministério Público considere ato de improbidade administrativa qualquer decisão da prefeitura da qual discorde.

Dessa forma, a lei que vinha acabar com os malfeitos no âmbito da administração pública ampliou irrazoavelmente a discricionariedade dos órgãos de controle, com resultados negativos para toda a coletividade. A máquina pública tornou-se mais lenta e menos eficiente; e o controle, menos técnico e mais político.

A redação ampla da Lei de Improbidade Administrativa também desestimulou muita gente honesta a atuar nos órgãos públicos. Não há como negar: a possibilidade de ser enquadrado em alguma hipótese da lei é enorme ônus para quem se dispõe a atuar na vida pública. A passagem por um cargo público pode depois significar anos de batalhas judiciais.

Ao mesmo tempo, nesse estado de coisas, muitos gestores simplesmente deixaram de tomar decisões, esperando ser obrigados pela Justiça a atuar. É a administração da coisa pública por ordem judicial, para evitar processos por improbidade.

Além de conduzir ao chamado “apagão de canetas”, tal fenômeno representa grave inversão de funções. Decisões de natureza executiva, que deveriam ser tomadas por quem tem responsabilidade política, são definidas pelo Ministério Público ou pelo Judiciário. No entanto, a Lei de Improbidade Administrativa deveria estimular a responsabilidade, e não a omissão do gestor público.

Diante de tal cenário, em 2019, a Câmara dos Deputados criou um grupo de juristas, coordenado pelo ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que redigiu uma proposta de reforma da legislação sobre improbidade administrativa. Depois, o texto foi encaminhado para estudo de uma comissão especial da Câmara.

Agora, antes mesmo de o texto da comissão ser apresentado, Arthur Lira pautou a votação da matéria. Trata-se de perigoso açodamento. É preciso sair da atual situação de criminalização da atividade político-administrativa, mas não se deve cair em cenário oposto, a favorecer a impunidade e a autorizar práticas perniciosas, como o nepotismo.

A legislação sobre improbidade administrativa deve trazer critérios claros e precisos. O gestor público deve saber com segurança o que pode e o que não pode fazer. O Ministério Público deve dispor de meios para coibir com eficiência eventuais ilegalidades, mas sem interferir na gestão pública.

Nada disso é alcançado com afoiteza. Se o objetivo é promover a segurança jurídica e a moralidade pública, o próprio Congresso deve atuar com cuidado e transparência.

O custo da irresponsabilidade

O Estado de S. Paulo

Como mostrou reportagem do Estado, os Estados endividados que negociam seu ingresso no novo Regime de Recuperação Fiscal começam a enfrentar resistência nas Assembleias Legislativas. A União precisa se precaver para que não se repita o roteiro dos últimos anos, em que unidades federadas em estado falimentar recebem o benefício da suspensão das dívidas sem promover as medidas de reajuste contratadas, repassando aos demais membros da Federação, na prática, o custo de sua irresponsabilidade.

O agravamento da crise fiscal dos Estados se tornou um fenômeno cíclico e crônico. No final dos anos 90, promoveu-se uma ampla rodada de negociação das dívidas com o Tesouro Nacional. Entre 2002 e 2014 a dívida dos entes subnacionais caiu 0,8% ao ano, mas entre 2014 e 2018 subiu 0,5% ao ano, obrigando a novas operações de socorro. Em 2016, 20 Estados aderiram à renegociação das dívidas com a União, adotando como contrapartida as regras do teto de gastos com pessoal. Contudo, 11 desses Estados não cumpriram o prometido.

O caso mais grave e paradigmático é o do Rio de Janeiro. Em 2017, o Rio aderiu ao Regime de Recuperação Fiscal. Entre as exigências para a suspensão da dívida estavam a obrigação de não contratar funcionários nem conceder aumentos salariais, fixar teto para as despesas obrigatórias e privatizar estatais. Por meio de todo tipo de manobra, o Rio burlou praticamente todas essas contrapartidas. Até meados do ano passado, pelas contas do Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal do Estado, o governo fluminense estava cerca de 85% abaixo da meta pactuada.

No fim de 2020, o Congresso instituiu o novo Regime de Recuperação Fiscal, que harmonizou regras contábeis para impedir que os Estados “maquiassem” o real estado de suas finanças, redefiniu contrapartidas e flexibilizou os critérios de ingresso no Regime de Recuperação. Estima-se que o programa proporcionará um alívio de R$ 217 bilhões aos governos endividados. Os 11 Estados que descumpriram seus acordos firmados em 2016, por exemplo, ficaram livres de penalidades que custariam R$ 43 bilhões. Some-se a isso o fato de que, segundo o Banco Central, com o socorro federal durante a pandemia e a arrecadação superior à prevista, os entes subnacionais fecharam 2020 com um superávit primário de mais de R$ 40 bilhões.

Mas, apesar das concessões da União – ou, talvez, justamente por causa delas –, muitos Estados dão sinais de que pretendem reeditar seus estratagemas para embolsar o bônus e se furtar ao ônus, e, ao invés de utilizar o alívio momentâneo para reestruturar seus gastos, se valerão dele como um anestésico para mascarar sua indisciplina e procrastinar suas obrigações.

Estados como Goiás, Pará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, por exemplo, já aprovaram medidas como reajustes ou aditivos salariais, gratificações ou novos concursos públicos. A Assembleia do Rio de Janeiro aprovou uma lei que desconta do cálculo das despesas de pessoal os custos bancados por royalties do petróleo, o que na prática permitirá ao Estado despender artificialmente acima do teto previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal. O governo fluminense também tem acenado que não utilizará os R$ 18 bilhões faturados com a concessão da Cedae para honrar dívidas.

As novas regras exigem que os Estados que aderirem ao Regime de Recuperação implementem as contrapartidas de reajuste em 180 dias para que o plano seja homologado. Como apurou o Estado, sob o pretexto da proximidade do ano eleitoral, nas Assembleias do Rio e de Minas Gerais, dois dos Estados em pior situação fiscal, já se fala eufemisticamente em “atalhos” para que sejam aceitos no programa sem cumprir o roteiro de reajuste. Espera-se que, ao contrário do habitual, a União seja rigorosa ao exigir as obrigações previstas em lei, e que o Judiciário não condescenda à irresponsabilidade suspendendo essas obrigações por meio de generosas liminares a prazo indeterminado. Do contrário, os “atalhos” tomados por Estados irresponsáveis serão mais uma vez revertidos em custos para os outros entes da Federação.

Recorde de desigualdade na pandemia

O Globo

Uma pesquisa do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV) traduz em números um fenômeno que já podia ser sentido de forma empírica nas principais cidades brasileiras durante a pandemia. Trabalhadores com mais educação e maior renda em geral se adaptaram ao trabalho remoto. No outro extremo, os menos preparados sofreram com o fechamento ou com a queda de faturamento de segmentos que absorvem grandes quantidades de mão de obra menos qualificada, em particular a empregada no trabalho informal.

Usando o conceito de renda efetiva do trabalho, que considera o dinheiro de fato recebido pela população, a pesquisa, coordenada pelo economista Marcelo Neri, demonstra que a distância entre ricos e pobres nunca foi tão grande desde que a medida começou a ser feita, em 2012. O índice de Gini, segundo o qual 1 equivale a uma sociedade totalmente desigual e 0 a uma sem nenhuma desigualdade, é a métrica adotada para estimar essa distância. No primeiro trimestre de 2020, o Gini era 0,642. Passado um ano, pulou para 0,674. Numericamente, são centésimos. Em termos de desigualdade, é um salto enorme. A renda média per capita caiu 10,9% entre o primeiro trimestre de 2020 e o mesmo período de 2021. Para a metade mais pobre dos trabalhadores, a queda foi de 20,8%. Em outras palavras, todo mundo perdeu, mas quem ganha menos perdeu bem mais.

A pandemia acelerou uma tendência anterior à Covid-19. A disparidade entre a renda dos trabalhadores brasileiros registrou seu nível mais baixo no final de 2014. De lá para cá, as crises, recessões e o crescimento econômico sofrível aumentaram a quantidade de desalentados (aqueles que desistiram de procurar emprego), mantiveram a taxa de desemprego em níveis altos e fizeram o Gini subir constantemente.

Diante desse quadro, fica claro mais uma vez — para quem quiser ver — que o Brasil precisa agir. Para reduzir o mais rápido possível o número escandaloso de quase 15 milhões de desempregados e 6 milhões de desalentados, é urgente vacinar toda a população, fazer campanhas sobre os cuidados que mesmo os vacinados devem ter e adotar quarentenas quando os índices de infecções e mortes aumentarem. Como mostra o exemplo britânico, novas cepas do coronavírus impõem a adoção de medidas restritivas mesmo quando boa parte da população está imunizada. Quanto mais rápido nos livrarmos do vírus, mais prontamente veremos os empregos voltarem.

