O Estado de S. Paulo
A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os “liberais” atuais estão se mostrando discípulos dos petistas
O governo “liberal” de Bolsonaro inovou em
seu liberalismo ao inventar um novo tripé: o bolsa eleitoral, dito “Auxílio
Brasil”; o bolsa caminhoneiro, denominado por um de seus líderes de bolsa
“esmola”; e o bolsa “Centrão, conhecido por emendas parlamentares dos mais
diferentes tipos, além de cargos governamentais.
Tais iniciativas são todas paliativas,
algumas tidas por temporárias, quando vieram para ficar, numa aparente
obediência às regras legais e constitucionais; outras almejam a permanência do
grupo no poder, tendo como objetivo assegurar a reeleição do atual presidente.
O mesmo uso que se faz de ajuda aos pobres, embora necessária, encobre uma
desmedida política, que não hesita diante de nada para alcançar as suas
finalidades, a custo de produzir o desmoronamento fiscal, econômico e social do
País. O que mais espanta é o desaparecimento de qualquer perspectiva de
trabalho pelo bem comum, esquartejado nos interesses particulares e
corporativos.
Evidentemente, os pobres devem ser ajudados. Trata-se de respeito moral com o próximo e obediência política à Constituição. Ocorre, porém, que tal argumento está sendo empregado para furar o teto da lei dos gastos públicos, como se essa infração fosse condição deste atendimento social. Atente-se para o fato de que o alvo do governo consiste em abrir a porteira para o estouro da boiada, pois, em ato imediatamente seguinte, o presidente anunciou que, com a folga obtida, criaria o bolsa esmola para os caminhoneiros e pagaria e ou aumentaria as emendas parlamentes. Ou seja, estabelece como regra a irresponsabilidade fiscal, hipoteca o futuro e aumenta a espiral dos juros e da inflação, com péssimas consequências para os investimentos privados nacionais e estrangeiros. Os mesmos pobres atendidos hoje pagarão por isso amanhã.
Acontece que o governo precisa seguir o seu
novo tripé. Poderia, ao contrário do que faz, não dar mais nenhuma bolsa
Centrão, transferindo estes recursos para os mais necessitados. Poderia reduzir
os subsídios fiscais concedidos a vários setores empresariais; poderia reduzir
o custo da máquina pública; poderia reduzir privilégios nos diferentes Poderes,
alguns exorbitantes. Se assim o fizesse, estaria adotando uma posição liberal
no verdadeiro sentido do termo.
A social-democracia empreendeu, no poder,
medidas de cunho liberal, enquanto os ‘liberais’ atuais estão se mostrando
discípulos dos petistas
Contudo, optou por assassinar o liberalismo
em nome da causa liberal!
O governo do ex-presidente Fernando
Henrique, criticado por ser social-democrata e, nesse sentido, de “esquerda”,
foi muito mais liberal do que o apregoado por seus detratores. Levou a cabo um
impressionante e bem-sucedido programa de privatizações, reformando o Estado,
algo que o atual governo foi incapaz de fazer. Elaborou um exitoso combate à
inflação graças ao Plano Real, cujos alicerces estão sendo agora desmontados.
Criou uma Lei de Responsabilidade Fiscal, complementada pela Lei do Teto de
Gastos Públicos, de iniciativa do ex-presidente Michel Temer, algo que está
sendo substituído pela irresponsabilidade fiscal.
A social-democracia empreendeu, no poder,
medidas de cunho liberal, enquanto os “liberais” atuais estão se mostrando
discípulos dos petistas. Não sem razão, o ex-presidente Lula está elogiando as
iniciativas de ajuda aos pobres, não cansando de repetir que, caso eleito, não
seguirá a responsabilidade fiscal e a Lei do Teto de Gastos Públicos. Isto é,
as afinidades entre os petistas e os ditos “liberais” expõem um parentesco para
além das clivagens tradicionais entre (extrema)direita e esquerda.
Com a mudança legal do indexador de cálculo
da Lei do Teto de Gastos Públicos, uma artimanha jurídica para cobrir de
legalidade uma atitude ilegal, o governo também se mostra um seguidor dos
petistas, pois, na verdade, estamos diante de uma nova forma de “contabilidade
criativa”. A da ex-presidente Dilma foi, em sua dimensão, menor do que a que
está sendo atualmente implantada, e terminou pagando por isso. Os atuais
detentores do poder, cientes disso, procuraram dar uma cobertura jurídica para
evitar tal desenlace, o que não diminui a sua responsabilidade.
Eis por que o bolsa Centrão é tão
importante. Graças a isso, o impeachment tem muito menos chance de prosperar,
possibilitando que os recursos públicos sejam partidariamente, privadamente e
corporativamente apropriados. Numa situação completamente atípica, o presidente
perde o controle do Orçamento, contentando-se com discursos em todos os cantos
do País como se não mais precisasse governar, procurando tão exclusivamente a
sua própria reeleição.
O cenário é totalmente esquizofrênico na
medida em que o País real, em suas necessidades e carências, encontrase
divorciado de sua classe política e das narrativas presidenciais, de nítido
teor demagógico. Diz-se respeitar a lei numa flagrante violência da mesma, como
se a irresponsabilidade fiscal tivesse mudado de nome. A perversão no uso das
palavras é mais um indicativo do desmoronamento da moralidade pública e,
sobretudo, de respeito para com o País.
*Professor de Filosofia na UFGRS
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