Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Autor rechaça acusações de que seu livro
legitimaria a escravidão
Um autor deve ser julgado por suas próprias
palavras e não por palavras alheias – especialmente, em tempos de agressiva
irresponsabilidade acadêmico-militante, como o que estamos atravessando.
Lembro isso porque deu pano pra manga um texto
publicado aqui na Folha, a propósito do meu livro “As Sinhás
Pretas da Bahia: Suas Escravas, Suas Joias”.
Como ficou claro que os contendores não
leram o livro e suas disputas tomaram caminhos variados, acabei me vendo no
meio de uma confusão, na qual fica parecendo que eu disse coisas que não disse
— e que jamais diria.
Os principais absurdos foram os seguintes.
Escrevendo sobre negras escravistas que se cobriram de sedas e joias, eu
pretenderia duas coisas: arrefecer um
ânimo antirracista e, pior, legitimar a
escravidão. Nem uma coisa, nem outra. Elas realmente se cobriam de
joias e ostentavam sua própria escravaria. Não inventei essa história. E isso
nada tem a ver com a luta contra o racismo.
A luta contra a opressão social, que é maior
do que a luta contra o racismo, não deve privilegiar a cor da pele de ninguém –
ou não teríamos como condenar a atual exploração do negro pelo negro em África
ou o “Black Lives
Matter”, com seu racismo antijudaico e seus acenos nazistas.
Quanto a legitimar a escravidão, por favor, a imbecilidade não tem o direito de ir tão longe. Mas quero esclarecer alguns pontos.
A primeira observação que faço no livro é:
não há originalidade neste trabalho. O que fiz foi coletar as informações
existentes sobre o assunto, levando em consideração o que merecia ser
considerado, do estudo hoje clássico de Heloïsa Alberto Torres às recentes
investigações de Lisa Earl Castillo, acendendo luzes novas
sobre o candomblé.
Meu tema: a existência de pretas, mulatas e
mestiças em geral, que, nos séculos 18 e 19, conseguiram ficar livres e ricas,
deixando de ser escravas para se tornarem senhoras escravistas.
Mulheres que ingressaram na elite econômica
negra do Brasil (se querem exemplos, tudo está documentado no livro; aqui, num
artigo, só posso me referir a poucos casos) – algumas das quais se encontram na
origem mesma do candomblé.
Mulheres que viveram numa África
milenarmente escravocrata e que não deixaram de ser escravistas pelo fato de
terem sido escravizadas. Fazia parte do jogo.
É claro que não foram apenas pretas que
enricaram. Pretos, também. E casais. Um exemplo de cada.
Anna de São José da Trindade, que, além de
escravos e imóveis, tinha uma coleção espetacular de joias de ouro e objetos de
prata. Joaquim d’Almeida, ex-escravo do também ex-escravo Antonio Galinheiro,
que se dedicou ao tráfico negreiro, chegando a ser dono de 36 escravos em
Havana e 20 em Pernambuco, além dos que mantinha sob seu controle direto na
Bahia. O casal nagô Antonio Xavier e Felicidade Friandes, donos de escravos,
lojas, tavernas e dezessete imóveis, com o filho estudando filosofia e as
filhas tocando um piano “playel” na sala de música da casa.
Todos integrantes de uma mesma rede social.
Da elite socioeconômica negra. Mas meu foco incidiu sobre as mulheres, as
sinhás pretas da Bahia. Até porque as pesquisas mostram que mulheres negras
libertas e livres formavam então o contingente mais rico da população
brasileira, depois dos homens brancos (mulheres brancas sem marido ficavam
abaixo delas).
Abordo então a diferença de posturas de
sinhás pretas e brancas diante do trabalho e do espaço urbano. O monopólio
feminino do pequeno comércio — convergência de uma tradição lusitana, relativa
a brancas pobres, e outra africana, como ainda hoje se vê na Nigéria. Sem
ocultar o fato de que senhores e senhoras de cor negra jogavam pesado com sua
escravaria igualmente preta.
Basta lembrar que escravos fugiam então não
só de seus senhores brancos, como de seus senhores pretos. Como no caso dos
escravos que fugiram do jugo do ex-escravo nagô Antonio Xavier (o que não quer
dizer que inexistissem laços afetivos, como vemos em testamentos tanto de
senhores brancos quanto de senhoras pretas, quando alegam motivos para
alforriar seus escravos; há mesmo documentos que surpreendem, como o de uma
ex-escrava que deixa bens para sua ex-senhora, em reconhecimento pela “boa
criação” recebida).
Iyá Nassô cobrou um preço bem mais alto do
que a média do mercado para alforriar sua escrava e filha de santo Marcelina
Obatossí, que viria a ser a primeira ialorixá da Casa Branca, também
enriquecida, com suas joias, casas e escravaria – e cobrando caríssimo por
cartas de alforria para suas escravas.
Este aspecto da história do candomblé deve
ser realçado. Além de Iyá Nassô e Marcelina Obatossí, também era proprietário
de escravos o casal formado pelo jeje Francisco Nazareth (afilhado do também
jeje Antonio Narciso Martins da Costa, mestre de navios negreiros) e a nagô
Maria Júlia Conceição, que abriram o agora famoso terreiro do Gantois.
