Um dos temas
mais importantes é a ideia de planejamento, o que exige a definição de
objetivos, a fixação de metas, a formulação de indicadores, o estabelecimento
de estratégias de longo prazo e a coordenação das ações necessárias. A ideia de
planejamento é fundamental, dados os efeitos sociais dramáticos decorrentes da
política de austeridade fiscal sem critérios sociais adotada por este e pelo
governo que o antecedeu. Trata-se de uma política que, por estar focada somente
na solvência do poder público, promoveu cortes orçamentários sem escalas de
prioridade e sem consideração de suas repercussões sociais.
Ao ampliar o alcance da política de privatizações, convertendo em negócio privado o que até então eram determinados serviços públicos, essa política hiper-responsabilizou cada cidadão pelo seu destino, independentemente de sua condição social. A premissa era de que cada cidadão dependeria de suas capacidades, de seu empenho e de seus méritos, o que, no fundo, acaba culpando os mais desvalidos por sua situação. E como isso ocorreu num contexto de reformas trabalhistas, de enxugamento de direitos sociais e de baixas taxas de crescimento econômico, o resultado foi darwinista. Ou seja, preservou o poder dos que já tinham autonomia econômica, financeira e patrimonial e excluiu os que já estavam marginalizados.
Para reverter
esse cenário de agravamento das desigualdades, uma vez que essa
híper-responsabilização reduz dramaticamente a capacidade dos cidadãos de
controlarem os fatores que determinam sua situação pessoal e social, o
planejamento é fundamental. Contudo, para que uma política de planejamento seja
posta em pratica, é preciso que os candidatos apresentem seu projeto de poder
para o País e que tenham consciência de que parte de seus esforços, em matéria
de planificação, somente oferecerá resultados no governo do sucessor daquele
que for eleito em 2022.
Outro tema não
menos importante diz respeito ao modo como os candidatos encaram as funções do
poder público, a regulação das atividades socioeconômicas e a atuação dos
agentes econômicos privados. Esse tema implica a distinção entre função
pública, por um lado, e negócio, por outro. Como dizia Rolf Kuntz, que considero
até hoje meu professor de filosofia política, embora seja possível analisar uma
função pública em termos de eficiência e de rentabilidade financeira, esses
critérios não podem ser determinantes para sua manutenção. No plano político, a
ideia de função pública envolve a noção de responsabilidade. E, se as
atividades na prestação de um serviço público podem ser transferíveis, a
responsabilidade não pode. Por isso, concluía ele, a questão politicamente
importante é determinar o que é ou não é a responsabilidade estatal.
Nas duas ou três
últimas gestões presidenciais, falou-se muito a respeito disso. No entanto, os
dirigentes governamentais se comportaram de modo bastante contraditório. Os
mais recentes pareceram desconhecer até mesmo que, em determinadas áreas da
máquina administrativa, somente o poder público tem autoridade efetiva para
decidir e regular. Igualmente, pareceram ignorar que um dos aspectos básicos da
implementação e execução de políticas públicas diz respeito, justamente, aos
meios e instrumentos públicos.
Por causa desse
desconhecimento e da incapacidade de compreender a diferença entre público e
privado, esses dirigentes se imiscuíram de modo abrupto no livre jogo de
mercado, tentando controlar preços e interferindo desastrosamente na
administração das políticas de tarifas e preços. Com isso, passaram por cima de
atos jurídicos perfeitos, desprezando assim o fato de que garantias contratuais
são inerentes ao Estado democrático de Direito. Ao agir desse modo,
enfraqueceram a segurança jurídica, que é fundamental para que o País possa
atrair os investimentos de que necessita para retomar o crescimento.
Esses
governantes também se revelaram incapazes de diferenciar funções que são
intrínsecas do poder público – e, portanto, não intransferíveis, das funções
governamentais que podem ser executadas por meio de convênios com a iniciativa
privada. Neste caso, especificamente, o problema foi que não souberam conjugar
a lógica do lucro privado (já que os empresários concessionários de
determinados serviços públicos encaram a concessão como negócio), com os
objetivos de prestação de serviços públicos, que são de interesse de toda a
sociedade. Não compreenderam que o público é mais do que a interação das ações
privadas, o que leva à distinção entre Estado e mercado. Esqueceram-se de que o
próprio livre jogo de mercado necessita de uma ordem legal que ultrapasse a
perspectiva particular.
Associado aos
demais, um terceiro tema envolve a questão do tempo, que é de longo prazo em
matéria de planejamento, e de curtíssimo prazo, com relação ao funcionamento
dos mercados financeiros. À medida que as novas tecnologias de comunicação
propiciaram as decisões em tempo real, tomadas on-line,
e os investimentos no setor industrial passaram a depender cada vez mais de
emissão de ações, de bancos de investimento e de fundos de pensão, os mercados financeiros
ganharam enorme poder de pressão sobre os governos e os bancos centrais dos
Estados.
