EDITORIAIS
Governar é possível
O Estado de S. Paulo
Não é preciso um Congresso excepcional para o regime democrático funcionar
Não é preciso ter um Congresso excepcional
para que o regime democrático funcione. A separação de Poderes dispensa
utópicas perfeições, pois há limites e controles
Na tentativa de justificar a falta de
resultados, o governo Bolsonaro difunde a ideia de que as instituições – em
especial, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso – impedem o presidente
da República de governar. Com os obstáculos e resistências que enfrenta, o
chefe do Executivo federal estaria impossibilitado de realizar seu programa de
governo.
Para começar, a desculpa não se aplica a
Jair Bolsonaro, nem mesmo em tese. Ele nunca apresentou um programa factível de
governo, tampouco se envolveu com as pautas que supostamente seu governo apoia,
como as privatizações e a reforma da administração pública. De toda forma,
muito além do bolsonarismo, há quem pense que, para o presidente da República
de fato governar, seria preciso ter outra Constituição, outro Supremo e, muito
especialmente, outro Congresso.
O argumento é um tanto perigoso para o
regime democrático, uma vez que exclui a responsabilidade do governante em
relação ao seu governo e, para piorar, atribui a ineficácia do Executivo à
separação de Poderes. Sob essa lógica, tivesse o presidente da República mais poderes
e recaíssem sobre ele menos controles, as coisas seriam diferentes. Ou seja, a
argumentação encaminha-se, velada ou explicitamente, para o autoritarismo.
A ideia é, no entanto, uma falácia. Quando quer, o presidente da República é capaz de governar, implementando seu programa de governo e suas propostas. Logicamente, não será capaz de realizar tudo aquilo que se propôs. Mas conseguirá promover, a despeito de todas as dificuldades e oposições, muitos projetos e muitas mudanças.
A história recente do País é repleta de
casos de sucesso do Executivo na promoção de sua agenda no Congresso. Veja-se,
por exemplo, a aprovação da legislação relativa à responsabilidade fiscal
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Poucas matérias suscitam mais
oposição do que a criação de limites para os gastos públicos. Mesmo assim, sob
a coordenação política do presidente Fernando Henrique, o Congresso aprovou
diversas medidas – em destaque, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei
Complementar 101/2000) – que impunham novas exigências para as finanças
públicas. Foi preciso negociar muitos pontos, não se conseguiu aprovar tudo,
mas foi instaurado o arcabouço jurídico que propiciou um novo patamar de
profissionalismo na gestão fiscal do Estado brasileiro.
Seria ingenuidade, sem correspondência com
os fatos, pensar que o Congresso dos tempos de Fernando Henrique Cardoso era
muito melhor do que o atual. Os deputados e senadores de então não estavam mais
preocupados com a responsabilidade fiscal do que os de agora, que aprovaram
recentemente medidas que dificultam o equilíbrio das finanças públicas. A
diferença não está no Congresso, em uma suposta responsabilidade que teria se
perdido ao longo do tempo, mas no Executivo. Com Fernando Henrique Cardoso, o
Palácio do Planalto trabalhava séria e continuamente pela responsabilidade
fiscal.
A afastar qualquer pretensão de idealizar o
Congresso dos tempos do presidente Fernando Henrique, basta lembrar que, na
época, nem existia a Lei da Ficha Limpa. Portanto, uma das legislações mais responsáveis
em matéria fiscal foi aprovada por uma daquelas legislaturas que causavam
grande indignação na população – motivando, entre outras coisas, o projeto de
iniciativa popular a respeito da inelegibilidade de pessoas condenadas pela
Justiça.
Semelhante eficácia do Executivo federal
foi vista no governo de Michel Temer. Em 2016, o Congresso aprovou a Emenda
Constitucional do Teto dos Gastos. Na época, Michel Temer tinha baixa aprovação
popular, e mesmo assim conseguiu instaurar a medida saneadora.
Tal histórico é muito alentador,
especialmente para depois de 2022. Quando se quer, quando se colocam os meios,
é possível governar. Não é preciso ter um Congresso excepcional para que o
regime democrático funcione. A separação de Poderes dispensa utópicas perfeições,
pois há limites e controles. Basta que cada um faça a sua parte. Ao Executivo
compete governar.
