O Globo
Existe um Brasil feliz enquanto sonâmbulo.
Nesta primeira semana de Olimpíada em Tóquio, quem teve picos de alegria fez
jornada dupla: trampo habitual durante o dia, noites e madrugadas de arroubos.
Tentar acompanhar as transmissões ao vivo com as 12 horas de diferença de fuso
horário é um perrengue — você adormece embrulhado em mantas e cobertores, com a
TV ligada, e lá pelas tantas entreabre um olho para espiar. No momento
seguinte, você se vê sentado na cama descobrindo que um brasileiro cujo nome e
rosto só aficionados conheciam (o skatista Kelvin Hoefler) conquista a primeira
medalha para o país (prata). Horas depois, entre alguns cochilos a mais, vem o
sinal de que, com ou sem pandemia, o judô continua a honrar o país — o gaúcho
Daniel Cargnin abocanha o primeiro bronze. Dias depois, a judoca Mayra Aguiar
enche a tela com seu júbilo emotivo: primeira atleta brasileira de provas
individuais a conquistar uma terceira medalha em Olimpíadas.
Assim foi semana adentro, num crescendo. A habilidade faiscante da adolescente Rayssa Leal, medalha de prata no skate street, fez o Brasil rir com leveza, sentir-se mais jovem e olhar para essa modalidade agora olímpica como um bem nacional. Sonhar acordado também vale. O longo jejum de 23 anos da natação brasileira em pódios olímpicos foi quebrado por outro gaúcho, Fernando Scheffer, nos 200m nado livre. E quem consegue dormir quando a disputa pelo ouro na estreia olímpica do surfe é tão espetacular? Nem aí para a feiura da praia Tsurigasaki, nem aí para o tempo inclemente no dia da prova. O potiguar Ítalo Ferreira fez o Brasil deslizar sobre as ondas. Conquistou o primeiro ouro para o país mantendo sua encantadora marca pessoal: a não celebridade.
Houve arrancadas fenomenais, como a virada
da seleção masculina de vôlei contra a Argentina, a vitória contra os Estados
Unidos; houve saídas de cena amargas, como a derrota da tão querida seleção
feminina de futebol, da era Marta.
Houve, mais que tudo, a ginasta negra de
Guarulhos chamada Rebeca Andrade. Primeira atleta brasileira a ganhar uma
medalha (prata) na modalidade individual geral, Rebeca percorreu os quatro
aparelhos da competição com uma segurança atípica em ginastas. Quando sorria,
parecia realmente estar sorrindo, ao contrário do ríctus mecânico tão comum em
largadas e finais de aparelhos. Rebeca é filha do Brasil real, fruto atlético
germinado num projeto social de iniciação esportiva da prefeitura. Em 90
segundos de prova do solo, juntou Johann Sebastian Bach com o “Baile de favela”
do MC João e cravou a batida do funk das periferias na história dos Jogos Olímpicos.
Cravou também no solo de Tóquio a marca da
população brasileira invisível que poderia deixar de sê-lo se beneficiada por
um leque de políticas públicas de alguma qualidade e duração. Isso não
significa que o Brasil se tornaria um celeiro de Rebecas — ela é fruto de seu
talento único e de como toureou a vivência —, mas poderia significar que o
Brasil se tornaria um celeiro de cidadãos menos invisíveis. “Sucesso é ter
saúde e poder estar aqui”, resume o MC João. Fernando Scheffer, o nadador do bronze,
disse algo semelhante à TV Globo. “Um povo que passa por tantos perrengues,
quando chega a hora de cair na água parece fichinha. Dá para olhar para os
gringos e falar: ‘Esse cara não passou pelo que passei’.”
Resumindo, nesta semana fomos felizes enquanto
dormíamos ou sonambulávamos. Duro foi acordar para a rotina do dia, com sua
realidade indigesta, cruel, injusta, corrompida e sem modos. É de dia,
acordados, que vivemos um pesadelo nacional chamado Jair Bolsonaro. Raras vezes
o país teve um presidente tão ignaro. Sobre Rayssa Leal, merecido crush
nacional do skate e fora dele, ele fez um típico comentário en passant: “Teve
uma menina agora que levou medalha de prata no skate, né?” — para engatar num
autoelogio a seu governo.
Acordar foi ver estampada nas redes sociais
a imagem de um jagunço armado como homenagem oficial ao Dia do Agricultor.
Acordar foi constatar que, em pouco mais de
um mês, juntaram-se outros 55 mil mortos por Covid-19 ao meio milhão
ruidosamente homenageado no mês passado. Dá trabalho não permanecer anestesiado
diante da realidade. No mesmo dia em que o prefeito do Rio de Janeiro anunciava
“quatro dias de festa em setembro para comemorar o fim da pandemia”, o Centro
de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos admitia, em relatório interno,
que a variante Delta do vírus equivale a “uma nova guerra”. Ela seria tão
infecciosa quanto a catapora e igualmente transmissível por vacinados ou não
vacinados.
Acordar foi ver novamente as fotos sapecas
de três amigos: Lucas Matheus, de 9 anos, Alexandre Silva, de 11, e Fernando
Henrique, de 12. Brincavam perto de casa em Belford Roxo num domingo de
dezembro de 2020, mas nunca retornaram para o almoço. Simplesmente foram
sumidos. Suspeita-se terem sido vítimas do tráfico, após uma das crianças ter
roubado uma gaiola de passarinho de um aparentado do crime. Nesta semana,
passados sete meses, a polícia achou uma ossada em local onde um homem afirmou
ter deixado sacos com corpos.
Acordar foi ver as cinzas de parte da
história audiovisual do país, após o incêndio no galpão da Cinemateca
Brasileira, em São Paulo, que abrigava toneladas de documentos.
Queima a Amazônia, arde o Cerrado,
desaparecem pessoas, incêndios somem com a cultura, matam-se fatos e a verdade.
Melhor aproveitar a Olimpíada para poder ver sonhos se tornarem realidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário