quarta-feira, 9 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Rede de ódio desvendada

O Estado de S. Paulo

Estranhamente, após cinco meses de absoluto silêncio, a Procuradoria-Geral da República (PGR) requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o arquivamento do inquérito que apura responsabilidades pela organização e financiamento de manifestações golpistas ocorridas em abril do ano passado, incluindo um sórdido ataque ao edifício-sede da Corte Suprema.

As razões alegadas pela PGR para pugnar pelo encerramento do inquérito são frágeis e incongruentes em relação aos achados da Polícia Federal (PF) no curso das investigações (ver editorial Visões muito discrepantes, publicado em 8/6/2021). O ministro relator, Alexandre de Moraes, determinou que a PGR “esclareça o alcance do pedido”, mas deverá acatá-lo, haja vista que, de acordo com a jurisprudência do STF, um pedido desta natureza é “irrecusável”.

Mas, se não pode deixar de acatar o pedido de arquivamento feito pelo parquet, o ministro relator pode trazer à luz o minucioso esquema de desinformação e destruição de reputações que foi montado na antessala do presidente da República com o objetivo de corroer a confiança dos brasileiros nas instituições pátrias, desqualificar adversários e críticos de Jair Bolsonaro e, consequentemente, depreciar o próprio valor da democracia. E foi exatamente o que Alexandre de Moraes fez na sexta-feira passada.

O funcionamento da rede de trolls – usuários inautênticos que, por meio das redes sociais e de aplicativos de mensagens, como o WhatsApp e o Telegram, disseminam falsidades, distorções e ataques contra adversários do presidente Jair Bolsonaro e de sua prole de encalacrados com a Justiça – foi esmiuçado pela delegada Denisse Dias Rosas Ribeiro ao longo das mais de 150 páginas de seu relatório. O que a PGR não enxergou como conjunto de indícios robustos o bastante para “apontar para a participação de deputados e senadores nos supostos crimes investigados” agora vem a público pela decisão do ministro Alexandre de Moraes de retirar o sigilo do inquérito que tramita no âmbito da Corte Suprema.

“Embora a necessidade de cumprimento das numerosas diligências determinadas exigisse, a princípio, a imposição de sigilo à totalidade dos autos, é certo que, diante do relatório parcial apresentado pela autoridade policial – e com vista à Procuradoria-Geral da República desde 4/01/2021 – não há necessidade de manutenção da total restrição de publicidade”, escreveu o ministro relator em seu despacho.

Como revelou o Estado, a PF identificou mais de mil acessos àquelas contas inautênticas nas redes sociais feitos a partir de computadores instalados em órgãos públicos e até na residência privada da família Bolsonaro na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. A polícia identificou ainda acessos a contas e páginas que disseminam desinformação e ataques ao Estado Democrático de Direito oriundos de gabinetes de deputados e senadores, e até mesmo de instalações militares. Ora, se isto não é razão forte o bastante para ensejar o prosseguimento das investigações, como pleiteia a PGR, o que seria, afinal?

A PGR, ao que parece, contentou-se com a mera abertura do inquérito para apurar atos que pregam a instauração de uma ditadura militar no País, fechamento do Congresso e do STF. No entender do parquet, só isto já teria um “efeito dissuasório” esperado, não sendo necessário apurar responsabilidades pelos crimes. Ora, ingenuidade não é. Justificativa dessas chega a ser ofensiva à inteligência alheia.

Ao retirar o sigilo sobre o inquérito, o ministro Alexandre de Moraes deu aos cidadãos o direito de indagar, à luz de tantos indícios que pesam sobre pessoas próximas ao presidente da República, quais seriam os reais motivos que levaram a PGR a requerer o arquivamento do inquérito, e não o aprofundamento das investigações, como deveria. Não é demais relembrar a missão precípua do Ministério Público: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Os fatos em apuração no referido inquérito afrontam diretamente estes valores resguardados pela Constituição.

