domingo, 23 de abril de 2023

Luiz Carlos Azedo - Entre a guerra e a paz, Lula perde a unanimidade externa

Correio Braziliense

Lula comprometeu o apoio ocidental por causa de declarações desastradas, na China, onde se encontrou com Xi Jinping, e durante a visita do chanceler russo, Serguei Lavrov, ao Brasil

Fundador do diário L’Humanité, em 1904, o socialista francês Jean Jaurés, um professor de filosofia de origem burguesa, foi dos mais eloquentes oradores de sua geração. Reformista, combatia os ortodoxos do partido socialista e defendia a reconciliação entre franceses e alemães, o que lhe valeu o ódio dos “revanchards” (revanchistas), que queriam um ajuste de contas com a Alemanha por causa da derrota na guerra franco-alemã de 1870. Por isso, era chamado de traidor.

Em 31 de julho de 1914, Jaurès foi morto por Raoul Villain, um chauvinista radical e desequilibrado, que o atingiu com um tiro de revólver quando estava sentado numa mesa do Café du Croissant, em Montmartre, Paris. Seu assassino gritava que o então deputado socialista se opunha à mobilização geral e à guerra iminente contra a Alemanha. Dois dias depois, a Primeira Guerra Mundial começou. No mês seguinte, os socialistas Jules Guesde e Marcel Sembat ingressaram no governo de União Sagrada para ajudar a conduzir a guerra contra a Alemanha. Seu assassino foi julgado e absolvido.

Naquela época, não era fácil pregar a paz. Entre os líderes da Segunda Internacional, somente a defenderam Rosa Luxemburgo, na Alemanha, onde a social-democracia aprovou os créditos de guerra, e Vladimir Lênin, na Rússia, mas com propósitos revolucionários, e não, pacifistas.

Em 29 de dezembro de 1920, no Congresso de Tours, a maioria dos militantes socialistas se filiaria ao novo Partido Comunista Francês e o L’Humanité se tornaria seu órgão oficial. Entretanto, Leon Blum permaneceria no comando do antigo Partido Socialista (SFIO). Herdeiro do legado de Jaurès, chegaria ao poder em 1936, ironicamente, às vésperas de outra guerra mundial.

Nos dias de hoje, também não está fácil defender a paz. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia conquistado certa unanimidade internacional por se opor e derrotar o ex-presidente Jair Bolsonaro, um “pária internacional”, que questionou a eleição do presidente Joe Biden nos Estados Unidos e chegou a visitar o presidente o presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Entretanto, Lula perdeu a unanimidade do apoio ocidental por causa de declarações desastradas, durante sua visita à China, onde foi tratado com grande deferência pelo presidente Xi Jinping, e ao receber a visita relâmpago do chanceler russo, Serguei Lavrov, velha águia da diplomacia internacional, que o pôs numa saia justa ao dizer que Brasil e Rússia têm posições “similares”. Agora, Lula corre atrás do prejuízo.

Ao responsabilizar tanto a Rússia quanto a Ucrânia, os Estados Unidos e a União Europeia pela continuidade da guerra, em suas declarações, Lula praticamente pôs tudo a perder quanto ao seu propósito de liderar um “clube da paz”, que negocie o fim da guerra no Leste europeu.

Ontem, em Portugal, onde participa das comemorações da Revolução dos Cravos, durante a entrevista com o presidente Marcelo Rebelo de Souza, um político boa praça e carismático, Lula tentou se reposicionar no tabuleiro diplomático. Ao ser questionado por jornalistas, disse que o Brasil condenou a invasão em todos os fóruns internacionais, mas não forneceria munição aos ucranianos e defenderia negociações de paz sem impor condições.

Cachorro grande

Cordial, Rebelo de Souza deixou claro que compreendia as diferenças geopolíticas entre os dois países, mas que Portugal faz parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), reconhece o direito da Ucrânia de defender seu território e de exigir a saída das tropas russas das regiões ocupadas para negociar a paz. Esse é o busílis das divergências entre Lula e os países que integram a Otan, liderada pelos Estados Unidos e a Inglaterra.

Um cessar-fogo imediato teria como consequência, na prática, a anexação dos territórios ocupados pelas tropas russas, com retorno em massa de ucranianos ortodoxos e russos residentes naquela região, que abriga a bacia carbonífera do Donbass. A ida de Vladimir Putin às bases militares russas de Kherson e Luhansk, regiões ocupadas, deixou claras as suas intenções.

“Da região do Stettin, no Báltico; a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sob um continente. Atrás dessa linha estão todas as capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental: Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas essas cidades famosas e as populações em seu entorno se encontram, no que devo chamar de esfera soviética, e todos estão sujeitos, de uma forma ou de outra, não só à influência e intervenção da União Soviética, mas, também, a um grau elevado do controle com medidas crescentes de domínio por parte de Moscou”, discursou o primeiro-ministro ingês, Winston Churchill, em 1946, ao cunhar a famosa expressão Cortina de Ferro.

O discurso de Churchill fora motivado pela guerra civil na Grécia (1946-1949), na qual a Inglaterra teve que intervir para evitar que os comunistas tomassem o poder. Hoje, com sinal trocado, a “guerra fria” está de volta, e toda a região citada está sendo incorporada à Otan, além da Ucrânia, a segunda mais importante república da antiga União Soviética. A guerra ocorre num momento em que a geopolítica mundial passa por grandes mudanças, com a emergência da China, principal aliada da Rússia e nosso maior parceiro comercial, como a segunda potência planetária. Lula quer apartar uma briga de cachorro grande.

 

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