domingo, 1 de agosto de 2021

Elio Gaspari - O governo empulha até quando age

O Globo / Folha de S. Paulo

Bolsonaro agrava crise hídrica ao maquiá-la

A cloroquina, a “gripezinha” e a “nova política” ganharam uma companheira. É a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética, criada em junho. Atrás dessa salada, escondem-se o risco de um apagão devido à falta de chuvas e a opção preferencial pelo negacionismo que alimenta as marquetagens do governo.

Bolsonaro não pode ser responsabilizado pela redução do volume de água nos reservatórios, mas quando decide encarar o problema maquiando-o, agrava-o. A pandemia mostrou que nos desvãos do negacionismo e da prepotência infiltram-se as picaretagens de intermediários milagreiros.

No caso da falta de chuvas, o governo erra porque quer. Tem à mão a literatura do desempenho do governo de Fernando Henrique Cardoso na crise de 2001. Os demônios de então eram os mesmos de hoje: burocratas negacionistas protegiam-se com a dispersão da autoridade.

FH deu plenos poderes a Pedro Parente, seu chefe da Casa Civil, e ele criou uma Câmara de Gestão da Crise de Energia. Os marqueteiros reclamaram, pois não queriam falar em crise.

Parente bateu o martelo:

— Não, tem que usar a palavra crise. É Câmara de Gestão da Crise de Energia, porque a população precisa entender que estamos vivendo uma crise. Não adianta esconder.

Se ele não tivesse feito isso, talvez tivesse sido criada uma Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética.

O STF criou um bate-boca

Pelas contas da ONG Artigo 19, em 2020 Jair Bolsonaro soltou 1.682 declarações falsas ou enganosas, quatro por dia. (Em quatro anos, o presidente americano Donald Trump, seu guia, soltou 30.573).

Na semana passada, a página do Supremo Tribunal Federal rebateu um bordão de Bolsonaro, segundo o qual a Corte limitou os seus poderes para combater a Covid e argumentou: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade? Não.”

Bolsonaro havia dito que “se eu estivesse coordenando a pandemia, não teria morrido tanta gente”. Só Deus sabe quantos teriam sido os mortos se o Supremo Tribunal tivesse permitido que invadisse a competência dos estados. A CoronaVac não teria sido comprada, o distanciamento social teria sido suspenso e todo mundo estaria mascando cloroquina.

Santa iniciativa, mas o tribunal não fala por intermédio de redes sociais. Num mundo ideal, ele fala por meio de suas decisões. Pode-se entender que, em casos excepcionais, fale pela voz de seu presidente. Avacalhando o rito, acabará batendo boca em balcão de lanchonete.

Uma mentira repetida mil vezes não vira verdade, mas o seu propagador nunca deixa de ser mentiroso. Joseph Goebbels, autor da frase e ministro da propaganda de Hitler, foi um homem de muitas ideias. Em abril de 1945, quando Berlim estava em escombros e faminta, ele propôs que fossem trazidas vacas da zona rural para dar leite às crianças.

Não explicou como as vacas se alimentariam.

Carta branca

O senador Ciro Nogueira é habilidoso e experiente, mas se acha que Bolsonaro lhe deu autonomia para fechar acordos políticos na Casa Civil, comprou um terreno na Lua com vista para Saturno.

Sergio Moro comprou um lote nesse condomínio. Ficava ao lado do Posto Ipiranga de Paulo Guedes.

José Arthur Giannotti

Foi-se o professor José Arthur Giannotti. Deixou sua obra e um exemplo de distanciamento do poder.

Amigo por décadas de Ruth e Fernando Henrique Cardoso, hospedava-se no Palácio da Alvorada quando ia a Brasília.

FH colocou-o, por mérito, no Conselho Federal de Educação, que autoriza a criação de universidades particulares. Quando entrou na pauta a transformação das faculdades Anhembi-Morumbi em universidade, ele votou contra, perdeu, pegou o boné e abandonou o Conselho.

Na época, ele explicou:

 “Há faculdades sem bibliotecas, que tomam estantes emprestadas quando temem a chegada da fiscalização. Há escolas que são caça-níqueis. Quando anunciei minha demissão, um dos conselheiros disse que, tendo perdido a votação, eu queria vencer no tapetão. O meu jogo é outro. Não recorro a amizades para resolver esse tipo de problema. Eu estava hospedado no Alvorada e não comentei o episódio com o presidente. Não vou ganhar no tapetão. Quero ir à luta no gramado.”

Lutou enquanto viveu.

Cenário da catástrofe

O comitê eleitoral instalado no Palácio do Planalto trabalha para reeleger Bolsonaro no ano que vem. Os profissionais sabem que isso é possível, mas temem o cenário de uma catástrofe: o capitão não chegaria ao segundo turno.

O ex-ministro Gilberto Kassab, respeitado por suas previsões eleitorais, admitiu essa hipótese há poucas semanas.

De lá para cá, de forma sibilina, Bolsonaro disse em duas ocasiões que poderá não se candidatar. Isso não é verdade, mas, por via das dúvidas é uma rota de fuga, fabricando algum tipo de crise.

Paes, o festeiro

A revista “Economist” chamou o capitão de Bolsonero, mas ele ainda não fez o que o prefeito do Rio anunciou. Eduardo Paes revelou uma programação de festas para a primeira semana de setembro. Empunhou um slogan, “Rio de Novo”, e prometeu festas, comidas e jogos de botequim.

Isso num dia em que os dados oficiais do Rio registraram 154 mortes, com 89% dos leitos de UTIs ocupados.

A pandemia matou mais de 30 mil pessoas na cidade, inclusive o pai do prefeito.

Com seu chapéu panamá, Paes adora festas. Hospedou uma Olimpíada que legou elefantes brancos e inaugurou a ciclovia Tim Maia, “a mais bonita do mundo”, que desabou três vezes e matou duas pessoas.

A programação anunciada por Paes não incluiu um só ato em ação de graças, no qual poderiam ser lembrados os mortos.

Em tempo: Nero não cantou enquanto Roma pegava fogo. Ele não estava na cidade.

Mico diplomático

No próximo sábado, completa-se um mês da divulgação da notícia de que o pastor Marcelo Crivella seria o novo embaixador do Brasil na África do Sul.

A etiqueta diplomática recomenda que o nome de um novo embaixador só seja divulgado depois da concessão do agrément do país para onde ele irá. A mesma etiqueta informa que quando o governo não responde prontamente, isso significa que ele prefere não receber o indicado.

Crivella está com o seu passaporte retido por decisão judicial.

Cadeia de comando

O capitão Bolsonaro disse que tratou do caso da vacina indiana com o general Pazuello, que passou a denúncia ao coronel Elcio Franco, que nada viu de errado na picaretagem.

Nunca é demais relembrar o texto que o general Dwight Eisenhower escreveu em junho de 1944, na véspera da invasão da Normandia pelas tropas aliadas, para o caso de um fracasso:

“Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.

No padrão de seu governo, a encrenca da Covaxin terminará sendo atribuída às vítimas da Covid.

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