Outra questão crucial é a modernização do Estado, por meio da reforma administrativa. O serviço público abriga a parcela da população mais privilegiada, que menos sofreu na pandemia. É uma verdadeira máquina de gerar desigualdade, em que as corporações se aferram aos privilégios de modo canino.

Por fim, é preciso retomar o caminho virtuoso dos programas voltados para a melhoria da educação e para a inclusão produtiva dos jovens. É necessário acabar com as políticas sociais sabidamente ineficazes, como abonos salariais, para concentrar esforços na população realmente necessitada e naquilo que funciona.

CPI revela por que sobrou cloroquina e faltaram vacinas para os brasileiros

O Globo

Por mais que Bolsonaro hoje tente antecipar a entrega de remessas da Pfizer, a CPI da Covid vai empilhando provas sobre provas de seu desdém pelas vacinas e de sua aposta em medicamentos ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina e a hidroxicloroquina.

De acordo com documentos entregues à CPI a que o “Jornal Nacional” teve acesso, em julho de 2020 a embaixada do Brasil em Pequim informou ao Itamaraty que o governo chinês queria fazer uma reunião com ministros das Relações Exteriores da América Latina e do Caribe para tratar da pandemia. O então chanceler Ernesto Araújo esnobou o convite. Alegou que a presença do “governo ilegítimo da Venezuela” inviabilizaria o encontro. Balela. Mesmo depois de informado que o país vizinho não integrava a lista de convidados, Araújo não arredou pé da decisão. Soube-se mais tarde que a China pretendia oferecer uma linha de crédito de US$ 1 bilhão para a compra de vacinas.

Não foi a única demonstração de pouco-caso com imunizantes. À medida que os trabalhos da CPI avançam, fica cada vez mais nítido o quadro de negligência. O governo não fazia o menor esforço para comprar doses de vacina, enquanto outros países reservavam quantidades colossais.

As ofertas da Pfizer para entregas a partir de dezembro de 2020 foram ignoradas pelo Ministério da Saúde. O ex-secretário executivo da pasta Elcio Franco, número dois de Pazuello, chegou a dizer que não pôde responder aos e-mails porque seu computador estava com problema. Patético.

Informações também em poder da CPI mostram que, em 29 de maio de 2020, o embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, comemorou a doação de 2 milhões de doses de cloroquina pelo governo americano em e-mail enviado a Norberto Moretti, então secretário de Comércio Exterior do Itamaraty: “Caro Norberto, Habemus hidroxicloroquinam!”. Na época, a droga já estava desacreditada para tratamento da Covid-19.

Hoje o país sente o reflexo da política torta que privilegiou medicamentos sem eficácia em detrimento das vacinas. O Brasil tem mais de 660 milhões de doses contratadas, quantidade mais que suficiente para imunizar toda a população (213 milhões). Mas nem um terço desse total está disponível, porque as encomendas foram feitas tarde demais. A maior parte das entregas está prevista para o segundo semestre.

Se tivéssemos aplicado 2 milhões de doses por dia nos últimos três meses, pelo menos 60 mil vidas teriam sido salvas, segundo estimou estudo da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A projeção foi feita a partir de dados reais de vacinação no primeiro trimestre. Ontem o Brasil vacinou 1,2 milhão com a primeira e a segunda doses.

Está claro que não foi só incompetência ou omissão. A cada dia, informações que chegam à CPI mostram que o desdém pelas vacinas e a aposta na cloroquina foram um ato deliberado do governo. É preciso que os responsáveis paguem por suas decisões.

Opção na pandemia

Folha de S. Paulo

Passaporte da imunidade, alvo da mistificação de Bolsonaro, facilita gestão

O Senado aprovou uma permissão para que o poder público institua o chamado passaporte da imunidade, já objeto de uma controvérsia política pouco produtiva.

Conforme o projeto, em situações de surtos ou de epidemias de doenças infectocontagiosas quaisquer, União, estados, o Distrito Federal e municípios poderão autorizar que pessoas vacinadas ou testadas tenham acesso a certos serviços e locais públicos e privados de algum modo sujeitos a restrições devido a problemas sanitários.

A inspiração do texto, que ainda precisa passar pelo crivo da Câmara dos Deputados, vem obviamente das dificuldades criadas pela Covid-19 e de medidas similares adotadas em outros países.

