Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Depois da redução nos benefícios
assistenciais ter ampliado universo dos biscates, preços como os dos
combustíveis fecham a porta de saída do empreendedorismo, largamente ignorado
pelas redes sociais
Na tarde da última sexta-feira antes do
feriado de Sete de Setembro, três faixas foram colocadas na Ponte do Piqueri,
Zona Norte de São Paulo, na avenida Brasil, zona Norte do Rio, e na Praça dos
Três Poderes, em Brasília. “$7,00/litro de Setembro”, dizia a mensagem. As
imagens inundaram as redes sociais. Impossível dizer tanto com tão pouco.
Dilson Teixeira, motorista de aplicativo em
São Paulo, não chegou a vê-las, mas foi apresentado às fotos pelo celular. Não
entendeu a que aludia a junção da cifra ao dia da pátria, mas reconheceu que a
gasolina cara havia reduzido a concorrência por passageiros em São Paulo. Não
fazia o mesmo porque, sendo bombeiro civil aposentado, não depende da renda do
aplicativo para viver.
Com a resistência das empresas em reajustar
a tarifa ou aumentar o valor dos repasses, um quarto dos motoristas de
aplicativos já desistiu de rodar na capital paulista, nas contas da associação
dos trabalhadores do setor. Crescem as reclamações de usuários sobre a demora
no atendimento.
Dilson é um dos 32 milhões de brasileiros que, nas contas do instituto Locomotiva, conseguem renda por algum tipo de aplicativo. São pessoas que voltaram a trabalhar depois da aposentadoria, deixaram o mercado de trabalho formal ou não chegaram nem mesmo a nele ingressar. Uma parte deles abriu uma microempresa para isso.
Do entregador à manicure, agora todo mundo
é MEI. São 11,8 milhões delas que respondem por 56% dos negócios feitos hoje no
Brasil. Quem ainda não é MEI quer ser. No mapeamento de buscas do Google, a
Bites identificou que o interesse pelas MEIs é o dobro daquele verificado em
relação ao seguro desemprego. São 500 mil buscas por mês por informações sobre
microempreendedor individual e um total de 6 milhões acumuladas.
No momento mais quente da tramitação da PEC
do voto impresso, o interesse por MEI foi 20 vezes maior do que pela urna
eletrônica. A MEI começou a ombrear até mesmo o auxílio emergencial. O
interesse no benefício, que, em abril deste ano, chegou a ser 90 vezes aquele
registrado pela microempresa individual, agora caiu para quatro.
Isso não se refletiu na produção de
conteúdo nem no discurso da política. De maio para cá, produziram-se 18 mil
artigos sobre voto impresso nas redes sociais, a grande parte por sites
bolsonaristas. Já as MEIs originaram 676 artigos. Os políticos também pouco lhe
deram bola. Foram 248 posts de deputados federais sobre o tema nos últimos 12
meses. No mesmo período, produziram-se 130 mil sobre o presidente Jair
Bolsonaro.
Quem se interessa por inflação e desemprego
é economista e jornalista. Quem está na ponta da linha já vive ambos e busca
mesmo é como se livrar de um e do outro. Se a política e as bolhas das redes
sociais não lhe dão bola, os bancos já se ocupam deles, especialmente os
digitais. Nos últimos 12 meses, este segmento de clientes teve um crescimento
de 62% no Original e 98% no Inter.
O estouro das MEIs, ao contrário da fé
bolsonarista, não traduz um povo que troca o assistencialismo pelo
empreendedorismo. É antes reflexo da trava imposta pelo governo aos benefícios
sociais. A restrição do acesso e a redução de valores mitigam a busca por
benefícios como o Bolsa Família e o seguro-desemprego. Se não dá para
conseguir, de que adianta procurar? É o que mostra Marta Arretche em artigo,
ainda inédito, com um grupo de outros três pesquisadores do Centro de Estudos
da Metrópole (Pedro de Souza, Heloísa Fumiani e Rogério Barbosa).
O texto compara o desempenho de dois
programas inscritos na Constituição que (ainda) têm como piso o salário mínimo,
a aposentadoria do INSS e o Benefício de Prestação Continuada (garantidos aos
não contribuintes acima de 65 anos), com aqueles que, sujeitos às flutuações
das políticas públicas adotadas por cada governo, têm seu valor real em
declínio e seu acesso cada vez mais restrito: o Bolsa Família e o
seguro-desemprego.
Com 40 milhões de beneficiários entre 2012
e 2015, o Brasil tem o maior seguro para desempregados da América Latina, em
números absolutos e proporcionais à população economicamente ativa, mostra o
artigo. O mau desenho do programa, porém, fez com que o Executivo, ao longo dos
últimos anos, tenha buscado combater o conluio entre empregados e empregadores
que se valem da rotatividade para impulsionar saques das contas do
seguro-desemprego.
Sob a alegação de aperfeiçoar a
elegibilidade, porém, seus critérios têm sido cada vez mais inalcançáveis. Para
ter acesso a cinco meses de benefício, o trabalhador tem que permanecer pelo
menos dois anos com carteira assinada.