Fuga de cérebros

O Estado de S. Paulo

O que os membros da comunidade científica brasileira mais temiam, quando a pandemia de covid-19 eclodiu no ano passado, infelizmente vem ocorrendo em ritmo acelerado. Trata-se do chamado fenômeno “brain drain”, também conhecido como “fuga de cérebros”.

Esse êxodo envolve jovens altamente qualificados que buscam no exterior, especialmente em países que mantêm programas de atração de talentos, postos de trabalho que não conseguem ter no Brasil. Um desses países é o Canadá. Para enfrentar problemas de envelhecimento e baixas taxas de fertilidade da população, o governo canadense estabeleceu há dois anos a meta de receber mais de 1 milhão de imigrantes qualificados até 2021. Chegou, inclusive, a promover, em várias cidades brasileiras, palestras sobre oportunidades profissionais. 

Os jovens brasileiros atraídos por programas como esse são altamente qualificados. Em sua maioria, tiveram a formação acadêmica financiada por recursos públicos. Isso significa que, apesar de ter investido nesses jovens, o Brasil não criou condições para que eles possam restituir o que receberam, trabalhando em atividades produtivas na iniciativa privada ou, então, em centros de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico. No caso do pessoal formado em ciências exatas, biotecnologia e medicina, por exemplo, enquanto países como Japão, Coreia do Sul, Israel e Estados Unidos têm mais de 60% do total de seus pesquisadores nessas áreas trabalhando em empresas, no Brasil esse porcentual é de somente 18%. 

O êxodo de profissionais jovens e qualificados já vinha sendo notado no Brasil desde a metade da década de 2010, quando a economia brasileira já vinha patinando, e piorou significativamente com a pandemia. Segundo dados da Receita Federal, o número de brasileiros que apresentaram declaração de saída definitiva do País passou de 8.170, em 2011, para 23.271, em 2018 – um aumento de 184%. E, segundo o relatório fiscal dos Estados Unidos, em 2020 aquele país registrou uma elevação de 36% nos vistos de permanência concedidos a brasileiros numa categoria específica – a dos chamados “profissionais excepcionais”. Ao todo, foram concedidos 1.899 vistos – o maior número em uma década. Já com relação à emissão dos demais vistos a concessão feita pelo governo americano teve uma queda de 48% no período. 

O mais grave é que essa fuga se dá, justamente, num momento em que o Brasil mais precisa de pessoal qualificado nas áreas de ciências exatas e biomédicas, por causa da pandemia. Ela se dá, igualmente, num período em que, quanto mais o País necessita de um ambiente favorável à ciência, mais o governo se torna negacionista. Sem levar em conta as consequências perversas dessa postura irracional, em abril o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) foi obrigado a cortar 87% das bolsas de doutorado e pós-doutorado já aprovadas em 2021. 

Com isso, o Brasil, que hoje tem 7,6 doutores por 100 mil habitantes, vai se distanciando de Portugal, com 39,7; Alemanha, com 34,4; e Reino Unido, com 41. Para um país que precisa urgentemente agregar valor tecnológico aos seus produtos, em vez de apenas exportar matérias-primas, esses números deixam claro o risco de apagão científico a que o Brasil está exposto. “Por tudo que estamos passando, o País convida os bons profissionais a se retirarem”, diz o médico Diego Lima, especializado em infecção pela covid-19 e que está se mudando para os Estados Unidos. “Estamos falando de profissionais da mais alta qualidade e extremamente valiosos. Neste momento terrível, ainda assim estamos perdendo esses profissionais para o exterior. A pandemia escancarou as péssimas condições de trabalho no Brasil”, afirma o presidente da Associação Médica Brasileira, César Eduardo Fernandes. 

Ambos estão certos. Como crescimento e saúde dependem cada vez mais de conhecimento, a “fuga de cérebros” dá a medida do preço que o Brasil pagará pela gestão desastrosa do governo Bolsonaro também no campo da ciência e da pesquisa. 