Perspectiva para os partidos
O Estado de S. Paulo
Há 33 partidos registrados na Justiça Eleitoral. Mas têm surgido indícios de uma possível melhora da representação partidária, com a redução do número de legendas
No Brasil, ter um partido político foi
sempre um bom negócio. Por diversos meios, o sistema políticoeleitoral
favoreceu ao longo do tempo a proliferação de legendas, num quadro de explícita
disfuncionalidade. A alta fragmentação partidária continua existindo. Há 33
partidos políticos registrados na Justiça Eleitoral. No entanto, têm surgido
indícios importantes de uma possível melhora da representação partidária, com a
redução do número de legendas.
Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) atualizou uma regulamentação de 2018 a respeito da criação, organização,
fusão, incorporação e extinção de partidos políticos. Além de fixar um
procedimento comum para as novas solicitações de registro, a medida regula a
situação de 67 legendas em processo de formação na Justiça Eleitoral que,
depois de dois anos, ainda não obtiveram as assinaturas necessárias para sua
formalização.
É muito oportuna a nova regulamentação.
Dentro de um regime constitucional de pluripartidarismo, é importante que o
procedimento para a criação de novos partidos tenha critérios bem definidos, em
um marco jurídico objetivo e seguro. Ao mesmo tempo, impressiona a quantidade
de partidos em formação sem nenhuma viabilidade jurídica. São quase sete
dezenas de pedidos parados por falta de apoio popular. Com a nova resolução, o
não cumprimento das condições resultará na desconsideração do pedido, o que
contribui para um sistema mais razoável.
Outra mudança – essa de natureza
constitucional – que, aos poucos, vai produzindo mais efeitos positivos é a
cláusula de barreira, aprovada pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017.
Trata-se de importante medida saneadora, que introduz de forma gradual restrições
a partidos políticos sem representatividade popular.
A cláusula de barreira foi aplicada pela
primeira vez nas eleições de 2018. Os partidos políticos que não alcançaram
nenhum dos dois patamares mínimos de voto – a obtenção de 1,5% dos votos válidos
para deputado federal ou a eleição de nove deputados – deixaram de ter acesso,
desde 2019, aos recursos do Fundo Partidário e à chamada propaganda gratuita no
rádio e na televisão.
Nas eleições de 2018, 14 partidos não
superaram a cláusula de barreira. No pleito do ano que vem, as exigências serão
um pouco maiores. Para 2022, a EC 97/2017 estabelece, como critério mínimo para
cada partido, a obtenção de 2% dos votos válidos para deputado federal ou a
eleição de 11 deputados federais.
Por outras razões não ligadas diretamente à
cláusula de barreira, mas que se alinham com o novo regime jurídico de mais
restrições aos partidos, os diretórios nacionais do DEM e do PSL aprovaram no
início de outubro a fusão das duas legendas. Com o nome de União Brasil, o novo
partido terá 82 deputados federais e 8 senadores.
Esse movimento do DEM e PSL, criando a
maior bancada da Câmara, contribuiu para que outras legendas negociassem
possíveis fusões. Além de conveniência política, outros partidos conversam com
seus pares por uma razão de sobrevivência. A cláusula de barreira segue
vigente.
Outra novidade que pode favorecer um
cenário de menor fragmentação é a criação, por meio da recente Lei 14.208/21,
da figura das federações partidárias. Sob essa modalidade de convênio, os partidos
podem se unir para a disputa das eleições, passando a atuar como uma só
legenda.
Ainda que seja uma medida de escape da
cláusula de barreira, a nova lei fixa requisitos que podem contribuir para uma
maior funcionalidade do quadro partidário. A federação partidária deve ter
abrangência nacional e duração mínima de quatro anos, podendo ser constituída
apenas até a data das convenções partidárias. Ou seja, não será tábua de
salvação para partidos sem voto que não se uniram antes das eleições.
O cenário é novo, e muito dele ainda está no plano das possibilidades. De toda forma, em comparação ao anterior, é inegavelmente positivo. Merece, portanto, aplauso o Congresso que, apesar das pressões, manteve a cláusula de barreira. Sem ela, nada disso seria possível.