E não vamos nos esquecer do caso de Otampê
Ojaró, da família real de Ketu, neta do rei Akebioru, capturada ainda criança e
vendida à Bahia por traficantes negros do Daomé, e que aqui se tornou senhora
escravista e criou o terreiro do Alaketu.
Ainda hoje nos terreiros, de resto, a
relação mãe e filha de santo, inflexivelmente hierárquica, ecoa o modelo
senhorial-escravista da relação da sinhá preta com suas iniciadas, nos séculos
18 e 19.
Era comum a figura da mulher
chefe-de-família, a matrifocalidade reinando na Bahia e nas Antilhas, por
exemplo. Mas não só. Duas coisas chamam também a atenção. A preferência das
sinhás pretas por escravas (nunca por escravos) e a formação de famílias
femininas, quando uma ex-escrava, em vez de se juntar a um homem, preferia
viver numa família composta só de mulheres.
Razões econômicas prevaleciam aqui, do
potencial reprodutivo das fêmeas à maior capacidade feminina de ascensão social
através do comércio ou da prostituição, mas motivos sexuais não devem ser descartados.
O homossexualismo correu solto não apenas
nos sobrados, entre sinhás brancas e mucamas pretas, como nos mostram
historiadores como Emanuel Araújo e Ronaldo Vainfas, e talvez nas unidades
residenciais exclusivamente femininas, mas também no candomblé, tema de vários
estudos antropológicos, como os de Vivaldo da Costa Lima e Lorand Matory.
Outro ponto é que a tese de
Florestan Fernandes, estabelecendo que os escravos foram entregues
ao deus-dará e à miséria depois da abolição, pode começar a ser desconstruída
desde aqui.
Primeiro, por se chocar com a notável e comprovada
ascensão social de pretos e mulatos em nosso século 19, de Pedro II aos
primeiros dias republicanos. Depois, pelo fato de que, no 13 de maio
de 1888, escravos praticamente inexistiam no país. Terceiro, porque
a ascensão social negromestiça se deu antes, durante e depois da abolição.
Quarto, no caso particular da Bahia, as
informações indicam que não houve maior alteração na situação dos escravos
pós-abolição. Os agora ex-escravos continuaram exercendo ofícios tradicionais,
além de avançar em outras direções. A conjuntura não foi diversa no Rio de
Janeiro. Mas ainda pretendo mapear novamente, a partir de Roger Bastide, a
situação paulista.
No caso baiano, o 13 de Maio ficou longe de
ser uma catástrofe. Nina Rodrigues, contemporâneo dos eventos, não fala de
nenhum empobrecimento dos pretos no pós-abolição – diz, antes, que os negros,
que se viram então livres do cativeiro, aderiram a meios tradicionais de ganho
entre os pretos. Afirmação que é confirmada pela sociologia baiana do século
20, como vemos em estudos de Maria de Azevedo Brandão e Muniz Sodré.
Maria sublinha a forte participação de
jejes e nagôs na formação de uma classe média negromestiça na Bahia. Muniz
assinala que, no mesmo período, continuamos a ter uma expansão da estrutura de
serviços urbanos e de pequenas manufaturas, beneficiando o processo ascensional
dos pretos.
É essa elite negra que tem dinheiro para
comprar terrenos, construir casas de culto, realizar os ritos, fazer oferendas.
No contexto sociológico, o dito (que Vivaldo da Costa Lima atribui a uma mãe de
santo) “sem folha, não há orixá”, merece a companhia de uma variante: “sem
grana, nada de deuses”.
O historiador Manolo Florentino, no texto
que escreveu para a apresentação do meu livro, observou: “...nossa estranha
química social se resolve de fato quando levamos em conta os históricos padrões
de ascensão social durante a etapa escravista, quando a alta frequência de
alforrias redundava na enorme participação de ‘pessoas de cor’ que,
enriquecidas como as sinhás pretas, levavam o negrume da base para o topo e, ali,
reproduziam o status quo escravista”.
Nada de dualismo rígido, nenhum
esquematismo. O que desejamos mostrar, com esses fatos e processos, é
justamente isso. A sociedade escravista baiana não se dividia rigorosamente
entre dois extremos polarizados: o dos senhores brancos e o dos escravos
pretos. Entre tais extremos, circulava uma população livre numerosa, formada,
em sua maioria, por uma gente mestiça.
As sinhás pretas eram exceções? Sim.
Brancos ricos também. Se a massa negra era miserável, a massa branca era pobre
também (sempre foi, de Thomé de Sousa aos dias de hoje). Mas ex-escravos
escravistas e seus descendentes não formavam um contingente insignificante da
população. Vejam o primeiro censo nacional, realizado em 1872. Salvador tinha então
cerca de 130 mil habitantes: 69% de pretos e mestiços — destes, apenas 12% eram
escravos.
Temos de lembrar isso porque a experiência
nacional brasileira não pode ser reduzida, em termos grosseiramente
maniqueístas, a um filme de bandido e mocinho, como se quer em nossa atual “era
das desculpas”. Ou como quer a “história penitencial”, fábrica fraudulenta de
novos estereótipos dos “oprimidos” — todos invariavelmente puros e angelicais
—, sob a regência lucrativa dos que se renderam aos últimos modismos norte-americanos
e às pressões
violentas do fascismo identitário.
*Poeta, romancista e antropólogo, autor de
"A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros", "Sobre o
Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária" e
"As Sinhás Pretas da Bahia"
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