Enunciei, de modo particular, no artigo passado, o tema do
“distritão”. Mencionei, superficialmente, algumas das suas possíveis implicações
e dei uma opinião, qualificando essa regra, que se pretende instituir, como retrocesso
em nosso sistema representativo, atentado contra instituições partidárias e um haraquiri
político para a elite parlamentar.
Para nivelar a informação entre leitores de variados graus de familiaridade com os aspectos formais do nosso sistema eleitoral e suas implicações sobre a política concreta, farei menção a alguns desses aspectos. Peço desculpas, por essa digressão, a quem já tem essas informações. E para não me perder em pormenores no exíguo espaço dessa coluna, sugiro a escuta do podcast https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/ 2021/07/05/o-assunto-487-um-retrocesso-chamado-distritao.ghtml, em que a jornalista Renata Lo Prete esmiúça esse e outros assuntos correlatos, com o auxílio de colegas seus e também entrevista o cientista político Jairo Nicolau sobre esses mesmos assuntos.
De longa data, como já dito, utilizamos o critério proporcional
para a conversão de votos em cadeiras nas casas legislativas, exceto o Senado
Federal, cujas cadeiras são preenchidas conforme o critério majoritário, isto
é, ocupam-nas os candidatos mais votados, em cada Estado (o mais votado,
quando, numa eleição, como se dará em 2022, está em jogo apenas uma cadeira, ou
os dois mais votados, quando se disputa duas cadeiras por Estado).
O que se propõe, com o chamado distritão, é utilizar o mesmo
critério majoritário ao conferir mandatos de deputado federal e estadual (e a
partir de 2024, também de vereador). Estariam eleitos, em cada Estado, os
candidatos mais votados, não importando a filiação partidária de cada qual.
Seriam desprezados os votos de legenda e não mais se somaria os votos dos
candidatos de um mesmo partido para definir o tamanho de sua bancada. Essa
teria dimensão definida aleatoriamente, a depender do êxito eleitoral
individual de cada filiado seu. Desapareceria a influência do fator partidário
na conversão dos votos dos eleitores em cadeiras no Legislativo, reservando-se
aos partidos um papel relevante apenas no momento seguinte, quando o número de
cadeiras alcançado aleatoriamente poderá ser convertido em proporcionalidade,
para efeito de prerrogativas no âmbito do Legislativo (participação em mesas
diretoras, comissões, horários na tribuna, acesso a espaços físicos e a
recursos de pessoal, etc...) do Executivo (negociação de cargos e posições de
governo, a depender das regras formais e informais do sistema de governo
manterem ou alterarem as do morto-vivo presidencialismo de coalizão) e do
acesso institucionalmente regulado a meios de comunicação e a fundos de
financiamento de propaganda partidária e eleitoral.
Em resumo, o critério da proporcionalidade seria mantido em tudo o
que diz respeito ao peso institucional relativo de cada partido, exceto no que
se refere à representação do eleitor, de cuja nomeação esse critério seria
banido. Em bom português, interesses de minorias seriam proporcionalmente
considerados no interior do sistema político, mas os interesses e os votos não
majoritários dos eleitores não seriam considerados para decidir quem pode e
quem não pode tomar decisões em seu nome no sistema político. Como Jairo
Nicolau mostra, com exemplos, no podcast que indiquei acima, não seria a
minoria, mas a maioria dos eleitores que teria seus votos para o legislativo destinados
ao lixo. A exclusão dos partidos no momento da conversão de votos em cadeiras implica
em converter apenas os votos de quem votou nos poucos candidatos mais votados.
A maioria dos eleitores não será representada nem pelo candidato em quem votou,
nem por uma bancada do partido a que ele pertence. Que outro nome isso merece
senão oligarquia?
Segunda implicação negativa relevante é a reversão prévia dos
efeitos benfazejos da reforma eleitoral de 2017 sobre os sistemas eleitoral e
partidário, antes mesmo de sua efetividade ser verificada. Explico: em 2017 o
Congresso aprovou duas regras voltadas a dar mais consistência à representação
política e a corrigir sua dinâmica fragmentadora. A dispersão dos votos por candidatos
de um número exorbitante de partidos era facilitada pela permissão de
coligações em eleições proporcionais (de deputado e vereador). Diversas
legendas inexpressivas entrincheiravam-se nas coligações para fugir da conta da
proporcionalidade, camuflando-se para usufruir de quocientes de partidos
maiores em troca de apoiar candidatos desses partidos, em geral governistas, a
eleições majoritárias para o Senado, ou para o Poder Executivo. Vedar essas coligações foi um passo importante
que já teve efeitos nas eleições municipais de 2020, mas ainda não pôde ser
testado em eleições estaduais e nacionais, como está previsto que seja agora,
em 2022. Se aprovado o “distritão”, toda essa estratégia perde o sentido pois
aos partidos interessará, para ter representação legislativa, recrutar ainda
mais, como candidatas suas, personalidades midiáticas e a essas pode passar a interessar
o negócio com pequenas legendas (já que o peso da legenda não conta, pela nova
regra), as quais mais facilmente manejarão, sem precisar lidar com quadros
partidários relevantes e procedimentos institucionalizados.
Outra regra instituída pela reforma de 2017 foi a chamada
“cláusula de barreira”, pela qual se exige de um partido, para que tenha
representação parlamentar, um desempenho eleitoral mínimo de 2% dos votos,
razoavelmente distribuídos pelo território nacional. Essa medida, sintonizada
com a ideia de reduzir o número de partidos gradativamente, sem intervenções
bruscas e de acordo com as tendências dos eleitores manifestadas pelo voto,
interage positivamente com a do fim das coligações, indo, ambas, na mesma
direção. O distritão tornaria ociosa também essa regra, uma vez que o acesso de
qualquer legenda ao parlamento, por mais inexpressiva que ela seja, vai se decidir
pela presença, entre seus quadros, de algumas daquelas personagens midiáticas. Por
intermédio delas teriam acesso a recursos públicos e a centros decisórios que
lhe seriam vedados por sua força própria.
Vale considerar, como uma terceira implicação possível, que a
aprovação do distritão seja a consagração do candidato de si mesmo e a
legitimação pretensamente vitalícia do tipo de processo de renovação/circulação
de elites detonado em 2018 na contramão da política. Muitos deputados e
senadores foram eleitos, naquele clima desinstitucionalizante, de
salve-se-quem-puder, cavalgando (ops!) o discurso de denúncia da “velha
política”. Comportaram-se como contra elite, inorgânica e arrivista e agora
tentam se perpetuar nos lugares que galgaram, servindo-se de um expediente
reacionário. Sim, porque a adoção do “distritão” quer fazer a representação
política retroceder não apenas a antes de 1945, mas até mesmo à I República, a dos
coronéis, na qual a representação era apropriada por agentes privados,
dispensando mediações institucionais entre eles e suas clientelas.
A senha do “distritão” é que prevalecerá quem puder arregimentar
votos, não importa como. Enfraquecidas ou ausentes as balizas partidárias,
desaparece da cena eleitoral o sentido de compromisso político público. Se cada
um é por si, o companheiro de partido é tão adversário quanto o candidato do
partido politicamente oposto. O que se
pode esperar é ainda mais radical desconexão entre a atividade parlamentar e
atitudes de articulação, agregação e cooperação políticas. Seria o reinado incontestado
da concorrência sem freios. O império do interesse mal compreendido como
“liberdade” do indivíduo eleito de se opor ao interesse público, aos direitos
de quem não é seu eleitor e aos limites da própria lei.
Apresentada na legislatura anterior (2015-2018) - antes, portanto,
do tsunami que cavalgou o mote demagógico da “nova política” - essa
proposta não obteve, em 2017, consenso suficiente para conquistar maioria de
três quintos nas duas casas do Congresso e tornar-se Emenda Constitucional. Mas
obteve apoio de quase metade (caiu por 205 x 238) do plenário da Câmara de
então. Agora, o ponto do “distritão” foi acolhido no parecer da relatora da
PEC, Deputada Renata Abreu (Podemos), aprovado pela Comissão de Constituição e
Justiça da atual Câmara. Em sinergia com um ambiente de desconstrução
institucional, promovido pelo governo federal, uma virtual maioria numericamente
qualificada de mandatários da atual legislatura, filha do páthos de
2018, parece que pode estar em vias de cometer esse gesto desconstituinte, em busca
de renovar seus mandatos.
O propósito de reeleição é trivial e comum, por definição, a todo político
sujeito à grande incerteza da carreira em democracias altamente competitivas
como a brasileira. A reforma de 2017 mostrou que o auto interesse não colide,
necessariamente, com o interesse público ou do bom funcionamento institucional
do sistema político. Políticos profissionais experimentados são (ou se espera
que sejam) peritos em promover, através de consensos costurados no interior da
instituição e, também, com a sociedade, a compatibilização entre essas lógicas
distintas. Por outro lado, se entregue a profissionais peritos apenas no
próprio umbigo, arrivistas espertos, amadores açodados, e/ou neófitos cheios de
apetite, a empreitada pode provocar desastres a longo prazo, capazes de engolir
também os ases do curto prazo. Ao que transparece da observação de movimentos
do presidente da Câmara, o auto interesse que corre solto em seu plenário é ali
tão mal compreendido, por supostos beneficiários da aventura, que põe em risco
o hardware (no caso, os sistemas eleitoral e partidário) pelo qual transitam
os objetivos soft de cada agente individual.
O sinal amarelo precisa ser ligado inclusive por quem supõe não
ter nada a ver com isso.
*Cientista político e professor da UFBa.
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