O presidente Jair Bolsonaro de pronto afirmou que pretende vetar a proposta, pois não teria cabimento “a vacina ser obrigatória no Brasil” —como disse à sua claque no Palácio da Alvorada.

Como de costume, Bolsonaro faz propaganda ideológica e aposta na confusão. O projeto de lei que cria o Certificado de Imunização e Segurança Sanitária (CSS), o passaporte, não determina que cidadãos sejam testados ou vacinados.

Procura, isso sim, dar segurança jurídica à possível adoção de mais uma providência que possa limitar os danos sanitários, sociais e econômicos de um surto ou epidemia.

Nesse caso particular, a intenção é justamente abrandar as restrições à circulação de pessoas que, mais do que criticadas, são sabotadas pelo presidente.

Medidas do gênero já são adotadas pelo país, do limite a movimentações pelas cidades à exigência de uso de máscaras —trata-se, aliás, de providências cabíveis ou implementadas em várias situações de risco de saúde. Se um dispositivo legal permite relaxar com segurança tais limitações, tanto melhor.

Um problema possível, porém, é o afrouxamento excessivo. A vacinação não garante imunidade, no sentido estrito, nem impede sempre a transmissão do vírus.

Decerto um conjunto de pessoas integralmente vacinadas, em um ambiente ainda sujeito a cuidados adicionais, como o uso de máscaras, correrá risco bem baixo. No entanto, como se vê em tantas aglomerações ilegais, inseguras e irresponsáveis, a possibilidade de excessos não é desprezível.

Em uma situação de escassez de vacinas, há também o risco de que se leve à Justiça a hipótese de discriminação negativa. A maioria da população não se imunizou apenas porque não há doses disponíveis.

No mais, o texto do projeto não esclarece como será criada a base de dados que permita a emissão do certificado de imunidade. Fala-se em uma “plataforma digital”, mas não se sabe como as informações chegarão até lá, como serão certificadas e como será fiscalizado e financiado tal serviço. O projeto precisa ser aperfeiçoado ou objeto de regulamentação clara.

De todo modo, tal instrumento jurídico permite a administração mais racional da epidemia, a critério de governadores e prefeitos. Não é solução —e muito menos motivo para batalha ideológica.

Poupar energia

Folha de S. Paulo

Convém debater desde já incentivos para a redução do consumo de eletricidade

Represas das usinas hidrelétricas estão a esvaziar-se, sobretudo no Sudeste e no Centro-Oeste, entrando no período de estiagem com níveis inseguros para garantir fornecimento de eletricidade no final do ano. Não se descarta a ocorrência de apagões por novembro, nos horários de pico.

Mais uma vez o país se vê forçado a improvisar, numa crise para a qual não se organizou. Sim, fenômenos climáticos como La Niña estão por trás da pior estiagem em décadas, mas não são desconhecidos; há muito já deveriam ter sido computados entre fatores contingentes contra os quais cabe precaver-se.

No sufoco, restam poucas opções de curto prazo para assegurar oferta de energia bem no momento em que a economia nacional ensaia alguma recuperação. O primeiro recurso, quase o único, está no acionamento constante das termelétricas para suprir a eletricidade que deixa de ser produzida nas turbinas hidráulicas.

O consumidor é o primeiro a pagar pela crise. Essas usinas de reserva têm operação cara, e o custo recairá sobre clientes. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) agora dá como certo que as tarifas avancem para a bandeira vermelha 2, com acréscimo de 20% nas contas de luz.

Mais limitadas são opções como importar energia extra da Argentina e do Uruguai. Ou, ainda, acelerar obras de linhas de transmissão —com os obstáculos orçamentários e burocráticos a que estão sujeitos os investimentos públicos.

A maior interligação dos subsistemas permitiria distribuir cargas entre regiões com regimes pluviométricos díspares, aumentando a robustez do todo. Não se estendem milhares de quilômetros de linhões da noite para o dia, contudo.

Outra providência seriam incentivos para diminuir a demanda de eletricidade em horários de pico. Descontos tarifários poderiam ser ofertados a empresas e domicílios capazes de deslocar o consumo para períodos do dia em que a atividade se reduz, como o noturno. Convém, de fato, que essa alternativa seja debatida desde já.