Décadas perdidas, ou nem tanto

O Estado de S. Paulo

Pela primeira vez em dez anos a barreira de 4% foi atingida – e até superada – nas projeções de crescimento econômico registradas na pesquisa Focus, sondagem realizada semanalmente pelo Banco Central (BC). O Produto Interno Bruto (PIB) deve crescer 4,36% em 2021, segundo a mediana das projeções. Com data de 4 de junho, o relatório divulgado na segunda-feira passada é o mais otimista desde a reação iniciada em maio do ano passado, depois da grande queda no início da pandemia. Se a expectativa for confirmada, o Brasil voltará ao patamar de 2019, anterior à queda de 4,1% sofrida no ano passado. Até a semana anterior, as estimativas sintetizadas na pesquisa indicavam retorno só em 2022.

As previsões nunca foram tão altas desde o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. Em 3 de junho de 2011 a pesquisa Focus mostrou, pela segunda semana seguida, a expectativa de expansão econômica de 4% naquele ano. A projeção caiu para 3,96% na semana seguinte e só voltou a esse patamar dez anos depois. Números iguais ou superiores a 4% apareceram, ainda por algum tempo, nas estimativas para os anos seguintes, ficando fora, no entanto, das previsões para o ano corrente.

Em 2011 o PIB cresceu 3,97%, ou, com arredondamento, 4%. Em todo o período até 2020 as taxas anuais foram sempre bem inferiores, chegando a ser negativas em 2015, 2016 e 2020. A expansão econômica de 7,53% em 2010 foi o último desempenho vistoso. Depois disso veio um período já rotulado como década perdida.

Uma década menos sombria pode estar começando, segundo avaliação captada entre analistas do setor financeiro e de algumas consultorias. As bases mais concretas desse otimismo são o crescimento econômico de 1,2% no primeiro trimestre, a ajuda proporcionada pela retomada internacional e a evolução das contas públicas.

Mas a reativação econômica, no Brasil, permanece muito dependente do agronegócio. A maior parte da indústria de transformação continua com baixo dinamismo e com escasso poder de competição externa. Além disso, dezenas de milhões de brasileiros ainda dependem de ajuda para sobreviver. O desemprego no primeiro trimestre chegou a 14,7% da população ativa e boa parte dos ocupados trabalha em condições precárias. Além disso, a inflação está acelerada e, segundo projeção do boletim Focus, deve chegar a 5,44% neste ano, superando o limite de tolerância (5,25%). Para o próximo ano está prevista uma alta de preços de 3,70%, superior ao centro da meta (3,50%).

Falta os otimistas explicarem como será – e como afetará a vida dos brasileiros – esse crescimento econômico de 4,36%, se muitos milhões de trabalhadores continuarem fora do jogo. Além disso, esses milhões ainda terão de enfrentar preços em alta acelerada.

Mas a inflação poderá facilitar a recuperação nominal das contas públicas, inflando a receita tributária. Isso criará a ilusão de um forte ajuste fiscal, mas o problema poderá reaparecer adiante. Nesta altura, até o dólar valorizado ajuda o Tesouro, alimentando a inflação e aumentando a base de arrecadação, em reais, do Imposto de Importação. Esse efeito já tem sido assinalado pelo Tesouro.

No próximo ano, segundo o Focus, o crescimento do PIB deverá ficar em 2,25%. Faltará fôlego, ao Brasil, para manter o ritmo estimado para este ano. Mas a década perdida, dirão alguns, terá ficado para trás. Terá mesmo?

Década perdida foi um rótulo aplicado também ao decênio 1981-1990. Foi um período de graves problemas econômicos, mas também de consolidação do agronegócio moderno e de expansão das exportações. Houve a busca difícil e acidentada de um caminho para a estabilização econômica. O poder civil foi restabelecido, uma Constituição foi aprovada. Depois a economia se ajustou e cresceu, num ambiente de direitos e de equilíbrio entre Poderes – uma ordem ameaçada, desde 2019, por movimentos golpistas e manifestações autoritárias de um presidente conhecido por elogios a ditaduras e por suas homenagens a um torturador. Na economia, como na política, a retomada dos anos 1990 foi diferente.

