O Globo
Nos 80 anos do Levante do Gueto de
Varsóvia, nem a imprensa europeia deteve-se com o merecido vagar sobre
efeméride tão marcante
Hoje em dia é difícil encontrar fôlego para
pensar no ontem. Simplesmente não sobra espaço para o passado. Nossa tão
fragmentada atenção é disputada o tempo todo por notícias, fatos e factoides —
e estes, já no instante seguinte, são atropelados por mais notícias, mais fatos
e mais factoides. Não espanta que vivamos num acelerado estado de inútil
combustão mental, física, afetiva. Na semana passada, para o 80º aniversário do
Levante do Gueto de Varsóvia,
nem mesmo a imprensa europeia conseguiu deter-se com o merecido vagar sobre
efeméride tão marcante para a Humanidade. Uma lástima, considerando a
selvageria da atual guerra na Ucrânia, logo ali ao lado, e o ressurgimento do
neonazismo acoplado ao antissemitismo por toda parte.
Foi num 19 de abril de 1943 que os judeus aprisionados feito gado num pedaço da capital da Polônia pegaram em armas. Do total inicial de 400 mil socados naquele gueto, mais de 250 mil já haviam sido deportados para os campos de extermínio nazistas. O levante destinava-se a tentar interromper as deportações. Os insurgentes sabiam que jamais venceriam as tropas nazistas. Também sabiam ser quase impossível sobreviver ao levante. Mas queriam, pelo menos, ser os donos do que lhes restava de vida. E ser donos da escolha de onde e como morrer.
Nas comemorações deste 19 de abril de 2023,
que começaram com sirenes uivando por toda Varsóvia, os três chefes de Estado
alinhados no pódio eram um retrato das idas e voltas da História.
— Todo aquele que semeia o ódio e pisoteia
as pessoas também pisoteia os túmulos dos heróis do Gueto de Varsóvia (...) e
de quem os ajudou — discursou o ultraconservador presidente polonês Andrzej
Duda, cujos patrícios antepassados ajudaram, e não foi pouco, a insânia de
Hitler.
— É imperativo lembrar que este trágico
capítulo da História (...) oferece a plataforma para um importante diálogo
entre a Polônia e Israel — pontuou o presidente de Israel, Isaac Herzog,
sinalizando quanto ainda há pela frente.
O presidente Frank-Walter Steinmeier, em
sintonia com uma Alemanha que há décadas encara seu passado, foi o mais direto:
— Cada crime cometido pelos alemães precisa
ter espaço em nossa memória — disse.
Os três estadistas traziam um narciso em
papel amarelo colado na altura do peito. Outros 400 mil narcisos haviam sido
distribuídos entre moradores da capital para ser portados com sentimento. O
número faz referência aos 400 mil judeus do gueto. A flor amarela simboliza o
levante desde que Marek Edelman, último sobrevivente da resistência, passou a
receber em casa, pontualmente a cada 19 de abril, um misterioso buquê de
narcisos amarelos. Edelman morreu em 2009, aos 90 anos. O remetente das flores
permanece anônimo até hoje. Culpa? Fraternidade? Demônios interiores? Toda
guerra tem sua cota de continuidade indelével.
Logo à entrada do que é hoje o Memorial de
Auschwitz, do lado direito do infame letreiro Arbeit Macht Frei, um imenso
salgueiro plantado muito antes da Segunda Guerra Mundial continua de pé. Está
intacto e saudável, ao contrário de três álamos históricos de mais de 90 anos
que tiveram de ser derrubados na década passada. Segundo levantamento da
entidade de conservação, restam do antigo complexo Auschwitz I,
Auschwitz-Birkenau e Auschwitz III apenas duas castanheiras, oito álamos, dois
carvalhos e menos de 20 bétulas de mais de 90 anos. Testemunhas silenciosas dos
crimes ocorridos naquele chão, essas árvores são reverenciadas em prosa e verso
por sobreviventes. “Muitos, como eu, queríamos escalar até o cume e sair
voando.../As árvores viram tudo, ouviram tudo,/e como é seu costume,/cresceram,
abriram folhas, e permaneceram em silêncio”, escreveu em poema Halina
Birenbaum.
Também o 11 de Setembro de 2001, que fez
ruir não só as Torres Gêmeas de Nova York, mas todo um mundo que parecia
ordenado, tem uma testemunha fincada no solo. Foi encontrada entre as montanhas
de ruínas, um mês depois do atentado. Tinha o tronco quase carbonizado, as
raízes esmigalhadas e o DNA incerto. Ainda assim, foi depositada como porcelana
rara aos cuidados do Departamento de Parques da cidade. Nove anos depois de
arrancada pela força do ódio, ainda magrela, porém sadia, pôde ser replantada
no local onde nascera. Hoje, essa pereira vistosa e abundante, rebatizada de
Árvore da Sobrevivência, vive rodeada de visitantes. A cada ano, também fornece
três plantas para comunidades que sofreram alguma tragédia recente, como a
cidade de Parkland, onde foram mortas 17 pessoas em chacina escolar em 2018, ou
Porto Rico, onde o Furacão Maria deixou um saldo de quase 3 mil mortos.
Hoje sendo domingo, cabe uma pausa na
tirania do ininterrupto ser-estar-fazer-postar-ouvir-reagir-clicar. Dar tempo à
poesia, à arte, ao pensar solto. No inverno mais amargo de 1916, com a Europa
afundada no horror da Grande Guerra, imensas lonas de camuflagem militar
começaram a pontilhar uma região campestre do conflito. Destinadas a esconder
peças de artilharia do Exército Imperial Alemão, elas destoavam do protocolo
bélico. Tinham coloridos ardentes e formatos inesperados, de beleza absurda. Foram
criadas pelo então soldado, mas já mestre do expressionismo alemão, Franz Marc.
O artista morreu nas trincheiras um mês depois de “tentar pintar o lado
espiritual da natureza” em lonas de guerra. Soube viver.
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