O Estado de S. Paulo
O Brasil precisa se movimentar com largueza
de visão e flexibilidade. Sua política externa está obrigada a dialogar com
todos, sem preferências ideológicas
No Brasil e em muitas partes do mundo, a
esquerda atravessou o século 20 combatendo o imperialismo norte-americano. Fez
isso por razões histórico-políticas e movida por variadas elucubrações
ideológicas. Motivos havia: a afirmação dos EUA como superpotência foi agressiva
e nem sempre respeitou o princípio da autodeterminação dos povos. Foram muitas
intervenções, muitos golpes patrocinados, muita pressão sobre políticos e
partidos reformadores.
Depois da 2.ª Guerra Mundial, as pretensões imperialistas dos EUA sofreram a concorrência de um segundo tipo de imperialismo, o soviético. Baseado na força política e econômica da Rússia, de seu desempenho militar contra o nazismo e nos influxos da revolução de 1917, constituiu-se um “império de esquerda” assentado sobre diversos Estados nacionais do Leste Europeu: a URSS.
O fim do socialismo soviético no início dos
anos 1990 coincidiu com o ingresso do capitalismo em uma fase de acumulação
expandida, globalização e inovação tecnológica acelerada. Os EUA passaram a ser
a única superpotência em condições de se impor hegemonicamente. Pelas margens
do sistema, porém, o dragão chinês cresceu com um capitalismo desenfreado e
apetitoso dirigido por um Estado autoritário nominalmente comunista. Avançando
sobre mercados periféricos nas Américas e na África, a China tornou-se a
segunda potência econômica mundial. A Rússia, encolhida e sem propulsão
econômica, fechou-se no Leste Europeu, hegemonizando as antigas repúblicas
saídas da União Soviética.
A anexação da Crimeia em 2014 e a invasão
da Ucrânia no início de 2022 integram esse cenário, que representa a afirmação
do imperialismo regional russo, sob o comando de Vladimir Putin.
Blocos e imperialismos de novo tipo
passaram a se confrontar; a tensão se tornou onipresente. A agenda internacional,
ao mesmo tempo, incorporou novos temas (meio ambiente, clima, sustentabilidade,
identidades culturais, segurança) e ganhou extraordinária complexidade. O
imperialismo chinês e o imperialismo regional russo, contrapondo-se ao
imperialismo norteamericano e à União Europeia, redesenharam o sistema
internacional.
O apoio ocidental a Volodmir Zelenski visa
não só a defender a integridade territorial da Ucrânia, mas também a refrear as
pretensões expansionistas russas e a aumentar a influência dos valores da
democracia liberal. A aliança sino-russa, por sua vez, busca erguer um muro do
qual seja possível torpedear as potências ocidentais.
Para um país como o Brasil – cuja força
repousa no mercado consumidor, na agropecuária, no território e no bioma
privilegiado –, o cenário internacional é desafiador. Aliar-se aos EUA contra a
China é tão complicado quanto aliar-se com a China em nome da multipolaridade.
Não pode virar as costas para a comunidade europeia, nem deixar de procurar
exercer liderança na América Latina. Precisa se posicionar deixando clara sua
filiação aos princípios da autodeterminação, do diálogo e da soberania,
condenando com clareza as agressões. Deixar de repudiar a guerra russa contra a
Ucrânia para agradar a Putin e aos chineses não faz jus às tradições
brasileiras, nem melhora a imagem do País.
Falar hoje em multipolaridade não é um
sinal de progressismo, até mesmo por ser uma bandeira desfraldada por diversos
regimes despóticos, que empregam o argumento para atacar a democracia em suas
próprias sociedades e afrontar a soberania de outras nações.
O Brasil precisa se movimentar com largueza
de visão e flexibilidade. Sua política externa está obrigada a dialogar com
todos, sem inflexões atabalhoadas ou preferências ideológicas. Declarações
precipitadas e equivocadas, como as feitas por Lula da Silva durante viagem à
China e aos Emirados Árabes Unidos – quando, entre outras coisas, fez falsas
simetrias entre Rússia e Ucrânia e disse que os EUA e a Europa “estimulam a
guerra ao ceder armas para a Ucrânia” –, causam estragos desnecessários,
forçando a diplomacia brasileira a uma frenética redução de danos. O próprio
presidente foi forçado a se retratar dias depois, quando passou a dizer que seu
governo “condena a violação da integridade territorial da Ucrânia”, mas defende
“uma solução política negociada para o conflito”.
Lula busca legitimar-se pela política
externa para, com isso, compensar as dificuldades que enfrenta na política
interna. Deseja ser visto como articulador de um “grupo de países” para
negociar a paz. A ideia funciona como retórica, mas não está propriamente ao
alcance do Brasil, cujo poderio como Estado é bastante limitado. Falando sem
pesar as palavras, Lula não contribuiu para dar credibilidade à proposta de ser
um mediador neutro do conflito. Como escreveu Ricardo Kotscho, “quem vai se
sentar à mesa com Lula, e qual é a sua proposta concreta para alcançar o cessar-fogo?
(...) Até agora, clamando no deserto, ele corre o risco de ficar falando
sozinho”.
Uma boa política externa é uma construção
delicada. Exige argúcia, equilíbrio, diálogo e capacidade de persuasão.
*Professor titular de Teoria Política da Unesp
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