Todos deveriam entrar na reforma administrativa

O Globo

Não faltam justificativas para o Brasil promover uma reforma administrativa ampla e ambiciosa. Somos o sétimo país do mundo que mais gasta com funcionários públicos, quase 14% do PIB. Em três décadas, o funcionalismo saltou de 5,1 milhão para 11,4 milhões de brasileiros. Só na esfera federal, o número de funcionários cresceu 11% entre 2008 e 2019, enquanto os gastos com eles subiram 125%.

A gestão é caótica e nada tem a ver com as melhores práticas adotadas na iniciativa privada. O Estado acumula o peso de três centenas de planos de carreira, com 440 rubricas salariais para mais de 22 mil cargos e funções. Vigoram ainda excrescências como promoções automáticas, licenças-prêmios, férias de 60 dias, auxílio-moradia e outros penduricalhos que engordam o contracheque das categorias mais bem remuneradas, ajudando a driblar o teto constitucional do funcionalismo. Na última volta do parafuso que aperta a canga nas costas da sociedade, o governo decidiu, num agrado explícito aos militares, que o acúmulo de dois salários públicos também não está sujeito ao teto.

Pois foram poupadas na proposta de reforma enviada pelo Executivo ao Congresso justamente as categorias mais privilegiadas: militares e integrantes de Judiciário, Legislativo e Ministério Público, identificados pela alcunha “membros de Poder”. Incluí-los já seria justificável de um ponto de vista tão somente moral. É inaceitável que, para aproximar o servidor público da realidade vivida pelo trabalhador da iniciativa privada, o governo retire regalias de quem ganha menos, mas preserve os detentores das maiores benesses, como procuradores, juízes, parlamentares e militares.

Agora, uma nova análise publicada ontem no GLOBO, feita pelo economista Daniel Duque, líder da área de inteligência técnica do Centro de Liderança Pública (CLP), traz outro argumento persuasivo para incluir todas essas categorias na reforma: o fiscal. Deixada como está, a proposta que tramita no Congresso representaria, no cenário mais provável, uma economia de R$ 186,8 bilhões aos cofres públicos ao longo de dez anos. A inclusão de todos os funcionários na reforma, diz Duque, elevaria esse total a R$ 736,4 bilhões. Da diferença, R$ 31,4 bilhões viriam apenas da inclusão dos 320 mil militares e 91 mil “membros de Poder”. Os militares sozinhos representariam R$ 17,3 bilhões das economias.

Preservadas também na reforma da Previdência, as Forças Armadas têm sido a categoria mais beneficiada no governo Bolsonaro. No ano passado, enquanto milhões perdiam emprego e sofriam redução salarial em virtude da pandemia, os gastos com militares subiram R$ 5,6 bilhões, para R$ 80,5 bilhões, 17% acima do previsto na aprovação das novas regras de aposentadoria. Na média, eles estão, segundo Duque, entre os 8,5% de maior renda no país. Os tais “membros de Poder” integram uma elite ainda mais seleta: os 2,2% mais bem remunerados. Não há motivo algum para poupá-los. A Comissão Especial que deverá analisar a proposta de reforma administrativa tem obrigação de incluir todas as categorias. Sem exceção.

Até quando Queiroga se equilibrará entre a ciência e o negacionismo?

O Globo

O segundo depoimento do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, ontem na CPI da Covid, deixou claro que, ao contrário do que ele alega, falta-lhe autonomia. Diferentemente da primeira sabatina, quando deu aos senadores respostas evasivas, desta vez Queiroga foi firme. Mas deixou transparecer os limites a sua atuação na formulação da política sanitária e na comunicação dos protocolos à população.