Com o Bolsa Família, o afunilamento é
parecido. Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica,
conta por que a “menor procura” pelo Bolsa Família é, na verdade, um resultado
induzido. As cidades recebem as transferências baseadas num índice de gestão
descentralizada, fórmula que inclui monitoramento, atualização cadastral e
cumprimento de condicionalidades. É com este recurso que os municípios
estruturam sua rede de assistência social, com pessoal e equipamento para
gerenciar o cadastro único.
Em São Paulo isso dá mais de R$ 100 milhões
por ano. É com esse dinheiro que as prefeituras contratam empresas para ir à
casa das pessoas e cadastrá-las. Não se espera que vão aos Centros de
Referência de Assistência Social, mais conhecidos pela sigla CRAS, para que se
cadastrem, uma vez que isso requer gasto com transporte nem sempre possível
para esta faixa de renda. Como o governo federal, desde o início da pandemia,
dificultou o acesso ao recurso que estrutura a gestão do programa, o que
aparece na tela é que há uma menor procura. Na verdade o que se reduziu foi a
oferta.
Com a entrada em vigor do auxílio
emergencial, ficou impossível acompanhar com acuracidade os dados sobre a
assistência social. Muitas pessoas substituíram o Bolsa Família pelo auxílio,
mas não a totalidade dos beneficiários. Os cadastros, porém, se misturaram sem
clareza. De agosto para setembro de 2020, por exemplo, o dispêndio com o Bolsa
Família caiu de R$ 2,7 bilhões para R$ 357 milhões, recuperando o patamar em
janeiro de 2021 e caindo pela metade quatro meses depois. O que é claro e
cristalino é a redução no valor real do benefício médio do Bolsa Família.
Aquele vigente hoje (R$ 188,65) equivale a 75% do valor registrado em julho de
2014.
O auxílio emergencial tem valor médio de R$
230. Não há duplicidade nos recebimentos. O beneficiário do Bolsa Família tem
direito, no limite, ao excedente até o teto do Auxílio, que é de R$ 375. O
programa vai até outubro. Os meses de novembro e dezembro estão em aberto.
Técnicos que acompanham o Orçamento apostam que é o aperto no Bolsa Família dos
últimos meses que vai viabilizar esse bimestre.
A tentativa do governo de criar, para 2022,
um único benefício no lugar dos dois, o Auxílio Brasil, esbarra na indisposição
do Congresso em abrir mão da caixa-preta das emendas do relator do Orçamento,
estimadas em R$ 17 bilhões, ou do Executivo em emitir dívida para honrar os
precatórios judiciais, cujo calote foi apresentado, até aqui, como a solução
mais criativa para viabilizar o benefício.
O impasse ameaça ampliar a insegurança
alimentar no país. Levantamento da FAO, sigla em inglês para a Organização para
Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, indica que, entre 2018 e 2020, o
dobro de brasileiros (7,5 milhões) passou fome em relação ao biênio anterior.
Dados mais recentes, do Instituto Locomotiva, indicam que 69% dos brasileiros
não tiveram dinheiro para comer pelo menos um dia nas últimas duas semanas. É o
patamar do qual se aproxima paulatinamente a rejeição do presidente Jair
Bolsonaro.
Nem todos os excluídos dos cadastros dos
programas sociais se transformam em potenciais microempreendedores. O
crescimento das MEIs é mais uma decorrência da perda do vínculo formal de
emprego do que do “upgrade” dos excluídos. O retrato que Renato Meirelles,
diretor do instituto Locomotiva, traça desses brasileiros é muito diferente
daquele que originou os protestos de 2013, quando o operador de telemarketing
simbolizava o limite da precarização do trabalho.
Trata-se de um cidadão cansado da
radicalização, do Fla-Flu. Tampouco está retratado na rede social como se
pensa. “Ninguém posta o pote de arroz seco, só o prato de sushi”, diz. Está
ancorado nas igrejas evangélicas porque é o que há para o momento de desamparo.
No limite, pode ser fisgado pela divulgação dos benefícios privados obtidos
pelos filhos do presidente às custas de prejuízos públicos. Um enredo fácil de
entender para quem paga a conta com o desespero do cotidiano.
Não será fácil para a política resgatá-lo.
Uma grande parte desses brasileiros, diz Meirelles, entrou no mercado de
trabalho depois de 2015. Nunca conheceu, portanto, anos continuados de
crescimento. Como têm mais escolaridade que seus pais, reserva da memória de
tempos melhores, custam a partilhar das mesmas crenças e esperanças.
O mote bolsonarista do golpismo tampouco o
mobiliza. É um brasileiro para quem o aumento no preço do arroz, da gasolina e
da luz é muito mais palpável do que os contornos do Estado de Direito. A
captura deste fenômeno pela política ainda está longe. Dilson Teixeira, por
exemplo, já no fim da corrida, ainda insistia no argumento: “As pessoas estão
enganadas. A gasolina está subindo por causa dos impostos de [João] Doria”.
Inútil explicar que os impostos não haviam se alterado. E que a alta, de quase
30% este ano, reflete, em grande parte, um câmbio pressionado pela descrença
dos investidores no presidente da República. Naquele carro e nos transeuntes
que passavam pelo cruzamento das avenidas Paulista e Consolação, onde começava
a manifestação de Sete de Setembro, é a fé bolsonarista que (ainda) salva.
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