sexta-feira, 10 de setembro de 2021

José de Souza Martins* - A tirania do medo

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana  

A facilidade irresponsável com que o governante daqui atrai e aglutina gente medrosa é notória tanto em suas bravatas quanto nas bravatas dos que são por ele atraídos

O Brasil é o país que mais lincha no mundo, um linchamento ou tentativa de linchamento por dia. Há cerca de 30 anos, quando comecei uma extensa pesquisa sociológica sobre esse grave problema social, a geografia desse crime de multidão mostrava que eram estados de maior incidência de linchamentos a Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, nessa ordem.

Hoje o centro está deslocado para o Norte, o Amazonas, sobretudo Manaus. A multidão, com facilidade, elege inimigos e os trucida, supondo com isso assegurar sua liberdade e seu modo de ser. Seu medo é juiz e carrasco.

Os linchamentos ocorrem em áreas de ocupação relativamente recente, seja pelo advento de novas populações migrantes, seja pela chegada de novos vizinhos em bairros urbanos. O crime de multidão, no Brasil, é praticado por gente que tem medo. Medo do que é novo, do que é diferente e de quem é diferente. É crime da ordem sem progresso, a da sociedade do medo.

O medo tem muitas causas. Como a exclusão social, crônica no Brasil. Somos uma sociedade alicerçada sobre escravidões, a do índio, a do negro e a dos brancos e mestiços condenados a viver aquém do mínimo próprio da sociedade capitalista. O que se compreende neste nosso capitalismo subdesenvolvido, inconcluso, baseado no ganho fácil e não raro meramente rentista. E, não tão raro, no saque das riquezas nacionais, no patrimônio da pátria e na lesão ao princípio civilizado do bem comum. Nossa pobreza já é a da miséria de condição humana.

O presidente da República, desde o primeiro dia de seu mandato, vem mobilizando, com êxito, essas multidões residuais que têm medo. Os que conseguiram ter mais riqueza do que a que pode ser moralmente justificada, os que ganharam facilmente nas brechas do capitalismo frágil e ultrapassado em que o lucro vem mais da esperteza do que da competência empresarial.

Vem mais das brechas do próprio poder ainda capturado mais pelo oligarquismo da política brasileira do que da consciência democrática dos direitos individuais comprometidos com o bem comum e a concepção de pátria. Gente cuja pátria está reduzida à cueca verde e amarela. Gente que tem pavor da ética possível e necessária que acabará motivando a insurgência cívica dos verdadeiros cidadãos.

O presidente da República tem medo, medo da verdade própria da política e da democracia. Comete um erro que dele fará grande vítima do equívoco que comete todos os dias. O erro é o de convocar as multidões para dar-lhe o raivoso apoio de que julga carecer para sustentar-se no poder e na concepção autoritária e antidemocrática de poder que o inspira.

É que a multidão não tem caráter. Diferente do cidadão e da pessoa, que são entidades íntegras das sociedades modernas, a multidão é apenas sujeito da desordem, da baderna destrutiva.

Os mais de 2 mil linchamentos que estudei, analisados em meu livro “Linchamentos - a justiça popular no Brasil”, confirmaram a tese de Gustave Le Bon, que, no século XIX, estudou pela primeira vez de modo sistemático o comportamento de multidão.

A multidão é o sujeito social da loucura coletiva. Essa loucura é gradativa. A multidão se transforma ao longo de seus atos. Vai do senso comum ignorante, motivado por um fato real ou suposto, até a loucura coletiva, cúmplice do louco que a simboliza. O nazismo e o fascismo foram isso.

Não é estranho que consignas nazistas apareçam aqui em ideias como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Deus nunca está acima de todos. Ele pode estar na alma de todos que a têm no lugar da sublime concepção do divino e do sagrado.

A convocação das multidões anômalas no Dia da Pátria e em eventos anteriores para peitar nas ruas a Constituição e aqueles que, em nome dela, foram designados pela história para cumpri-la e fazê-la cumprir, coloca no centro do acontecer político essa personagem enlouquecida da sociedade moderna.

Esse louco coletivo tem gerado líderes loucos, como Hitler, Mussolini, Trump no período recente e todos que o copiam e imitam. A multidão é uma entidade social de dois gumes. Danton e Robespierre, que mobilizaram multidões, acabaram perdendo a cabeça na guilhotina.

A facilidade irresponsável com que o governante daqui atrai e aglutina gente medrosa é notória tanto em suas bravatas quanto nas bravatas dos que são por ele atraídos.

A era de Bolsonaro será conhecida como a era do medo. Não só por conta da pandemia, coadjuvante satânica, filha da falta de responsabilidade social que há muito tomou conta do Estado brasileiro. Mas também da crônica enfermidade social da insegurança que cada vez mais tomou conta do país e já corroeu os fundamentos identitários do caráter nacional brasileiro. Estamos à beira do abismo da história.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Linchamentos - a justiça popular no Brasil”(Contexto).

 

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