Embora epidemiologistas considerem a realização da Copa América no Brasil um evento de alto risco durante a pandemia, Queiroga disse que a aceitação do torneio não passou pelo crivo de sua pasta. “Não compete ao Ministério dar aval”, afirmou, apesar de Bolsonaro ter dito que consultara seus ministros, entre eles o da Saúde, sobre o evento no país. Queiroga assinalou que o papel do Ministério foi elaborar os protocolos que serão adotados na competição.

O ministro foi claro ao condenar o “tratamento precoce”, com drogas ineficazes como cloroquina e ivermectina, e ao defender uso de máscaras e distanciamento. Sinais opostos aos emitidos pelo presidente Jair Bolsonaro, que faz propaganda da cloroquina e já chamou de “canalha” quem é contra o “tratamento precoce”. “Não sou censor do presidente”, afirmou Queiroga. Apesar de rejeitar a cloroquina, ele não explicou claramente por que o Ministério ainda mantém uma norma técnica que recomenda o medicamento contra Covid-19. Alegou que a orientação não tem efeito legal: “Já faz parte da história” .

Presidente licenciado da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Queiroga representou um avanço em relação ao general Eduardo Pazuello. Desde que assumiu o Ministério, em 23 de março, tem se empenhado na compra de vacinas e na antecipação de doses já contratadas. Fixou metas e tem tentado acelerar o ritmo da campanha, travada pela falta de imunizantes e por critérios discutíveis na fila de vacinação.

A história da pandemia no Brasil mostra, porém, que, no Ministério da Saúde, não é bom augúrio proclamar independência, como Queiroga fez na CPI. Seus antecessores, os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, também pensavam ter autonomia para implantar políticas sanitárias, enquanto eram sabotados pelo gabinete paralelo formado por negacionistas. Divergiram de Bolsonaro e foram substituídos. Pazuello, que permaneceu por mais tempo, expressou publicamente sua subserviência ao presidente: “Um manda, o outro obedece”. Deixou a pasta após uma gestão desastrosa.

Queiroga, o quarto ministro na pandemia, tem procurado deixar em banho-maria os assuntos mais espinhosos, como cloroquina ou distanciamento. Até aqui, tem se mostrado hábil no equilíbrio entre a ciência e o negacionismo do governo. Preocupa que justamente essas qualidades se choquem com o que Bolsonaro sempre esperou de um ministro: obediência. Os desafios adiante são muitos e nada fáceis. O maior deles é impor a realidade ao chefe e ao ministério paralelo, que prega o oposto do que Queiroga diz defender. 

Planos sociais

Folha de S. Paulo

Novo cenário do emprego demanda melhores políticas, nos limites do Orçamento

Está quase certo que governo e Congresso prorrogarão o auxílio emergencial até setembro. Vem aí, como diz o ministro Paulo Guedes, um programa de subsídio de empregos para jovens, batizado de BIP-BIQ. Há também planos de reformulação do Bolsa Família.

Programas de renda mínima e de incentivo ao emprego serão ainda mais necessários no Brasil. A longa duração da epidemia no país torna inevitáveis auxílios imediatos, de certo modo improvisados.

No entanto a necessidade de socorro urgente não é, em si, empecilho para a criação de um programa amplo e melhorado de atenuação da pobreza. Mais do que isso, as novas dificuldades sociais praticamente exigem um aperfeiçoamento da política social.

A recuperação dos empregos costuma ser tardia nas recessões. Na crise da Covid-19, a demora será maior, pois a retomada do setor de serviços —o principal empregador, em particular de trabalhadores menos qualificados— depende do controle do vírus.

Outro aspecto conjuntural a ser levado em conta é o fato de que parte dessa melhora será impulsionada pelas commodities. A princípio, tendem a crescer aqueles setores que ocupam pouca mão de obra.

A escassez de trabalho deve ser maior no caso de um país em que o Produto Interno Bruto estará ainda quase 2% abaixo do nível de 2014 ao final de 2021 —isso se a economia crescer 5% neste ano. Em termos de PIB per capita, o nível esperado será 7% inferior.

