Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A facilidade irresponsável com que o
governante daqui atrai e aglutina gente medrosa é notória tanto em suas
bravatas quanto nas bravatas dos que são por ele atraídos
O Brasil é o país que mais lincha no mundo,
um linchamento ou tentativa de linchamento por dia. Há cerca de 30 anos, quando
comecei uma extensa pesquisa sociológica sobre esse grave problema social, a
geografia desse crime de multidão mostrava que eram estados de maior incidência
de linchamentos a Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, nessa ordem.
Hoje o centro está deslocado para o Norte,
o Amazonas, sobretudo Manaus. A multidão, com facilidade, elege inimigos e os
trucida, supondo com isso assegurar sua liberdade e seu modo de ser. Seu medo é
juiz e carrasco.
Os linchamentos ocorrem em áreas de ocupação relativamente recente, seja pelo advento de novas populações migrantes, seja pela chegada de novos vizinhos em bairros urbanos. O crime de multidão, no Brasil, é praticado por gente que tem medo. Medo do que é novo, do que é diferente e de quem é diferente. É crime da ordem sem progresso, a da sociedade do medo.
O medo tem muitas causas. Como a exclusão
social, crônica no Brasil. Somos uma sociedade alicerçada sobre escravidões, a
do índio, a do negro e a dos brancos e mestiços condenados a viver aquém do
mínimo próprio da sociedade capitalista. O que se compreende neste nosso
capitalismo subdesenvolvido, inconcluso, baseado no ganho fácil e não raro
meramente rentista. E, não tão raro, no saque das riquezas nacionais, no
patrimônio da pátria e na lesão ao princípio civilizado do bem comum. Nossa
pobreza já é a da miséria de condição humana.
O presidente da República, desde o primeiro
dia de seu mandato, vem mobilizando, com êxito, essas multidões residuais que
têm medo. Os que conseguiram ter mais riqueza do que a que pode ser moralmente
justificada, os que ganharam facilmente nas brechas do capitalismo frágil e ultrapassado
em que o lucro vem mais da esperteza do que da competência empresarial.
Vem mais das brechas do próprio poder ainda
capturado mais pelo oligarquismo da política brasileira do que da consciência
democrática dos direitos individuais comprometidos com o bem comum e a
concepção de pátria. Gente cuja pátria está reduzida à cueca verde e amarela.
Gente que tem pavor da ética possível e necessária que acabará motivando a
insurgência cívica dos verdadeiros cidadãos.
O presidente da República tem medo, medo da
verdade própria da política e da democracia. Comete um erro que dele fará
grande vítima do equívoco que comete todos os dias. O erro é o de convocar as
multidões para dar-lhe o raivoso apoio de que julga carecer para sustentar-se
no poder e na concepção autoritária e antidemocrática de poder que o inspira.
É que a multidão não tem caráter. Diferente
do cidadão e da pessoa, que são entidades íntegras das sociedades modernas, a
multidão é apenas sujeito da desordem, da baderna destrutiva.
Os mais de 2 mil linchamentos que estudei,
analisados em meu livro “Linchamentos - a justiça popular no Brasil”,
confirmaram a tese de Gustave Le Bon, que, no século XIX, estudou pela primeira
vez de modo sistemático o comportamento de multidão.
A multidão é o sujeito social da loucura
coletiva. Essa loucura é gradativa. A multidão se transforma ao longo de seus
atos. Vai do senso comum ignorante, motivado por um fato real ou suposto, até a
loucura coletiva, cúmplice do louco que a simboliza. O nazismo e o fascismo
foram isso.
Não é estranho que consignas nazistas
apareçam aqui em ideias como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Deus
nunca está acima de todos. Ele pode estar na alma de todos que a têm no lugar
da sublime concepção do divino e do sagrado.
A convocação das multidões anômalas no Dia
da Pátria e em eventos anteriores para peitar nas ruas a Constituição e aqueles
que, em nome dela, foram designados pela história para cumpri-la e fazê-la
cumprir, coloca no centro do acontecer político essa personagem enlouquecida da
sociedade moderna.
Esse louco coletivo tem gerado líderes
loucos, como Hitler, Mussolini, Trump no período recente e todos que o copiam e
imitam. A multidão é uma entidade social de dois gumes. Danton e Robespierre,
que mobilizaram multidões, acabaram perdendo a cabeça na guilhotina.
A facilidade irresponsável com que o
governante daqui atrai e aglutina gente medrosa é notória tanto em suas
bravatas quanto nas bravatas dos que são por ele atraídos.
A era de Bolsonaro será conhecida como a
era do medo. Não só por conta da pandemia, coadjuvante satânica, filha da falta
de responsabilidade social que há muito tomou conta do Estado brasileiro. Mas
também da crônica enfermidade social da insegurança que cada vez mais tomou
conta do país e já corroeu os fundamentos identitários do caráter nacional
brasileiro. Estamos à beira do abismo da história.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “Linchamentos - a justiça popular no
Brasil”(Contexto).
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