domingo, 23 de abril de 2023

Marco Aurélio Nogueira* - O difícil equilíbrio entre blocos e imperialismos

O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa se movimentar com largueza de visão e flexibilidade. Sua política externa está obrigada a dialogar com todos, sem preferências ideológicas

No Brasil e em muitas partes do mundo, a esquerda atravessou o século 20 combatendo o imperialismo norte-americano. Fez isso por razões histórico-políticas e movida por variadas elucubrações ideológicas. Motivos havia: a afirmação dos EUA como superpotência foi agressiva e nem sempre respeitou o princípio da autodeterminação dos povos. Foram muitas intervenções, muitos golpes patrocinados, muita pressão sobre políticos e partidos reformadores.

Depois da 2.ª Guerra Mundial, as pretensões imperialistas dos EUA sofreram a concorrência de um segundo tipo de imperialismo, o soviético. Baseado na força política e econômica da Rússia, de seu desempenho militar contra o nazismo e nos influxos da revolução de 1917, constituiu-se um “império de esquerda” assentado sobre diversos Estados nacionais do Leste Europeu: a URSS.

O fim do socialismo soviético no início dos anos 1990 coincidiu com o ingresso do capitalismo em uma fase de acumulação expandida, globalização e inovação tecnológica acelerada. Os EUA passaram a ser a única superpotência em condições de se impor hegemonicamente. Pelas margens do sistema, porém, o dragão chinês cresceu com um capitalismo desenfreado e apetitoso dirigido por um Estado autoritário nominalmente comunista. Avançando sobre mercados periféricos nas Américas e na África, a China tornou-se a segunda potência econômica mundial. A Rússia, encolhida e sem propulsão econômica, fechou-se no Leste Europeu, hegemonizando as antigas repúblicas saídas da União Soviética.

A anexação da Crimeia em 2014 e a invasão da Ucrânia no início de 2022 integram esse cenário, que representa a afirmação do imperialismo regional russo, sob o comando de Vladimir Putin.

Blocos e imperialismos de novo tipo passaram a se confrontar; a tensão se tornou onipresente. A agenda internacional, ao mesmo tempo, incorporou novos temas (meio ambiente, clima, sustentabilidade, identidades culturais, segurança) e ganhou extraordinária complexidade. O imperialismo chinês e o imperialismo regional russo, contrapondo-se ao imperialismo norteamericano e à União Europeia, redesenharam o sistema internacional.

O apoio ocidental a Volodmir Zelenski visa não só a defender a integridade territorial da Ucrânia, mas também a refrear as pretensões expansionistas russas e a aumentar a influência dos valores da democracia liberal. A aliança sino-russa, por sua vez, busca erguer um muro do qual seja possível torpedear as potências ocidentais.

Para um país como o Brasil – cuja força repousa no mercado consumidor, na agropecuária, no território e no bioma privilegiado –, o cenário internacional é desafiador. Aliar-se aos EUA contra a China é tão complicado quanto aliar-se com a China em nome da multipolaridade. Não pode virar as costas para a comunidade europeia, nem deixar de procurar exercer liderança na América Latina. Precisa se posicionar deixando clara sua filiação aos princípios da autodeterminação, do diálogo e da soberania, condenando com clareza as agressões. Deixar de repudiar a guerra russa contra a Ucrânia para agradar a Putin e aos chineses não faz jus às tradições brasileiras, nem melhora a imagem do País.

Falar hoje em multipolaridade não é um sinal de progressismo, até mesmo por ser uma bandeira desfraldada por diversos regimes despóticos, que empregam o argumento para atacar a democracia em suas próprias sociedades e afrontar a soberania de outras nações.

O Brasil precisa se movimentar com largueza de visão e flexibilidade. Sua política externa está obrigada a dialogar com todos, sem inflexões atabalhoadas ou preferências ideológicas. Declarações precipitadas e equivocadas, como as feitas por Lula da Silva durante viagem à China e aos Emirados Árabes Unidos – quando, entre outras coisas, fez falsas simetrias entre Rússia e Ucrânia e disse que os EUA e a Europa “estimulam a guerra ao ceder armas para a Ucrânia” –, causam estragos desnecessários, forçando a diplomacia brasileira a uma frenética redução de danos. O próprio presidente foi forçado a se retratar dias depois, quando passou a dizer que seu governo “condena a violação da integridade territorial da Ucrânia”, mas defende “uma solução política negociada para o conflito”.

Lula busca legitimar-se pela política externa para, com isso, compensar as dificuldades que enfrenta na política interna. Deseja ser visto como articulador de um “grupo de países” para negociar a paz. A ideia funciona como retórica, mas não está propriamente ao alcance do Brasil, cujo poderio como Estado é bastante limitado. Falando sem pesar as palavras, Lula não contribuiu para dar credibilidade à proposta de ser um mediador neutro do conflito. Como escreveu Ricardo Kotscho, “quem vai se sentar à mesa com Lula, e qual é a sua proposta concreta para alcançar o cessar-fogo? (...) Até agora, clamando no deserto, ele corre o risco de ficar falando sozinho”.

Uma boa política externa é uma construção delicada. Exige argúcia, equilíbrio, diálogo e capacidade de persuasão.

*Professor titular de Teoria Política da Unesp

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