Além do mais, há o risco de que a economia venha a contratar relativamente menos, dadas as mudanças tecnológicas e de organização do trabalho aceleradas na pandemia e as alterações no padrão de circulação de pessoas nas cidades. O cenário é de danos graves no mundo do trabalho e de incertezas preocupantes.

Repensar a política social é, pois, um imperativo. Propostas de ação de estudiosos do assunto não faltam, uma delas até já transformada em um projeto de Lei de Responsabilidade Social, apresentado em 2020 pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).

Esse texto prevê a revisão do programa de renda mínima, o Bolsa Família, a criação de um seguro para trabalhadores de baixa renda impedidos de ganhar seu sustento e um fundo de poupança a ser sacado por jovens que completem os estudos, por exemplo.

Estipula a redução de isenções fiscais e o fim de programas envelhecidos e mal focados, como o abono salarial, o salário família e o seguro defeso, numa redução de gastos que poderia incrementar a nova política de assistência.

Trata-se de uma boa base para o debate de uma reforma mais ampla e duradoura. Governo e Congresso deveriam chegar logo a uma proposta viável, que caiba no Orçamento. Há por superar, no entanto, a inoperância da equipe do Executivo e as tentações populistas do presidente da República.

Feminicídio pandêmico

Folha de S. Paulo

Crime cresceu em 2020, enquanto crise reduziu autonomia econômica de mulheres

Registraram-se no ano passado 1.338 assassinadas por sua condição de gênero, em geral por companheiros, reais ou pretensos, e ex-companheiros. O feminicídio teve avanço de 2% em 2020, após um aumento de 8% em 2019. As regiões Norte (37%) e Centro-Oeste (14%) puxaram a piora recente.

Por ser questão multifatorial, o enfrentamento do feminicídio exige um leque de estratégias para a prevenção —é preciso, por exemplo, que a mulher tenha acesso a políticas de acolhimento antes que o crime ocorra— e a punição.

Especialistas apontam fatores agravantes, entre eles a ausência de abordagem de questões de gênero nas escolas, o afrouxamento de controle de armas e o recrudescimento da pandemia, entre outros.

Políticos e autoridades insistem em lidar com problemas de segurança pública tipificando crimes e endurecendo penas —uma estratégia, por si só, pouco eficaz.

Em 2019, por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro sancionou textos que modificam a Lei Maria da Penha, incluindo apreensão da arma de fogo de agressores. Neste ano, o “stalking” (perseguição reiterada de pessoas) tornou-se crime.

No entanto o desejado efeito dissuasório dessas providências requer melhora na capacidade dos diferentes entes da Federação de fazer cumprir a lei —o que inclui serviços sociais, polícia e Judiciário.

Um dos entraves iniciais para qualquer política pública sobre o tema é a falta de padronização nos dados de feminicídio no país.

No Ceará, por exemplo, dados oficiais registraram apenas 27 casos de mulheres mortas por sua condição de gênero em 2020 —o que significa, proporcionalmente, a menor incidência do crime no país. Já pesquisadores da Rede de Observatórios de Segurança contabilizaram 47 casos no mesmo ano.

Por fim, a falta de autonomia econômica torna mulheres mais vulneráveis a agressões, o que é um fenômeno agravado pela pandemia.

A terceira edição da pesquisa Visível e Invisível – A Vitimização de Mulheres no Brasil, realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que 62% das vítimas de violência tiveram renda familiar reduzida na pandemia. Entre as demais entrevistadas, o percentual foi de 50%.

É preciso expurgar ‘jabutis’ e aprovar MP da Eletrobras

Valor Econômico

Raramente uma MP conseguiu tamanha unanimidade de críticas

Pode ser votada no Senado nesta semana a Medida Provisória (MP) 1.031/2021 de privatização da Eletrobras. Raramente uma MP conseguiu tamanha unanimidade de críticas. Renomados especialistas da área defendem que o Senado deveria vetar o texto ou simplesmente deixar que caduque. Herdado do governo de Michel Temer e mal trabalhado pela equipe de Jair Bolsonaro, o projeto foi muito piorado na Câmara dos Deputados. O relator Elmar Nascimento (DEM-BA), incluiu diversas medidas não relacionadas, os chamados jabutis. Se o projeto passar, a única certeza que fica é que a conta do consumidor deverá subir e as regras do setor elétrico serão deturpadas.