Abolir o uso de máscaras é risco
desnecessário
O Globo
É compreensível que, com o declínio da
pandemia, aumentem as pressões pela volta à normalidade — que, é preciso dizer,
não será a mesma de antes. Mas, para que se preservem as condições atuais, a
que se chegou após um traumático morticínio que pôs o Brasil em segundo lugar
no ranking macabro de mortes, é fundamental que a reabertura seja feita com
cautela e de forma segura. Não é o que acontece no país, onde a pressa em pôr
fim às medidas de prevenção à Covid-19 ganha dimensão preocupante.
No Rio, o prefeito Eduardo Paes tem forçado a barra para liberar o uso de máscaras. Em locais abertos, a obrigatoriedade deve ser abolida já esta semana, quando a cidade atingir 65% da população completamente vacinada (embora o estado mantenha a exigência). Em lugares fechados, a medida será adotada quando o Rio alcançar 75%, patamar estimado para 15 de novembro. O plano prevê que as máscaras serão exigidas apenas no transporte público e em unidades de saúde. A prefeitura de São Paulo também estuda liberar o uso de máscaras em locais públicos. A medida valeria somente para ambientes externos e sem aglomeração.
É verdade que os números são animadores,
graças ao avanço da vacinação. Em todo o país, mais de 70% já receberam ao
menos uma dose, e mais de 50% estão completamente vacinados. De acordo com o
boletim da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgado em 20 de outubro, os dados
“mostram a continuidade de um processo de redução da transmissão do Sars-CoV-2,
com queda do número de óbitos e de casos graves”. Segundo o documento, 25 das
27 unidades da Federação e 23 capitais estão fora da zona de alerta, a maioria
com ocupação de leitos de UTI em patamares inferiores a 50%.
No entanto as condições ainda não permitem
um “liberou geral”. De acordo com a Fiocruz, é real a possibilidade de reveses:
“A manutenção do atual patamar de transmissão não permite afirmar que a
epidemia está definitivamente controlada. A impressão de que já vencemos a
pandemia é enganosa”. O boletim afirma ser fundamental que “medidas de
relaxamento do distanciamento físico, do uso de máscaras e de higienização das
mãos sejam implementadas de foma gradual e segura, conjugadas com a adoção do
passaporte vacinal”.
A pandemia já nos mostrou que nenhum
cenário é definitivo. Veja-se o que acontece noutros países onde a doença
parecia controlada. Diante do aumento súbito do número de casos no Reino Unido,
funcionários da saúde estão pressionando pela volta da obrigatoriedade das
máscaras. Em Moscou, onde também houve preocupante crescimento no número de
mortes numa quarta onda de Covid-19, o governo voltou a impor uma quarentena
entre 28 de outubro e 7 de novembro.
Sem dúvida o avanço da vacinação trouxe
resultados extraordinários. Mas a pandemia não acabou. Doses de reforço têm
sido necessárias em vários países que enfrentam consequências do relaxamento
prematuro. É um risco desnecessário abolir completamente o uso de máscaras,
mesmo que possam ser dispensadas em ambientes abertos. O perigo é perder o que
foi conquistado até agora. É preciso considerar que novas quarentenas, como
ocorre lá fora, teriam pouca adesão. Uma volta ao morticínio desenfreado não
interessa a ninguém. O Brasil já sofreu demais com omissão e negligência.
Crimes na fronteira com Paraguai reforçam
demanda por cooperação
O Globo
Disputas entre facções, execuções
envolvendo figuras conhecidas da sociedade, corrupção, narcotraficantes em
celas de luxo, triângulo amoroso. Ingredientes que costumam permear o roteiro
de filmes e séries de TV sobre gângsters estão presentes nos episódios de
violência registrados na fronteira entre Brasil e Paraguai nas últimas semanas.
O grande problema é que essa trama nada tem de ficção. O terror e o medo são
reais e deveriam merecer atenção dos governos.
