No Brasil, Bolsonaro repete líderes autoritários e atenta contra direitos civis e liberdades individuais operando o Direito, aponta levantamento
Bruno Ribeiro /Daniel Bramatti / Marcelo
Godoy / O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro e seus
ministros já editaram 88 decretos, MPs, portarias, pareceres ou resoluções ou
patrocinaram projetos com medidas que corroem o Estado ou atentam contra as
liberdades civis e os diretos constitucionais. Para o professor e ex-ministro
Celso Lafer, esse fenômeno é a “cupinização” das instituições.
Era 2 de julho de 2018 quando o então
candidato à Presidência pelo PSL, Jair Bolsonaro, revelou em entrevista um
desejo: se eleito, pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF). Seria, segundo sua justificativa, uma forma de
pôr “juízes isentos lá dentro”. Durante a campanha, o tema adormeceu. Mas,
pouco depois da posse, o presidente tentou uma manobra para mexer na composição
da Corte. Incluiu-se na reforma da Previdência um artigo que retirava da
Constituição a idade-limite de 75 anos para os ministros do Supremo, deixando
que ela fosse definida em lei complementar.
A medida foi dissimulada em meio à Proposta
de Emenda à Constituição patrocinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Não haveria justificativa para estar ali, até porque o impacto de 11
aposentadorias é irrisório para o caixa da Previdência. Tratava-se, segundo os
críticos, do primeiro ataque à democracia e à independência dos poderes feito pelo
governo de Bolsonaro. A retirada da idade-limite da Constituição permitiria ao
presidente fixar por lei nova idade-limite, menor do que a atual, aposentando
uma leva de ministros da Corte.
“É o modelo posto em prática na Venezuela e na Polônia”, disse Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ou aposentam ministros ou aumentam o número para garantir o controle da Corte Constitucional. O novo autoritarismo age por meio do Direito para obter legitimidade.” Em 2004, Hugo Chávez elevou o número de ministros da Corte Constitucional da Venezuela de 20 para 32. Na Polônia, o partido Direito e Justiça (PiS) usou a desculpa do combate à corrupção para tentar aposentar à força 27 dos 72 juízes da Corte Suprema.
Levantamento do Estadão sobre a atuação de
Bolsonaro em 20 temas mostra que, desde sua posse, o presidente e seus
ministros editaram 88 decretos, medidas provisórias, portarias, pareceres ou
resoluções ou patrocinaram projetos de lei e alterações legais que incluíam
medidas que corroíam o Estado ou atentavam contra liberdades civis e direitos
constitucionais. Ou seja, a cada 11 dias, ao menos uma medida desse tipo foi
criada pelo governo. O levantamento leva em conta a avaliação de analistas.
Trata-se de um processo de “cupinização” do
governo das leis, na expressão do professor emérito da USP e ex-ministro das
Relações Exteriores Celso Lafer. “Você vai ‘cupinizando’ as regras do Direito.
No fundo, o que o governo Bolsonaro busca é, fugindo das instituições e das
regras do Direito, sempre definir a exceção para obter a servidão voluntária e
‘cupinizar’ as instituições.”
Segundo Pires, o Direito é a forma de os
populistas autoritários criarem exceções com as quais modificam estruturas do
Estado, atacam a democracia e negam direitos. Suas decisões são sempre tomadas
levando em conta a oposição entre amigos e inimigos (mais informações nesta
página).
Lafer e Pires usaram a mesma pista para
compreender esses governos e suas relações com o Direito: as obras do pensador
francês Étienne de La Boétie e do jurista alemão Carl Schmitt. “La Boétie trata
da servidão voluntária e, evidentemente, o que os bolsonaristas acabam logrando
é a servidão voluntária de seus sequazes”, afirmou Lafer. O ex-ministro
prosseguiu: “Para Schmitt, não interessa a normalidade; interessa a exceção. O
que caracteriza o pensamento dele é poder definir a exceção, a capacidade de
poder defini-la. O soberano tem o poder de declarar a exceção. No fundo, o que
Bolsonaro quer é ter o poder soberano de declarar a exceção”.
