Correio Braziliense
Um balanço da atuação do
presidente Bolsonaro, em dois anos e meio, mostra uma fuga permanente da
realidade, a aversão aos verdadeiros problemas da sociedade
Psicólogos têm uma espécie de protocolo
para identificar um mitômano: o sujeito não sente culpa ou medo do risco de ser
descoberto; suas histórias são exageradas; inventa sem motivo aparente ou
ganho; aparece sempre como herói ou vítima; repete as mentiras com versões
diferentes. Tudo para fazer as pessoas acreditarem na imagem que procura
construir para si próprio. Não é à toa que a mitomania também é chamada de
“pseudologia fantástica” ou “mentira patológica” — um transtorno psicológico, a
tendência compulsiva por mentir sem que exista, necessariamente, demência.
O mentiroso tradicional usa a imaginação
para ter proveito ou vantagem em alguma situação, o que não é incomum na
política. Já o mitômano mente com o objetivo de disfarçar a sua própria
realidade, ou seja, para se sentir confortável, se tornar mais interessante ou
agradar o grupo social do qual faz parte. Qualquer semelhança com o presidente
Jair Bolsonaro, que se autodenomina de “mito”, não é mera coincidência.
Na sexta-feira passada, bateu todos os
recordes de mentiras sobre as eleições no Brasil, em confronto aberto com o
Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na
tentativa de criar um ambiente de tumulto e questionamento dos resultados das
eleições de 2022, caso não seja eleito.
Suas mentiras desenham um projeto político reacionário, que coleciona atitudes, declarações e fatos para emular a formação de uma falange política armada no país. Somente na semana passada, tivemos a surpresa de um encontro do nosso presidente da República com uma parlamentar alemã de notórias ligações neonazistas, empenhada em articular um movimento de extrema-direita de caráter internacional.
Uma alegoria do rumo em que vamos foi o
lastimável incêndio no prédio da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, por falta
de recursos para sua manutenção. É uma síntese da política anticultural do
governo, empenhado em destruir o que foi construído por gerações de artistas e
intelectuais brasileiros, às vésperas do Centenário da Semana de Arte Moderna
de 1922, um marco da cultura nacional.
Um balanço da atuação do presidente da
República nesses dois anos e meio de governo mostra uma fuga permanente da
realidade e a aversão aos verdadeiros problemas da sociedade. Bolsonaro nunca
fez parte da elite política do país e deixou a carreira militar por
indisciplina. Era um parlamentar do “baixo clero” da Câmara, mas foi eleito com
57,7 milhões de votos para conduzir a “grande política” do país. Os rumos da
nação dependem de suas decisões. É por isso que o país vai mal. Seu negativismo
é responsável pelo fracasso do governo no combate à pandemia de covid-19, que
já registra mais de 555 mil mortos. Agora, não consegue traduzir em ações
positivas a energia que a sociedade revela na retomada de atividades
econômicas.
Contágio
Segundo a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia (SPE/ME),
o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil deve crescer 5,3% em 2021. A estimativa
anterior era de alta de 3,5%. Isso não se traduz em ganhos sociais efetivos. A
taxa de desemprego continua no patamar de 14,6%, com 14,8 milhões de pessoas
procurando emprego, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad)
Contínua. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) está projetado para
5,90% em 2021. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) deve subir
6,20% este ano. A inflação pelo IPCA acumulada em 12 meses é de 8,4%. Para
fechar o ano em 5,9%, é preciso um “tour de force” do governo para conter
gastos, gerar empregos e transferir rendas. O que mantém a atividade econômica
“por baixo” é a grande massa de brasileiros na informalidade, em torno de 34,7
milhões.
Houve um apagão de empregos formais.
Entretanto, é mais fácil mudar a metodologia do que enfrentar a realidade. O
ministro da Economia, Paulo Guedes, errático, perdeu “o tempo da bola”, como
diria o vice Hamilton Mourão. Desperdiçou a oportunidade das reformas. Agora,
contesta os números do IBGE, novamente sob ataque, como o Inpe esteve, por
exemplo, no caso do desmatamento e das queimadas. O Cadastro Geral de Empregados
e Desempregados registra a criação de 1,5 milhão de vagas com carteira assinada
no primeiro semestre do ano, dos quais 300 mil somente em junho. Guedes alega
que foram 2,5 milhões desde a pandemia. Segundo o ministro, estão sendo criados
1 milhão de empregos a cada três meses e meio. Só falta avisar aos
desempregados. A mitomania pode ser contagiosa.
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