Levada ao Congresso pelo presidente Bolsonaro no fim de fevereiro para desfazer o mal-estar criado nos mercados alguns dias antes pela ameaça que fez de “meter o dedo” na energia elétrica”, a MP, mais corretamente chamada de capitalização da Eletrobras, prevê oferta pública de ações ordinárias da qual o governo não participará, diluindo seu controle. A União poderá ainda vender suas ações ou de empresas das quais participa; e terá uma “golden share” com direitos especiais. Estima-se que a operação deverá angariar de R$ 60 bilhões até R$ 100 bilhões aos cofres públicos.

O que chamou a atenção, no entanto, foi a quantidade de jabutis incluídos pelo relator, emendas que vão acarretar inúmeros compromissos para a Eletrobras, encarecer as contas dos consumidores e distorcer as regras do setor. Algumas delas são tão inexplicavelmente direcionadas que dão razão às críticas de que nasceram de interesses fisiológicos, inspiradas por lobistas, movidas por interesses espúrios, obra acabada do espírito do centrão.

Em artigo publicado no Valor (5/6), Claudio Sales, Eduardo Monteiro e Richard Hochstetler sustentam que o projeto cria “três reservas de mercado sem nenhuma justificativa conceitual e que afrontam o planejamento energético sistemático, que avalia custos e benefícios de todas as fontes de energia à luz dos requisitos do sistema”.

A primeira distorção é a imposição de uma contratação de 6 mil MW de usinas termelétricas a gás, localizadas em regiões afastadas dos centros consumidores e das fontes supridoras de combustível, no Nordeste, Norte e Centro-Oeste. A MP chega a detalhar que as usinas serão inflexíveis e não poderão aproveitar outras fontes, como eólica e solar. Será necessário construir onerosa rede de gasodutos para levar o gás para os locais, requisito que despertou acusações de que o deputado estaria querendo favorecer conhecido empresário do setor. Como o consumo regional fica aquém da oferta, redes de transmissão igualmente onerosas precisarão ser feitas para levar o excedente para outras regiões.

A MP estabelece também a contratação de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) para atender parte da demanda declarada pelas distribuidoras de eletricidade nos leilões regulados que entregarão energia em 2026 e 2027 e devem acontecer no fim deste ano. Especifica até o percentual a ser comprado. Outra determinação considerada injustificada pelos especialistas é a prorrogação por 20 anos do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (Proinfa). Criado em 2002 o Proinfa vai acabar em 2026 e as usinas que dele participaram já foram amortizadas.

Há ainda programas que destinam recursos para a revitalização dos rios São Francisco e Parnaíba e as bacias nas áreas dos reservatórios das usinas de Furnas e para reduzir o custo de geração na Amazônia Legal.

Não bastasse várias dessas propostas não terem relação com a privatização da Eletrobras, algumas delas são de responsabilidade de instituições ligadas ao Ministério das Minas e Energia, como a Empresa de Pesquisa Energética (EPE); e ignoram temas atuais como o aquecimento global. Não consta que o relator seja especialista na área. Mais: o custo das diferentes medidas pode consumir em boa parte a receita auferida com a privatização - e, em vez de trazer vantagens, perpetuar problemas.

Apesar de todos esses absurdos a MP foi aprovada por 313 deputados da Câmara Federal, teve 166 votos contra e cinco abstenções. No Senado, a liderança do centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) prevê que o relatório do senador Marcos Rogério (DEM-RO) não deve promover grandes alterações no texto da Câmara e deve ser apresentado hoje e votado no dia seguinte. Resta saber se vai prevalecer o bom senso: o Senado pode retirar os aleijões que desfiguram uma proposta válida e necessária.

 

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