quarta-feira, 9 de junho de 2021

Vera Magalhães - Ameaças precisam ter resposta

- O Globo

Quando alerto aqui com certa frequência sobre condutas, declarações e gestos do presidente da República que encorajam aliados e seguidores a esticar a corda dos limites e ajudam a minar as instituições aos poucos, não se trata de alarmismo abstrato. Está acontecendo diariamente no Brasil.

É um risco enorme tratar Jair Bolsonaro como aquele tio do pavê que fala bobagens, mas elas não têm consequência. Num regime presidencialista com as características do brasileiro, o presidente não é café com leite. Se fosse, já teria caído.

Foi o que fez Marcelo Queiroga ontem na CPI, ao dizer que não é “censor” do presidente ou que aquilo que Bolsonaro fala e acha não impacta a política de saúde. É mentira, ele sabe, e estamos pagando em vidas esse preço.

Também incorre na mesma condescendência o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva, que, ao mesmo tempo que apresenta uma notícia-crime contra Ricardo Salles no Supremo Tribunal Federal, se recusa a nomear o presidente como o responsável por esses crimes. Salles não é ministro por geração espontânea. Está ali porque foi nomeado por Bolsonaro. Age como age porque tem o aval do presidente para tal.

A armadilha de tratar o capitão como inimputável, por ser “incorrigível” ou por falar “cada dia uma bobagem”, é ver um órgão de controle como o Tribunal de Contas da União emitir uma nota oficial dizendo que o presidente da República mentiu a respeito das mortes por Covid-19, o próprio Bolsonaro reconhecer que inventou esses dados e tudo ficar por isso mesmo. (Depois se soube que era pior: tratava-se de uma conta feita fora de qualquer processo por um auditor do órgão e disseminada nos grupos bolsonaristas.)

Todos esses episódios não são dissociados ou casuais. São exemplos bastante concretos, com consequências graves para o Brasil, do investimento de Bolsonaro no caos, de que tratei aqui no último artigo.

Autorizado pelo chefe, um deputado fartamente investigado como Ricardo Barros, investido da posição de líder de um governo que trabalha contra as instituições, se sente à vontade para ameaçar com o não cumprimento de decisões judiciais.

Para isso, se vale do discurso, massificado pela rede de fake news e desinformação bolsonarista, segundo o qual o STF e demais instâncias do Judiciário não teriam legitimidade para agir dentro do que a Constituição determina, exercendo o controle da legalidade dos atos dos demais Poderes. Barros só fala porque sabe que encontrará público, já cevado pela retórica golpista disseminada pelo bolsolavismo.

Qual o objetivo de longo prazo dessa trama muito bem engendrada, que vai sendo colocada em marcha sem admoestação? Questionar o resultado eleitoral, se for preciso. A sementinha da baboseira do voto impresso é o bode na sala para isso, com a mentira homérica do presidente de que houve fraude em 2018, a respeito da qual ele nem é cobrado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Mais uma que fica por isso mesmo, como se fosse “mais uma do tio do pavê”.

Bolsonaro teve êxito ao colocar Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República e ao aboletar Arthur Lira na Câmara. Assim não prosperam denúncias nem pedidos de impeachment contra ele.

Resta o Judiciário como entrave. Na eleição, o TSE será presidido pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele tem a chave das investigações sobre fake news e atos antidemocráticos, dois ovos da serpente do “ataque ao Capitólio” que os bolsonaristas preparam para 2022, já com os empresários que financiam o esquema, os sites que são escoadouro de dinheiro público para plantar desinformação e o uso de gabinetes e estruturas do Executivo e do Legislativo para fazer essa máquina girar.

Está explicado o chamamento à anarquia e ao desrespeito a decisões judiciais? Se essas mesmas instituições fecharem os olhos ao que está sob seu nariz, acordarão amanhã com o cabo e o soldado em suas portas, uma vez que, nos quartéis, parece já estar tudo dominado.

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