Falou e Disse
Segundo informações do
AzMina, durante a pandemia, no Brasil, uma mulher é morta a cada 9 horas.
Para mim, a violência doméstica sempre foi
uma questão observada, nunca vivenciada. Isso é o que sempre imaginei, mas
agora eu tenho dúvida, após assistir à série americana Maid.
A série conta a história de Alex, uma
mulher, filha, mãe e envolve uma criança que antes de completar três anos de
idade é obrigada a sair de casa no colo da mãe, no meio da noite, após uma
seção de violência psicológica praticada pelo seu pai, em busca de apoio nos
abrigos para vítimas de violência doméstica do estado. A mãe, que também é
filha, se vê desamparada do apoio da própria família, pois passou pela mesma
situação quando criança. Cresceu em um ambiente marcado pela violência, pelas
drogas, bebidas e abusos, isso tudo em meio a relação complicada com uma mãe,
uma artista local, taxada por alguns como louca e bipolar.
Senti vontade de refletir um pouco a partir
da produção cinematográfica tão bem conduzida, tratando de uma questão
corriqueira no mundo e no nosso país. Na série, a protagonista não chega a ser
agredida fisicamente. Já aqui, no Brasil, cansamos de casos extremos de
feminicídio.
O Brasil é o quinto país do mundo com a maior taxa de feminicídio. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a média é de 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres. Apenas no primeiro semestre de 2020 foram registrados 648 feminicídios no país, 1,9% a mais do que no mesmo período em 2019.
Neste tempo de pandemia milhões de mulheres
vítimas de violência doméstica ao redor do mundo estão vivendo as 24h do dia
presas com o seu abusador dentro de casa. Segundo informações do AzMina,
durante a pandemia, no Brasil, uma mulher é morta a cada 9 horas.
A violência doméstica no Brasil até parece
uma pandemia dentro da pandemia do coronavírus, como afirmam alguns estudiosos
que lidam diariamente com dados referentes a tão grande enfermidade social.
A lei Maria da Penha (Lei
nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) define cinco tipos de violência
doméstica e familiar: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
Mas algumas questões chamam a atenção na
série Maid.
Em primeiro lugar, as mulheres não
conseguem enxergar os tipos de violência que estão incluídos na violência
doméstica de forma sub-reptícia.
Ao chegar ao sistema público em busca de
auxilio, Alex não se sentia vítima de violência, por não ter sido agredida
fisicamente, pois não apresentava as marcas no seu corpo.
É que a violência psicológica nem é
reconhecida por alguns tribunais porque está carregada de subjetividades e
sentimentos envolvidos nas relações afetivas entre homens e mulheres ou pessoas
que formam um casal afetivo.
No entanto, para ter apoio é necessário ter
o sinal físico da violência atestado por instituições como delegacias, IML,
cujas funções na sua maioria são exercidas por homens comungantes da premissa
cultural machista que mulher é um ente de propriedade dos homens, cabendo aos
donos o direito do maltrato.
Em segundo lugar, as mulheres, apesar de
encontrarem apoio nos poucos abrigos existentes mantidos pelo poder público,
precisam encontrar trabalho e, para trabalhar, deveriam deixar a criança na
creche. Mas não existem creches públicas. Mulheres abusadas ou violentadas
carregam seus filhos mundo afora pela vida toda, sozinhas e geralmente com o
apoio de outras mulheres.
Há um grande déficit de creches no país. Em
2017 a população de crianças de 0 a 3 anos era de 11.817.801 (INEP). Os dados
do censo escolar de 2019 apontaram um crescimento de 4,4% nas matrículas em
creches da rede pública, ou seja, foram matriculadas 2.456.583, cerca de 100
mil a mais que no ano anterior.
Em 2019, 3.755.092 crianças de 0 a 3 anos
foram matriculadas em 71,4 creches públicas e privadas no Brasil. Do total,
45,3% são em unidades públicas e 34,6% em creches particulares.
