- Folha de S. Paulo
Decretos canalizam arsenal para milicianos,
baderneiros e traficantes
“Cloroquina
contra a Covid, armas contra o crime”. Esta é a receita do presidente da
República. Despreza a ciência e revela a falta de políticas públicas
de saúde e segurança. O pior é que oculta objetivo inconfessável.
Jair Bolsonaro editou 32 decretos e
atos contra o Estatuto do Desarmamento. E brada: “Vou armar o
povo!”. Como vai ser isso se um revólver 38 e uma pistola não custam menos que
R$ 3.500, e um fuzil T4 básico, R$ 16 mil? Mas narcomilicianos podem comprar.
Ao elevar o número de armas que os
atiradores esportivos podem
adquirir por ano de 16 para 60, sendo que metade de grosso
calibre, o decreto ignora que as competições olímpicas são realizadas com armas
de chumbinho ou baixo calibre, pois se trata de avaliar a precisão do tiro e
não sua potência. Armas de grosso calibre são malvistas entre os verdadeiros
esportistas, mas são empunhadas pelo número crescente de milicianos que
praticam nos clubes de tiro. Se dez desses milicianos se unirem, terão 600
armas. Poderão adquirir até munição ponto 50, capaz de derrubar helicóptero e
perfurar blindado.
O Exército é afastado da fiscalização desses clubes, que em dois anos passaram de 151 para 1.345. Um bom negócio, aberto só a quem pode pagar. Os militares não mais poderão controlar a venda de miras telescópicas e quebra-chamas das armas, o que só beneficia criminosos e terroristas. Tira-se também o Exército da fiscalização dos carregadores de munição, cujos aceleradores transformam simples pistolas em metralhadoras, como um aposentado demonstrou em Las Vegas em 2017. Em dez minutos, do alto de um hotel, matou 59 pessoas e feriu mais de 500 que assistiam a um show.
O rastreamento de armas e munições é
essencial para a elucidação de crimes, que no Brasil não alcança 10% dos
delitos e na Alemanha vai a 96%. Mas um decreto autoriza os clubes e os 556 mil
CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) a recarregar
munições, impossíveis de serem rastreadas.
Milhões de munições oriundas da Polícia
Federal, inviáveis de serem rastreadas porque não foram marcadas pela CBC
(Companhia Brasileira de Cartuchos), conforme manda a lei, acabaram desviadas.
Utilizadas nos assassinatos de 83 pessoas e
em 7 chacinas, vitimaram a vereadora Marielle
Franco, de acordo com pesquisa do Instituto Sou da Paz. Após os
desvios, o Exército promulgou três portarias aperfeiçoando o rastreamento. O
presidente as anulou no dia seguinte.
Grande número de armas de grosso calibre,
sem controle, guarda alguma lógica com autodefesa? Ou é mais coerente com a
organização de narcomilícias com objetivos políticos? O presidente
conclama: “Povo armado
jamais será escravizado!”. Revela sua inspiração ao parafrasear o
grito de Mussolini diante de seus camisas-negras: “Povo armado é forte e
livre!”.
Pelo contrário, milícias jogaram importante
papel na desestabilização de regimes democráticos, como as SAs de Hitler, a
Tonton Macoute no Haiti, a Patria y Libertad de Pinochet, os coletivos de
Maduro e as milícias racistas de Trump. Em 1968, o CCC (Comando de Caça aos
Comunistas) praticou atentados para criar um clima de insegurança que
justificasse a promulgação do AI-5. Meu diretório acadêmico (Caco - Centro
Acadêmico Cândido de Oliveira, da UFRJ) foi destruído por uma granada. Um dos
decretos aumenta a quantidade de pólvora para os CACs de 12 kg para 20 kg,
suficientes para a fabricação de 40 bombas!
Para que não reste dúvida, o presidente,
falastrão compulsivo, deixou escapar que o embuste da autodefesa camufla a
violência política: “Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto,
algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua”.
O Exército vinha se mantendo fiel à
Constituição, o que levou o presidente a buscar apoio político nas Polícias
Militares. Sua partidarização foi exposta no ato de campanha eleitoral no Rio
de Janeiro e na repressão à
manifestação pacífica em Recife. A submissão do Alto Comando do
Exército ao não punir o
general Eduardo Pazuello leva a anarquia para dentro das Forças
Armadas.
Os decretos canalizam armas e munições para
as mãos de milicianos, baderneiros e traficantes. Está nas mãos do Supremo
Tribunal Federal, e do Congresso, anular essas medidas inconstitucionais e
ilegais, além de antidemocráticas, pois, segundo pesquisas, os fundamentos de
nossa Lei de Armas contam com o apoio de mais de 80% dos brasileiros.
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