É isso que explicaria ações do governo,
como a Medida Provisória 979, de 2020, que autorizava Bolsonaro a nomear
reitores provisórios para universidades federais enquanto durasse a pandemia de
covid-19. A intervenção na autonomia das universidades – identificadas pelo
governo como centros dominados por inimigos esquerdistas – foi barrada pelo
então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que devolveu a MP sem
analisá-la. Era a segunda vez que Bolsonaro tentava, sem sucesso, modificar o
processo de escolhas dos reitores.
O mesmo modo de agir – não para a adoção de
políticas, mas para atacar inimigos escolhidos pelo governo – teria marcado a
ação do governo em outra área: a do Meio Ambiente. Populações indígenas e a
atuação de ecologistas e de ONGs ligadas à Amazônia foram escolhidas como alvo
pelo governo, a ponto de o Supremo ter obrigado Bolsonaro a estabelecer um
plano de combate à covid-19 nas aldeias e ter destituído o presidente do Ibama
sob a acusação de ele ser conivente com a exploração ilegal de madeira. Quase
metade das normas que corroem a base legal do Estado teve como objetivo
enfraquecer a defesa do Meio Ambiente.
Para a subprocuradora-geral da República
Luiza Frischeisen, governos autoritários têm projeto de destruição de direitos.
No Brasil, muitas das medidas contestadas nesta gestão foram adotadas como
portaria ou decreto, em razão da resistência do Congresso a mudar as leis, como
no caso das legislações ambiental e de armas. Ela destacou ainda o perigo de
mudanças na lei eleitoral servirem para restringir a democracia e a
representação popular. “O Ministério Público é resiliente e seus integrantes
vão cumprir seu dever. Assim como o STF, que entendeu muito bem que deve ser
uma barreira à desconstrução da Constituição.”
Lafer também citou a resistência no Brasil
a medidas do atual governo. “A tradição política do Direito é conter o
arbítrio. É o que dizia Rui Barbosa na Oração aos Moços. Ele sempre procurou
assegurar o governo das leis e não o dos homens. Cabe ao advogado, nesse
sentido, um tipo de magistratura. É isso que muitos juristas, preocupados com a
res pública, procuram fazer: exercer essa magistratura.”
Crise. Juntamente com o Judiciário, as
universidades e a área ambiental, a imprensa é um dos alvos prioritários da
ofensiva antidemocrática de Bolsonaro. Levantamento da organização Repórteres
Sem Fronteiras, divulgado na semana passada, identificou 87 ataques do
presidente à imprensa nos primeiros seis meses deste ano, o que representa um
aumento de 74% em relação ao semestre anterior. Foram 49 ataques contra a
imprensa em geral, 28 contra veículos específicos e dez contra jornalistas. Se
considerado o “sistema Bolsonaro” – grupo que inclui a família e ministros do
presidente –, o número de ataques no semestre chega a 331. No ranking de
agressores, Bolsonaro está em primeiro lugar, seguido por seus três filhos.
Também divulgado na semana passada, o
Relatório Global de Expressão, da organização Artigo 19, qualificou o Brasil como
uma “democracia em crise”. No relatório, que é relativo a 2020, o País
registrou só 52 pontos na escala de liberdade de expressão, que vai de zero a
cem, sendo zero a nota de um país sem liberdade de expressão e cem a de total
liberdade. Foi a menor pontuação brasileira no indicador desde a primeira
medição, em 2010.
O documento enumera 464 situações em que o
presidente, ministros ou assessores próximos “atacaram ou deslegitimaram
jornalistas e o seu trabalho, nível de agressão pública que não é visto desde o
fim da ditadura militar”. A Artigo 19 é uma organização que promove o direito à
liberdade de expressão e de acesso à informação no mundo. Seu nome tem origem
no 19.º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
O Estadão procurou o Palácio do Planalto e a assessoria da Casa Civil para que comentassem o papel do governo na erosão da democracia, mas não houve resposta aos questionamentos da reportagem.
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