Num dos casos sob investigação, quatro
pessoas foram assassinadas no dia 9 de outubro em Pedro Juan Caballero, na
fronteira com o Brasil. Foram mortos Haylee Acevedo Yunis, de 21 anos, filha de
Ronald Acevedo, governador de Amambay, no Paraguai; duas amigas de Haylee e o
paraguaio Omar Vicente Álvarez, conhecido como Bebeto, tido pela polícia como
alvo dos bandidos. O crime ocorreu um dia após a execução do vereador de Ponta
Porã (MS) Farid Badaoui Afif quando andava de bicicleta. Ao menos dez
assassinatos foram registrados nas últimas semanas. No sábado, cinco
brasileiros foram presos em Pedro Juan Caballero com armamento de guerra.
Suspeita-se que por trás dos crimes na
fronteira esteja uma facção brasileira que atua também no Paraguai.
Investigados por autoridades dos dois países, os episódios ainda estão envoltos
em mistério. Segundo as apurações, um triângulo amoroso poderia explicar parte
das mortes. O traficante Faustino Aguayo Cabañas, que vivia numa cela cercado
de regalias, namora Mirna Romero Lesme, ex-namorada de Bebeto, uma das vítimas.
Cabañas é apontado como o mandante da chacina em Pedro Juan Caballero.
A série de assassinatos deveria acender um
alerta em governos da América do Sul para o poder crescente das facções.
Ascensão que não vem de hoje. Em 2016, o traficante Jorge Rafaat Toumani foi
morto em Pedro Juan Caballero numa emboscada que contou com mais de cem homens
e armamento exclusivo das Forças Armadas. A polícia atribuiu o crime a disputas
entre facções. O poder letal dessas quadrilhas não deveria ser desprezado. Na
segunda-feira, o presidente do Equador, Guillermo Lasso, decretou estado de
exceção no país devido à escalada de violência provocada pelo narcotráfico.
Determinou que as Forças Armadas e as polícias patrulhem as ruas 24 horas.
Está cada dia mais claro que as quadrilhas
não respeitam fronteiras. Facções criminosas brasileiras atuam em vários países
da América do Sul — e o Paraguai é escala importante nesse roteiro. O avanço do
crime demanda estreita cooperação entre as forças de segurança dos países e
agências americana e europeia, já que drogas são exportadas para EUA e Europa.
Lamenta-se que somente depois da chacina em Pedro Juan Caballero tenha se
criado uma força-tarefa para investigar os crimes, iniciativa que já deveria
ter sido tomada há muito tempo. Sem cooperação e integração, com uso de
inteligência e tecnologia, governos ficarão reféns de quadrilhas cada vez mais
organizadas e bem armadas. O Equador nos mostra que o perigo é real.
O lado mais fraco
Folha de S. Paulo
Irresponsabilidade de Bolsonaro na gestão
da economia imporá custo alto para os mais pobres
A irresponsabilidade do governo com
as contas
públicas aumentará a instabilidade econômica, como já ficou
evidente com a disparada dos juros e a desvalorização do real desde que o
governo decidiu desrespeitar os limites orçamentários.
O resultado mais provável é o aumento da
inflação, problema que se agrava desde o ano passado. A expectativa para a alta
dos preços ao consumidor em 2021 estava em 8,6% até semana passada, mas já não
se descarta que chegue a 10%. Para o próximo ano, os cenários anteriores
apontavam para 5%, e o viés das projeções agora é de alta.
A inflação sempre prejudica os mais pobres,
mas o impacto da aceleração dos preços no país tem sido mais doloroso por se
concentrar em itens essenciais como alimentação,
transportes e energia. O preço da comida subiu quase 15% neste ano
até outubro, a conta de luz ficou 29% mais cara e o preço dos combustíveis
aumentou 38%.
Tipicamente, a inflação brasileira aparece
nos serviços, onde parte da alta dos preços se reflete em maior renda para os
trabalhadores dessas atividades. Mas desta vez a correção não chega a 4%, por
causa dos efeitos econômicos da pandemia .
O impacto no orçamento das famílias também
é magnificado pela recessão e pelo desemprego, que impedem repasses aos
salários.
Não surpreende, assim, que aumente a
parcela dos brasileiros em situação de miséria e fome, como mostra o
levantamento mais recente dos pesquisadores da Rede Penssan, que reúne
especialistas em segurança
alimentar.
De acordo com o relatório, 55% dos
brasileiros tiveram algum tipo de restrição alimentar em 2020, alta
significativa em relação aos 37% encontrados em 2018 e aos 23% de 2013, o ponto
mais baixo da série estatística.
Nesse contingente que se achava em situação
mais vulnerável no fim do ano passado, 9% tiveram restrições consideradas
graves, o que significa que não se alimentaram por um dia ou mais.
É de se esperar que o problema tenha
crescido neste ano, como sugerem as imagens chocantes de pessoas
disputando restos de comida descartados
por produtores e comerciantes nas grandes cidades.
A tragédia humanitária pode ser minorada
com políticas públicas e transferências de renda maiores. Mas também é
essencial criar condições para voltar a gerar empregos, o que depende de uma
gestão econômica organizada —infelizmente, algo inexistente hoje.
A perda de controle do orçamento público,
com a decisão de Jair Bolsonaro de buscar a reeleição a qualquer custo, terá
impacto direto no aumento da miséria, assim como sua conduta negacionista foi
responsável pela gravidade da pandemia de Covid-19 no país.
Dupla proteção
Folha de S. Paulo
Relaxamento no uso de máscaras exige
definição de critérios sólidos e respeito a governos locais
O Ministério da Saúde ultima um estudo que
estabelecerá parâmetros para que os municípios relaxem a obrigatoriedade do uso
de máscaras contra
o coronavírus. Se documentos desse tipo em geral adotam critérios
técnicos, imunes a interferências políticas, há motivos para preocupação desta
vez.
Jair Bolsonaro sempre se opôs às máscaras e
tentou sabotar seu uso em diversas ocasiões. Em junho, o mandatário pediu ao
ministro Marcelo Queiroga um parecer que desobrigasse vacinados e recuperados
de portar o apetrecho. O titular da Saúde não o atendeu na hora, mas encomendou o
estudo —que, assim, já surgiu sob suspeitas.
Quando o médico assumiu o cargo, os mais
otimistas acreditaram que ele tentaria imprimir o máximo possível de
racionalidade às ações da pasta, ainda que contemporizando para não bater de
frente com as convicções presidenciais.
Mas o ministro não demorou a trocar o
estetoscópio de médico pela ferradura de bolsonarista exaltado. Foi
particularmente chocante a cena em que fez um gesto obsceno para
pessoas que se manifestavam contra o presidente em Nova York.
Queiroga, que iniciara a gestão falando em
"pátria de máscaras", converteu-se rapidamente num paladino das
liberdades individuais, opondo-se a todas as obrigatoriedades, defendendo até a
morte o direito das gentes de andar nas ruas sem proteção e infectar o próximo.
Não dá, portanto, para confiar que o médico
tenha assegurado aos técnicos do ministério a independência necessária para
fazer um estudo que respeite evidências e não um que chegue às conclusões
pretendidas, ignorando a ciência.
A boa notícia é que, com o avanço da
vacinação contra a Covid-19, óbitos, internações e infecções estão diminuindo
significativamente. Já é possível planejar a volta à normalidade, o que inclui
o relaxamento do uso de máscaras.
É preciso proceder com método e cautela,
porém, levando em conta as condições de cada município. Países que se
precipitaram, como Estados Unidos e Irael, se viram obrigados a voltar atrás.
O ideal seria que o ministério exercesse
seu papel de coordenação e liderança, estabelecendo critérios nacionais como
recomendações para os gestores
locais.
É possível que a versão final do estudo traga parâmetros sólidos. A tragédia brasileira é que a cada dia fica mais difícil acreditar no que sai do governo com as digitais do presidente e de seus assessores.
Caminhoneiros se mobilizam e tornam governo
refém
Valor Econômico
Desde maio de 2018, quando conseguiram
desorganizar o setor produtivo com uma greve inesperada, os caminhoneiros
descobriram a capacidade de transformar autoridades em reféns de suas
mobilizações. Apenas no governo Jair Bolsonaro houve mais de 15 tentativas de
paralisação. A última, na esteira dos protestos do dia 7 de setembro, foi a
pior delas: tinha respaldo de segmentos do agro e características de locaute,
buscando aproveitar o poder de desorganização econômica com finalidade
política.
Na quinta-feira, durante uma solenidade em
Sertânia (PE) que mais pareceu comício de campanha antecipada, como sói
acontecer nos últimos meses, Bolsonaro novamente despejou voluntarismo ao
prometer, sem apontar nenhuma fonte de recursos, ajuda financeira para 750 mil
caminhoneiros autônomos a fim de compensar os seguidos aumentos do óleo diesel.
Soube-se logo que o presidente estava falando de um auxílio, no valor de R$ 400
e com duração até dezembro de 2022, com o objetivo de atenuar a pressão da
categoria.
O custo fiscal é estimado em quase R$ 4
bilhões. Em agosto, Bolsonaro já havia dito - e por sorte não voltou mais ao
assunto - que zeraria a cobrança de PIS/Cofins sobre o diesel. Há relatos de
que ministros próximos desaprovam essas medidas, mas reconhecem a sensibilidade
política e veem uma eventual mudança na fórmula de preços da Petrobras como
alternativa ainda pior de trégua.
Soluções como a buscada agora pelo governo
ou pela Câmara, que aprovou projeto modificando o cálculo para a tributação dos
combustíveis, têm ganhado caráter cada vez mais eleitoreiros. No caso da
proposta que foi votada pelos deputados, dependendo agora de aval do Senado, o
ICMS passa a ser aplicado em cada Estado com base no preço médio dos
combustíveis nos dois anos anteriores. Isso poderia gerar alívio para o
consumidor final em 2022, mas provável aumento em 2023 - sem falar na
possibilidade de desrespeito ao pacto federativo e de iminente judicialização.
Nada está tão ruim que não possa piorar. O
dólar beira R$ 6 e a cotação do petróleo se firma acima de US$ 80 por barril.
Diante do ambiente de briga de colégio que se instala nas eleições brasileiras
e da crise energética internacional, podem-se antever novas rodadas de aumento
de reajustes pela frente. Nesse contexto, a política de preços merece reflexão
mais prolongada. A discussão deve ser feita com muita responsabilidade e
transparência, desvinculada de interesses políticos. A dificuldade, face à
perda de credibilidade de Bolsonaro e sua equipe, será encontrar quem possa conduzir
esse diálogo livre da percepção de mero cálculo eleitoral.
Enquanto isso, transportadores autônomos
ameaçam com nova greve a partir do dia 1º de novembro e motoristas de
caminhões-tanque ensaiaram uma paralisação no fim da semana passada. A pauta de
reivindicações abrange a constitucionalidade da lei que estabelece o piso
mínimo de frete, a aprovação de novo marco legal do transporte rodoviário de
cargas, retorno da aposentadoria especial aos 25 anos de contribuição
previdenciária, criação de pontos de parada e descanso.
Como se observa, pedidos completamente
razoáveis - motoristas profissionais precisam de espaço com boa infraestrutura
nas estradas para descansar e se alimentar sem riscos à sua segurança -
misturam-se com um apelo por privilégios. Nessa categoria enquadram-se
propostas em tramitação no Congresso de perdão a multas ativas do Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e da Agência Nacional de
Transportes Terrestres (ANTT), no que é conhecido como “Refis dos Caminhoneiros”.
Essa anistia foi incorporada na minuta de medida provisória que trata do
“Renovar”, programa de incentivo à renovação da frota em estudo no governo.
A desenvoltura com que os caminhoneiros aprenderam a bloquear rodovias precisa de resposta do Estado, sem tibieza. A categoria deveria organizar-se para cobrar dos embarcadores de mercadorias um valor justo pelo frete, que necessariamente refletirá o preço dos combustíveis. Por sua vez, caberia ao governo e ao Parlamento amadurecer as discussões sobre uma política de preços. Fundos de estabilização, com dinheiro dos leilões de petróleo ou com um imposto sobre a exportação de óleo bruto, também estão em pauta.
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