quarta-feira, 9 de junho de 2021

Cristiano Romero - Contas públicas: e o povo?

- Valor Econômico

Desigualdade deveria nortear debate sobre contas públicas

O país a que chamamos de Brasil tem um problema fiscal grave porque o Estado gasta muito mais do que arrecada com tributos e outras receitas, como os dividendos gerados pelas empresas estatais onde o Tesouro Nacional é o maior acionista. Esta é, digamos, a dimensão macroeoconômica, debatida, geralmente, por especialistas, apartados de seu aspecto mais importante _ os impact0s na vida das pessoas; no caso deste país onde vive a 6ª ou 7ª maior população, seus efeitos sobre o destino da maioria pobre e miserável.

Toda e qualquer política pública só deveria ser adotada nesta Ilha de Vera Cruz depois de considerados seus efeitos sobre o arraigado conflito distributivo que nos caracteriza desde sempre. Em outras palavras, os três poderes da República não poderiam aprovar nenhuma iniciativa que aumentasse a concentração de renda existente, hoje, uma das cinco maiores do planeta. Observar esse aspecto a partir de agora seria o início de uma longa e nobre jornada desta sociedade rumo à criação de uma nação.

Não se trata de proposição absurda ou revolucionária. O projeto de nação já existe, está na Constituição que aprovamos em 1988. Essa mesma Constituição possui aspectos que contradizem seus princípios mais civilizadores, mas, os princípios que norteiam o caminho da virtude são cláusulas pétreas, presentes nos artigos que tratam dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos que habitam a 4ª maior extensão de terra contínua deste mundo.

Por que é necessário atrelar urgentemente as decisões de gasto público às necessidades dos mais pobres no Brasil? A resposta é simples: porque isso não foi feito nos últimos cinco séculos e porque a população envelheceu antes de o país enriquecer. Era razoável esperar que a Ilha de Vera Cruz se tornasse um país rico em algum dia? A resposta a essa indagação é uma pergunta: por que não apostar nisso?

Quando lançou sua pré-candidatura à Presidência dos Estados Unidos pelo partido Democrata em meados da década de 1970, o então senador Ted Kennedy foi solicitado a justificar seu objetivo. Numa entrevista que entrou para a história americana, o irmão mais novo de John Kennedy não pestanejou ao atribuir sua ambição, entre outras coisas, ao fato de os EUA serem "o país mais rico do mundo em recursos naturais".

Naquela ocasião, a economia americana já era a número 1 há décadas. A China ainda não havia acordado de seu pesadelo secular, o Japão e a Alemanha cresciam rapidamente, mas sem nenhuma chance de chegar perto dos EUA em termos de gigantismo econômico. Se fosse brasileiro e candidato aqui, Ted Kennedy teria usado o mesmo argumento de sua campanha (fracassada) para ser o candidato dos Democratas no pleito de 1975. Poucos país são tão ricos em recursos naturais quanto os Estados Unidos, o Brasil, a Rússia, o Canadá, a Austrália, a Argentina e alguns países africanos.

Para esses países, fracassar é (no caso de alguns, seria) um despropósito, cujas explicações estão bem distantes da imensa riqueza sob os pés de seus milhões de habitantes. Daí, o interesse de um político como Ted Kannedy _ o mais preparado do clã de Joseph Kennedy, dizem, para presidir os EUA _ em participar da política. É uma forma legítima e instigante de participar da luta que assegure melhor distribuição das riquezas entre os viventes.

Pobreza jamais deveria ser o destino da maioria dos brasileiros. Muitos dirão "é a história, estúpido". Sim, é verdade, mas, o século é o XXI e, agora, ficará mais difícil tapear o público. Se temos 56% de negros entre nós _ o número é maior porque muitos, por razões óbvias (isso aqui não foi uma democracia racial), a maioria, pobre e miserável, principal alvo da violência _ 600 mil negros assassinados entre 2008 e 2018 _, é necessário adotar para anteontem políticas de reparação em todas as áreas da vida nacional. Não se trata de reservar 10% das vagas, para a "inclusão" de uma minoria, afinal, estamos falando da maioria.

No Brasil, o racismo é escancarado e dissimulado ao mesmo tempo. Escancarado: na hora de contratar, a maioria das empresas opta pelo candidato de pele "branca". Dissimulado: para vender imagem de "inclusão", marca de cerveja fez filme publicitário apenas com atores negros. Ora, o efeito nesse caso é perverso porque falso _ seu objetivo é mostrar algo que não existe; seria muito educativo se aproveitasse o poder de sua marca para revelar o racismo que nos humilha desde 1500.

Em 2020, a pandemia fez o governo dispender o equivalente a 7,3% do PIB para minimizar seus efeitos sobre a população mais vulnerável e algumas categorias de empresas, além dos bancos. Foram efetivamente gastos R$ 524 bilhões, de um total previsto de R$ 604,7 bilhões, segundo dados oficiais do Tesouro. A diferença será desembolsada neste ano, informa o subsecretário da dívida pública, Otávio Ladeira _ R$ 36,6 bilhões já foram liberados e o restante será gasto até o fim do ano.

O Brasil foi o 10º país que mais gastou dinheiro público para enfrentar a pandemia. Ficou atrás apenas, em proporção do PIB, de Nova Zelândia (o que mais desembolsou com a crise), Canadá, EUA, Japão, Tailândia, Reino Unido, Áustria, Chile e Alemanha. Foi isso que reduziu a queda prevista para o PIB em 2020, das projeções iniciais de 9% para pouco mais de 4%. Este foi um exemplo de gasto que priorizou, não inteiramente mas em grande parte, os desvalidos.

E daqui em diante? Este é o drama real do país. O setor público amargou no ano passado déficit primário (conceito que exclui o gasto com juros da dívida) de 10% do PIB. Netsed ano, a pandemia ainda custará 1,4 ponto percentual do déficit primário esperado de 2,3% do PIB. O gráfico mostra como se comportaram as despesas desde 2004. Olhar para frente é colocar uma lupa nos números e, de uma vez por todas, reordenar radicalmente as prioridades de gastos da União.

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