Pautas do retrocesso político chegam a plenário na Câmara

Valor Econômico

Câmara e Bolsonaro buscam o passado e desprezam o futuro

Em novo surto de ativismo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), irão direto a plenário projetos que representam retrocessos no campo político e no combate à corrupção. Há mais a caminho: em breve, ainda no primeiro semestre, serão votadas propostas que modificam as regras eleitorais, eliminando as boas modificações introduzidas em 2017, e buscando ressuscitar, mais uma vez, o voto impresso. Em determinados assuntos a inação dos deputados seria uma bênção para os cidadãos e os bens públicos.

A Câmara deve votar logo o projeto que modifica a lei de improbidade administrativa (8429, de 2 de junho de 1992, do governo Collor). De autoria de Roberto Lucena (Pode-SP), ele traz uma lufada de tranquilidade a administradores e agentes públicos que deixam de fazer a coisa certa. A lei vigente discrimina ações dolosas e culposas para uma série de condutas, como ordenar despesas não autorizadas em lei, negligência na arrecadação de tributos, na celebração e fiscalização de prestação de contas de parcerias, negação de publicidade aos atos oficiais, ilicitudes em concursos públicos e falta de prestação de contas, mesmo quando ela é obrigatória. O projeto de lei 2522, de 2015, retira a menção a ações culposas, isto é, aquelas em que houve dano por imprudência, negligência ou imperícia (falta de habilidade técnica, por exemplo).

Ficaram em cena as ações dolosas, nas que houve intenção de praticar os atos lesivos. O projeto pretende coibir a criminalização extensa dos atos dos agentes públicos inscritas em lei, mas na prática elimina punições que fazem sentido e figurariam em qualquer código transparente e republicano. Há prefeitos processados por não prestar contas ou dar publicidade de seus atos, o mínimo que um bom administrador não pode deixar de fazer. É certo que há casos em que o administrador prefere a inação a incorrer no amplo e circunstanciado leque de delitos, mas não são maioria. São mais comuns os abusos de prefeitos, governadores e servidores, que fazem o que bem entendem, acham que não devem satisfação a ninguém.

O projeto de lei, apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, que se opõe a “engessar” a ação dos prefeitos, deixará de lado, por exemplo, crimes que são a essência da apropriação do aparelho de Estado por interesses privados, como o emprego de parentes e a célebre “carteirada”, uso de status de autoridade pública para obter privilégios, burlar leis e coagir quem as quer cumpridas por todos.

Na prática o projeto circunscreve a improbidade ao “acréscimo ilícito ao patrimônio” (vulgo roubo). Lucena justifica sua escolha. “Existem os atos que não implicam relevante dano ao erário, embora sejam atos que ofendam a moralidade e às vezes ao patrimônio administrativo. Possuem baixo poder ofensivo - ou baixa relevância, ou baixa significância -, mas são ontologicamente atos de improbidade”. Para o enriquecimento ilícito o limite das penas foi rebaixado de 8 a 10 anos para 4 a 10 anos.

O desmanche das boas mudanças na legislação eleitoral, que entrará na pauta, tem efeitos mais gerais e deletérios para o sistema político. O “puxadinho” de permitir as federações entre partidos, que interessa às legendas que ficaram para trás com a cláusula de barreira - 15, pelos números do pleito de 2018 - é uma forma de manter o Legislativo congestionado de legendas que não merecem esse nome. A dose que reúne o “distritão” - só os mais votados são eleitos -, a volta das coligações para pleitos proporcionais, que faz com que o eleitor vote em um candidato e eleja outro (em geral, pior) e a ofensiva contra a cláusula de barreira é letal para as aspirações de um sistema mais democrático e representativo, e para o avanço de decisões legislativas conscientes em torno de princípios.

À maior parte dos 28 partidos que recebem dinheiro do fundo eleitoral e partidário, e tempo de TV, interessa manter o péssimo status quo e uma existência na qual não precisam batalhar sempre para conquistar o maior número de filiados e, assim, progredir financeira e politicamente. A roda da política aqui gira em sentido inverso. É a perspectiva de um dinheiro do Estado que leva aventureiros de todo o tipo a criar um partido, para receber verbas e depois “vender” seu apoio aos necessitados do “presidencialismo de coalizão”.

Há quem veja, como o presidente da República, que o principal problema não está aí, mas na ausência de voto impresso, objeto de grossas fraudes, só eliminadas pelo voto eletrônico. Câmara e Bolsonaro buscam o passado e desprezam o futuro.

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