- O Estado de S. Paulo
No Brasil, relacionamos, confundimos ou
mascaramos tudo, porque o velho e malandro Portugal é a Suíça dos engenhos e
pontes entre culturas, etnias e regimes
Muito antes da pandemia, o sistema
brasileiro usava máscara. No fundo, a recusa de usar máscara pelo nosso
exemplar presidente da República (este “mito” revelador de como a “polícia”, no
seu sentido mais barato e vil, legitima os piores e afasta os melhores) é uma
ironia. Porque, com Bolsonaro presidente, ela expõe a irracional recusa contra
a ciência (que universaliza pelos princípios da biologia), mas agressivamente
revela um oculto particularismo: o fato de que quem manda faz o que quer.
É mais do que dono do poder. É senhor do contrassenso ativado contra a moralidade e, por fim, mas jamais por último, da lei. Essa lei tão falada e louvada, mas feita para os inferiores. Os que não fazem parte dos vários sistemas de mando quase sempre incongruentes, vigentes no Brasil. Contradições desenhadas para inocentar legalmente os desonestos. Lei na qual a forma vale mais do que a substância, como prova a anulação de penalidade por meio de erro geográfico.
Voltemos, porém, às máscaras para dizer que
– num sentido preciso – todas as sociedades humanas usam máscaras pois,
diversamente dos animais, elas romperam com a natureza e nela se projetam com
suas máscaras ideológicas. A mais básica e a menos percebida é justamente a
linguagem articulada na qual o elo entre o som e seu significado é arbitrário.
O que é chamado de “mesa” em português vira “table” em inglês. Conforme
aprendemos com Saussure, Boas e com Whorf e Sapir, as línguas vão além da
comunicação: elas definem a realidade. Como dizia Roland Barthes, elas têm o
seu fascismo na medida em que nos obrigam a dizer certas coisas a seu modo. São
máscaras gigantescas a encobrir construções paralelas do mundo.
Quando Marx distinguiu objetos como tendo
“valor de uso” e “valor de troca” (alguém aí se lembra disso?), o valor de
troca era a máscara que desmascarava o capitalismo na sua desumanidade. Porque
no capitalismo a riqueza não pertence mais à virtude, à honra ou ao terror,
como em 1748, escreveu Montesquieu ao caracterizar respectivamente as
repúblicas, as aristocracias e as tiranias, mas apenas ao Capital com letra
maiúscula mesmo, conforme escreve com brilho habitual o crítico da USP Roberto
Schwarz.
No Brasil, relacionamos, confundimos ou
mascaramos tudo, porque o velho e malandro Portugal é a Suíça dos engenhos e
pontes entre culturas, etnias e regimes. Foi o único reinado no qual a Corte e
o Rei abandonaram a terra que os legitimava.
Se fomos aristocratas-católicos-mercadores
de escravos e podíamos virar nobres por bravura, e sobretudo por decreto,
simpatia e dinheiro, por que não poderíamos desenvolver um sistema político no
qual os culpados jamais seriamos nós?
O valor do capital se exprime nos cargos
públicos que legitimam o seu ganho por meio da expropriação sistemática da
sociedade vista como o seu escravo perene. Tal desencontro é difícil de se
enxergar, porque os donos do estado são, como dizia com precisão Raymundo
Faoro, os donos do poder. São sócios e parentes legais e “políticos” de uma
ordem pública cujos administradores exploram a sociedade. Neste sentido, o
Estado brasileiro jamais deixou de ser aristocrático e seus mandões
escravocratas – com uma ou duas exceções – recriaram fidalguias (ou “panelinhas”
– hoje gabinetes) em seus governos.
Com nossos ‘hermanos’ latino-americanos
constituímos um exemplo histórico excepcional de construções sociais, nas quais
o maior explorador do trabalho produzido pela sociedade não é apenas o capital,
mas o Estado Nacional, com seus infindáveis velhos e novíssimos ministérios,
conselhos, comissões, delegados, diretores, fiscais e representantes que – com
a protocolar da devida vênia – representam muito mais os seus interesses
particulares do que as demandas universais do País.
No Brasil, a luta de classes é uma luta de
quem vai assumir cargos públicos legitimamente (renunciando sua autonomia
burocrática ou não) em confronto tenaz com seus hiperprivilégios.
O antropólogo americano Anthony Leeds,
pioneiro no estudo das favelas cariocas, deu uma contribuição importante e
incomoda quando escreveu um ensaio mencionando que os membros da elite
brasileira eram todos “cabides de emprego” – algo que até hoje ocorre com os
“doutores” que, entre nós, precisam de múltiplos empregos para manter o nível
de vida que aspiram. Daí, sem dúvida o projeto de ser funcionário público, pois
o concurso abole o contrato e o emprego não é sinônimo de trabalho. Muito pelo
contrário, ele é, na maioria dos casos, a sua negação.
As olvidadas malas de dinheiro
determinantes para eleger Jair Bolsonaro serve como um “mito” da nossa
incapacidade de nos enxergarmos com um mínimo de sinceridade.
Adicione-se a isso os 4 milhões de cidadãos
que não tomaram a segunda dose da vacina, evidentemente empenhados na campanha
antivacina do presidente motociclista. Nisso não há, como revela a práxis
errática do presidente, nenhuma máscara. Há apenas o flerte com a morte – esta
inegável índole do bolsonarismo.
*É antropólogo social e escritor, autor de
‘Fila e Democracia’
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