A população de 0 a 3 anos no Brasil era de
11.817.801 em 2017 (INEP). O Plano Nacional de Educação (PNE) tem como
meta colocar pelo menos 50% das crianças de até 3 anos em creches. O primeiro
prazo venceu, sendo adiado para 2024.
A creche pública é uma necessidade no país,
para que as mães, sobretudo as mulheres chefes de família, tenham condições de
acesso ao trabalho com dignidade e para o próprio crescimento econômico do
país.
“É preciso ter creche pública de qualidade
para todos. Assim, as crianças se desenvolvem melhor e as mães continuam suas
trajetórias profissionais. Todo mundo sai ganhando: com mais mulheres
trabalhando, a economia cresce”, calcula Bia Nóbrega, psicóloga pela
Universidade de São Paulo (USP)
A terceira questão colocada pela séria Maid
trata das formas de trabalho das mulheres que sofrem violência doméstica, mas
precisam prover as necessidades básicas dos filhos. Geralmente lhes são
oferecidas atividades que não exigem nenhuma qualificação, como fazer faxinas
em ambientes insalubres, ou semelhante, com jornadas extensas, a baixo custo,
subtraindo da mulher qualquer possibilidade de qualificação profissional.
Numa situação de pobreza
absoluta se torna mais difícil quebrar o ciclo da violência.
Por último, a história real relatada em
forma de série chama a atenção para o fato que a violência doméstica atravessa
gerações de uma mesma família sem que as mulheres se deem conta do que está
acontecendo com suas vidas e na vida dos seus filhos, e se crie a consciência
de que é preciso criar condições objetivas para quebrar o ciclo de abuso e
violência.
Sabemos que crianças e adolescentes quando
vítimas de situações de violência doméstica sofrem efeitos negativos a curto e
longo prazo no que se refere à saúde mental, física e para o seu
desenvolvimento social.
“As consequências da violência nas vítimas
de agressão são severas e múltiplas, colocando em exposições as crianças e
adolescentes que estão no contexto intrafamiliar, prejudicando o bem-estar e a
qualidade de vida dos envolvidos, afetando emocionalmente, socialmente,
sexualmente, cognitivamente, comportamentalmente as vítimas e as sequelas
destas agressões podem permanecer ao longo da vida adulta”. (Curto & Paula,
2009; Garbin et al.. 2012; Hohendorff et al.. 2012; Sá et al.. 2012 in
Reflexos da violência doméstica em crianças e adolescentes)
Convivi com muitas mulheres que pareciam
entender que uma situação de violência geralmente gerava um benefício na
“relação afetiva”, acompanhada de pedido de perdão e compensada algumas vezes
com outros tipos de atenção, o que facilitava também a ocultação das marcas das
violências psicológicas em seus vários tipos.
É necessário denunciar as
malvadezas que acontecem no interior do que muitas vezes é chamado lar.
A série nos ajuda a pensar que é preciso
desfazer esse mito de família concebida como uma instituição intocável, para
que os atos de violência familiar permaneçam nas sombras, geralmente amparados
pela visão religiosa e pela ganância. É necessário denunciar as malvadezas que
acontecem no interior do que muitas vezes é chamado lar.
Para muitos, o diagnóstico de violência
doméstica ainda é difícil, porque é preciso acreditar nas vítimas (mulheres e
crianças) e entender os outros condicionantes que vão além da palavra que
destrói a alma e da arma que produz o feminicídio.
O mais esquisito de tudo isso é que os
homens, na sua maioria, não se sentem responsáveis pelos filhos.
O mais importante é que redes de proteção
formadas por mulheres vêm surgindo com regularidade, oferecendo as ações de
proteção necessárias, independente do poder público. Talvez esteja aí nascendo
uma grande força.
Maid, uma série para se refletir sobre o
que acontece no nosso cotidiano.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário