- O Globo
Fiz a pergunta a muitas pessoas de ambos os
polos e a uma minoria centrista que procurei como um detetive. Todos se
assombraram com minha inocência. Como é que eu — professor titular de
Antropologia Social e pesquisador da “alma brasileira” — não sabia que, entre
nós, quem manda não obedece?
Como é que eu podia ignorar que, no Brasil,
mandar anula o obedecer, essa desagradável anormalidade democrática que inverte
a velha ordem? Como é que eu esquecia que “estar no poder” é sinônimo de não
seguir coisa alguma, porque obedecer é o carimbo dos fracos e dos pobres?
É claro que Bolsonaro não usa máscara!
Como é que ele aceitaria tal banalidade, se
o sinal que envia é que pode tudo? No Brasil, ser superior é não estar com a
lei, mas situar-se acima dela, é claro.
É ter o privilégio de não ser cidadão. De
provocar e abusar, na certeza de não ser punido. É ser “impunível” e, se preso
for, ter a plena confiança de que um jurisconsulto ponderado vai livrá-lo da
prisão, que será especial — um xadrez hierárquico e diferenciado...
Ninguém definiu tais condições com mais clareza que o próprio Bolsonaro quando, em 12 de maio do corrente, numa de suas tiradas absolutistas, declarou que “só Deus me tira daqui” e, no dia 17, afirmou ser “imorrível, imbrochável e também incomível”. O incomível é curioso. Ele salienta a qualidade bolsonaresca de ser duro de roer, mas deixa de lado outras implicações que Freud explica, e eu prefiro não comentar...
A arrogância expõe as propriedades
conhecidas, mas pouco discutidas, de todos os que “sobem”, “chegam” ou “tomam”
o poder no Brasil.
Aqui (como na América Latina), ser
irremovível ainda é o sonho de quem encabeça um sistema que transforma eleições
em rituais dinásticos, ministros em fidalgos ou criados e o eleito, em salvador
(ou matador) da pátria. O populismo é o modelo resistente à igualdade do
presidente perante a lei.
Aprendemos que o dono da bola pode mudar as
regras do jogo e, sendo contrariado, ele acaba com o jogo.
O “golpe” é uma possibilidade constante em
países onde verdade e mentira se contestam. É preciso perceber que crimes
políticos hediondos, como “o rouba, mas faz”, ainda são vistos como piadas e
folclore.
O que mostra como evitamos examinar o
protagonismo dos costumes sobre as instituições. Aquilo que é positivo na
família, e até mesmo no partido, contraria a ética democrática.
É preciso compreender como a ambiguidade
ética corrói a impessoalidade obrigatória das democracias, cuja disciplina se
baseia na separação de pessoas e cargos. O atualíssimo e atrasado “manda quem
pode, obedece quem tem juízo” é um mote escravocrata. É uma prova da
desigualdade como valor no Brasil.
A decepção bolsonarista tem tudo a ver com
a incapacidade de negar o pedido de um amigo e de ver essa incapacidade como
normal. Como se lei, civilização, costumes e comportamentos fossem seres de
planetas diferentes, quando são dimensões necessariamente relacionadas nos
regimes democráticos.
Caso a “casa” continue a englobar a
política e a “rua”; caso os elos pessoais sejam mais valorizados que a
moralidade coletiva, temos incesto. O que iguala estruturalmente incesto e
“corrupção” é romper com uma norma pública universal em favor de desejos
particulares. Pois, como adverte sabiamente a revista “Playboy”, “o incesto é
legal desde que seja mantido em família”.
Mas como manter a muralha da família (e dos
compadrios) ao lado da liberdade do mercado e das gravações reveladoras da
verdadeira máscara do invocador do Tribunal de Nuremberg e também das facções
de ataque e defesa do governo, que são (com a devida vênia) contumazes
potoqueiras? Por que — essa é a grande questão — o campo político virou um
espaço de mentiras, malandragens e desenganos?
O abominável no comportamento de Jair
Bolsonaro é que ele ainda não conseguiu entender a magnitude do papel de
presidente da República. É claro que tudo tem a ver com a crença de que ele se
pense, como disse com uma ingenuidade embaraçosa, como “imorrível, incomível e
imbrochável”. Delas todas, eu invejo a mais humana, a última.
Como dizia o velho e querido brasilianista Richard Moneygrand, dificilmente se faz democracia com faraós.
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