A história
recente revela que os capitais financeiros se tornaram hegemônicos no campo da
economia, a ponto de influenciar e – até de capturar – o braço monetário dos
Estados. Baseando-se nas premissas do máximo de lucro no menor período de tempo
possível, e com o máximo de segurança e o menor risco igualmente possível, os
mercados financeiros levaram os Estados a perder progressivamente o horizonte
de longo prazo. Dito de outro modo, com o avanço da globalização econômica, que
restringe a autonomia nacional para definir seus próprios impostos e seus
mecanismos regulatórios, dada a liberdade que os capitais têm para cruzar
fronteiras, os mercados impuseram essas premissas como critérios aferidores de
rentabilidade e atratividade dos investimentos.
Por operar
basicamente no horizonte de curto prazo, perseguindo ganhos correntes
crescentes e se protegendo somente de riscos imediatos, os mercados financeiros
levaram as decisões alocativas dos Estados a ficarem distantes da sociedade,
não sendo mais resultantes – ainda que indiretamente – de escolhas coletivas
por meios democráticos. Desse modo, à medida que as escolhas coletivas foram
sendo substituídas por escolhas seletivas dos mercados financeiros, a
capacidade de planejamento dos Estados foi ficando progressivamente
comprometida.
Este é um dos
dilemas que os presidenciáveis têm de enfrentar e que tem de ser discutido nos
debates eleitorais. Como disse acima, para um país tão desigual e excludente
como o Brasil, o planejamento é fundamental para a reorganização da economia,
propiciando a remoção dos gargalos estruturais que impedem uma distribuição de
renda mais equitativa e acesso a serviços públicos, principalmente nas áreas de
educação e saúde – condições necessárias, ainda que não suficientes, para
propiciar inclusão socioeconômica.
Um último tema,
entre outros não menos importante, diz respeito à formulação de uma política
externa em um mundo de incertezas globais – algo que foi desprezado por um
governo que chegou até a afirmar, por meio de seu chanceler, que não haveria
problema algum caso o país se tornasse um “pária” nas relações internacionais.
Política externa envolve uma discussão sobre a afirmação ou renúncia às
interconexões globais após a pandemia, especialmente por causa da
interdependência do comércio e da produção de fármacos, nos quais os países
avançados se especializavam em produtos sofisticados de alta tecnologia,
vendendo-os para mercados mais remuneradores, como os países desenvolvidos e em
desenvolvimento, enquanto países tecnologicamente menos avançados e com
baixo custo de produção forneciam peças, equipamentos e remédios mais simples.
A excessiva
dependência de bens intermediários e a concentração de sua produção na China
foram uma armadilha para as cadeias globais de valor, que são redes complexas
que propiciam vantagens de custos baixos, alta escala e flexibilidade espacial.
Esses processos de produção fragmentados e espacialmente espalhados em vários
continentes, com diferentes estágios localizados em distintos países mostraram
sua vulnerabilidade quando a Covid atingiu a China e o governo destinou sua
produção para atender à demanda interna, restringindo suas exportações,
apoiando fornecedores internos e deixando de cumprir suas obrigações
contratuais com os demais países. Em resposta, as chancelarias dos países que
ficaram sem receber o que haviam contratado passaram a ver na produção local de
vacinas uma forma de defesa de seus respectivos interesses
nacionais.
Ao lado de
questões fundamentais, como desenvolvimento sustentável financiado pela emissão
dos chamados “títulos verdes e sociais”, ação climática, segurança alimentar,
comércio internacional e tecnologias fundamentais, a política externa agora
também envolverá a discussão sobre o multilateralismo num mundo pós-Covid, num
contexto de crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Envolve,
igualmente, discussões sobre como neutralizar riscos geopolíticos daí advindos,
que podem abrir caminho para tensões internacionais.
Esses são alguns
temas fundamentais que presidenciáveis têm de debater, para que o País possa
revigorar sua democracia e os cidadãos tenham plena condição de escolher em
quem votar. Contudo, pelo perfil do candidato que disputará a reeleição, com
seu círculo de assessores primatas, civis e militares, esse debate poderá não
ocorrer. E, caso essa previsão não se confirme, esse debate, infelizmente,
correrá o risco de acabar em picadeiro de circo por quem, no exercício do
poder, vem confundindo a presidência da República com o banco da Praça da
Alegria.
*(Publicado
simultaneamente em Estado da Arte, em
24 de outubro de 2021;
https://estadodaarte.estadao.com.br/jose-eduardo-faria-debates-democracia/)
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