O Globo
Na quarta-feira deverá ser instalada a
Comissão Parlamentar de Inquérito do 8 de janeiro. Ela tem todos os elementos
para mostrar o óbvio: o Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal
foram invadidos por uma multidão que pedia um golpe de Estado contra o governo
de Lula. Apesar disso, o comissariado petista se enrolou, tentando administrar
uma realidade paralela implausível. Nela, fazia-se de conta que o apagão da
segurança de Brasília ocorreu fora do seu alcance.
O governo continuou cultivando a realidade
paralela na semana passada, ao dizer que o general da reserva Gonçalves Dias
“saiu por conta própria” da chefia do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI). Ele teve que ir embora depois da divulgação, pelo repórter Leandro
Magalhães, dos vídeos gravados pelas câmeras do Planalto no 8 de janeiro. Eles
mostraram a cordialidade do apagão no GSI invadido.
Esses vídeos, captados por 22 câmeras,
somavam 165 horas, ocupando 250 gigabytes de memória e estavam sob a guarda do
GSI. Em abril, ele negou o acesso à CPI da Câmara Distrital de Brasília,
informando que a tarefa era impossível, dado o tamanho do material. Patranha,
não só porque ele poderia ser copiado em poucas horas, mas também porque uma
semana depois da invasão do Planalto uma parte dos vídeos havia sido divulgada.
Segundo Gonçalves Dias, todos os vídeos foram entregues às autoridades que
investigam os acontecimentos. Nenhuma câmera estava quebrada ou desligada. Elas
mostram, por exemplo, que o relógio oitocentista do Planalto foi derrubado às
15h33m, recolocado no lugar às 15h43m e derrubado de novo às 16h12m.
Gonçalves Dias contou à repórter Delis Ortiz que chegou ao Planalto quando a manifestação passava pelo Ministério da Justiça. Logo depois informou que ao chegar ao Palácio ele já estava invadido. O chefe do Gabinete de Segurança Institucional não estava no Palácio. Basta.
(Vale lembrar que na véspera GDias havia
dispensado o reforço do Batalhão da Guarda Presidencial. No dia 8, essa tropa manteve-se
inerte nos momentos críticos).
Desde a véspera, sabia-se que centenas de
ônibus haviam chegado a Brasília. Manifestantes pedindo um golpe de Estado
estavam acampados diante do QG do Exército há semanas. Nas redes sociais,
monitoradas pelo governo, convocavam-se pessoas para a “festa da Selma”. Às
9h30m daquela manhã uma mensagem informava: “Não tem que invadir nada, a não
ser na hora certa de comer o bolo da festa da Selma.”
O bolo da Selma foi comido entre as 15h e
15h25m, com a invasão do Congresso, do Planalto e do Supremo. Estupendo
sincronismo.
Estabeleceu-se que houve um apagão da
segurança em Brasília naquele dia. Ele também foi relativamente sincrônico, e a
investigação da Polícia Federal e do ministro do STF Alexandre de Moraes reúnem
os dados para esclarecer os dois sincronismos.
Às 17h55m, Lula decretou a intervenção
federal na segurança pública de Brasília. O presidente desprezou diversas
sugestões para que decretasse um regime de Garantia da Lei e da Ordem,
entregando a questão a um comandante militar. Essa ideia era defendida por
aliados, como o ministro da Defesa, José Múcio, e também por adversários, como
o senador e general da reserva Hamilton Mourão. Lula sentiu na GLO o cheiro do
golpe.
Até agora, o melhor levantamento dos fatos
do 8 de janeiro veio do interventor na segurança de Brasília, Ricardo Cappelli,
atual chefe interino do Gabinete de Segurança Institucional. Nele, vê-se uma
parte de quem fez o que e de quem não fez o que, antes e durante as invasões.
Na última quinta-feira, Cappelli identificou para o ministro Alexandre de
Moraes os servidores civis e militares que estavam no Palácio do Planalto no
dia 8. G. Dias devia ter feito isso há meses.
O general matou a charada noturna
O 8 de janeiro teve dois momentos críticos.
Um, diurno, deu-se com as invasões. O outro, noturno, esteve envolvido em
brumas. Ele aconteceu quando o país, surpreso, viu que uma tropa do Exército
barrou viaturas da PM de Brasília que pretendiam desmontar o acampamento
montado em frente ao QG do Exército, onde pessoas pediam um golpe.
Durante mais de três meses acreditou-se que
havia ocorrido uma queda de braço, com generais desafiando o governo. O
comandante militar do Planalto, Gustavo Henrique Dutra de Menezes saiu do
silêncio e revelou que, naquela noite, falou por telefone com Lula,
explicando-lhe o risco de uma operação noturna. Acertaram que o acampamento
seria desmontado na manhã seguinte, e assim foi feito.
A ideia de que o Exército havia escorraçado
a PM injetou uma tensão desnecessária àquele ambiente carregado. O que poderia
ter sido limonada virou limão.
Arquivo vivo
Seja qual for o governo, o chefe do serviço
de segurança sabe, e guarda, segredos dos titulares.
O general GDias chefiou a segurança de Lula
durante seus dois primeiros governos.
Nos últimos quatro anos, com Bolsonaro na
Presidência, GDias mostrou que tinha boa memória.
Moral variável
Depois de deixar o cargo, GDias deu uma
entrevista à repórter Delis Ortiz: lembrou seus 40 anos de serviços ao
Exército, defendeu sua moral e criticou a reportagem de Leandro Magalhães, que
expôs seus movimentos no Planalto no dia 8 de janeiro. Tudo bem.
No mesmo dia, o general da reserva deveria
ter comparecido à Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados para
falar sobre o dia dos atos, mas faltou, apresentando um atestado médico da
Coordenação de Saúde da Presidência.
Seu quadro clínico exigiria medicação e
observação, “devendo ter ausência em compromissos justificados por motivo de
saúde”.
Noves fora o mau português, ficaram mal o
paciente e o médico que assinou a peça.
941 na transição
Vitorioso nas urnas, Lula mobilizou uma
equipe de 941 pessoas, divididas em 31 grupos temáticos que lidavam com 217
assuntos. Cinco pessoas cuidavam da área da Defesa, 40 da Justiça e Segurança
Pública.
Ao que se sabe, nenhum servidor civil ou
militar do Gabinete de Segurança Institucional de nível médio foi substituído.
O major que no dia 8 de janeiro dava
literalmente refresco um invasor, passando-lhe uma garrafa de água, era o
responsável pela segurança do Palácio naquele domingo.
Risco no agro
As invasões do MST, bem como a presença de
seu líder João Pedro Stédile na comitiva de Lula na viagem à China, debilitaram
a banda do agronegócio que se opõe aos agrotrogloditas bolsonaristas.
Madame Natasha
Madame Natasha adora uma CPI, mas teme que
a Comissão de Inquérito do 8 de janeiro lhe lese os nervos, trazendo de volta a
onipresente palavra “narrativa” para designar o que se pode chamar de versão,
entendimento e, às vezes, de opinião.
Um bolsonarista dizendo que Lula tolerou os planos e as ações golpistas, não estaria apresentando uma narrativa, mas apenas dando sua opinião ou, talvez sua versão.
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