Valor Econômico
Parece que o sistema financeiro dos Estados Unidos ficou viciado nos aportes de liquidez do Federal Reserve
As discussões em torno da política
monetária têm absorvido cada vez mais a atenção de economistas em outros
países, muitos deles vinculados ao corpo técnico dos bancos centrais. Ao
contrário do debate banal que orienta as opiniões a respeito do tema no Brasil,
limitado ao nível da taxa de juros, há no exterior uma preocupação em entender
as mudanças ocorridas na economia mundial nos últimos três anos e as
necessárias adaptações na forma e na substância da atuação das autoridades
monetárias.
Primeiro, vale contextualizar o novo
cenário que está a inspirar tanta energia intelectual a respeito das questões
relacionadas à moeda.
Muito tem se falado da mudança ocorrida na geopolítica, com a configuração consolidada de duas forças antagônicas, mas nem todos têm a dimensão do que isso significa. Até 2019, a percepção da rivalidade entre os Estados Unidos e a China restringia-se à esfera econômica, representada por uma disputa relacionada a preços e mercados que acabava por reforçar os efeitos benéficos da globalização sobre a inflação. O que se tem hoje é um outro panorama: uma acirrada disputa por hegemonia política que deslocou o eixo da atenção do mundo desenvolvido para a preservação de territórios no lugar da abertura além fronteiras.
Obviamente, a guerra na Ucrânia precipitou
as iniciativas protecionistas. Por outro lado, a pandemia, como se sabe, criou
uma enorme confusão no fornecimento mundial de peças e insumos com limitações
na oferta, tornando-a insuficiente para atender à alta demanda a partir do
início de 2022.
Livres da covid-19, as pessoas foram
inesperadamente às compras em um mundo econômico mais fechado, cheio de
gargalos e mergulhado em incertezas políticas. Pegos de surpresa, os BCs têm recorrido
ao aumento dos juros para debelar uma inflação que se mantem em patamar
elevado, mas as complicações vão além disso.
O próprio desempenho dos bancos centrais
nos países desenvolvidos pós crise de 2008 ajudou a agravar a situação na
medida em que o acúmulo de liquidez alimentada pelo “quantitative easing” (QE)
lançado pelo Fed, pelo BCE e pelo Banco da Inglaterra com vistas a amenizar o
impacto recessivo, redundou na chamada armadilha de liquidez. Por muito tempo,
os poupadores optaram por reter dinheiro ao invés de gastar, um comportamento
compatível com juros nominais perto de zero, uma vez que o custo de
oportunidade entre acumular renda ou gastar também foi nivelado a zero. Isso
comprometeu o famoso “trade-off” que sempre orientou a política monetária, pela
qual o nível da taxa de juros real faz com que as pessoas decidam entre
consumir hoje ou deixar para amanhã.
Colhe-se agora os efeitos no mundo real do
longo período de inflação nula, acompanhada por altos preços dos ativos e sua
consequente alavancagem. Pode-se dizer que a displicência na concessão do
crédito somada ao aumento abrupto das taxas de juros está na raiz da quebra do
Silicon Valley Bank (SVB), do Signature Bank baseado em Nova York, e do
Silvergate Capital Corp. com risco de problemas em outros bancos de pequeno e
médio porte nos Estados Unidos.
Face às apreensões que tomaram conta de
depositantes de outras instituições e para evitar uma corrida às agências, o
Fed anunciou no domingo que “vai disponibilizar fundos adicionais para
instituições depositárias elegíveis para ajudar a assegurar que os bancos
tenham condições de atender as necessidades de todos depositantes”. Parece que
o sistema financeiro americano ficou viciado nos aportes de liquidez do Fed.
O fato é que a situação cria um problema
adicional no já problemático cenário mundial, pois obriga os Bancos Centrais a
operarem a política monetária em uma conjuntura de choque de oferta, com um
olho na situação de solvência dos bancos.
Também as empresas são afetadas. No Brasil,
há o temor do chamado “credit crunch” - crise de escassez de crédito - com
sinais negativos observados em algumas cadeias no varejo. O pedido de
recuperação judicial das Lojas Americanas, com uma verdadeira corrida dos
bancos para reaverem seus créditos, é o caso local emblemático. O excesso de
liquidez criou a falsa impressão de plena abundância a custo praticamente nulo.
Nos quase quatorze anos ininterruptos de
expansão monetária com juro perto de zero, a política monetária dos países
desenvolvidos funcionou no piloto automático. As expectativas futuras aderiam
facilmente aos sinais de baixa inflação alimentados pelos BCs.
No mundo de hoje isso não é mais possível.
O novo cenário inviabiliza o mecanismo do “forward guidance”, pelo qual a
autoridade monetária se compromete com a estabilidade no longo prazo. Até mesmo
a desconfiança com a eficácia do sistema de metas de inflação tem sido assunto
de estudos e das discussões entre os economistas no exterior. De todo modo, os
fatos apontam para uma tendência das expectativas de inflação se distanciarem
das metas dos BCs.
Entre as sugestões em debate está um maior
entrosamento entre as políticas monetária e fiscal, que coloca em xeque a ideia
até aqui prevalente de que a bem do controle da inflação não poderia haver
nenhum tipo de interação entre elas. Também há uma preocupação com o pensamento
monolítico que dominou a atuação dos bancos centrais nos últimos anos. As
autoridades monetárias deveriam considerar as especificidades das economias de
seu país e isso, em verdade, é uma resultante da menor influência da
globalização. Alguns estudiosos recomendam também uma mudança nos modelos
usados de modo a que passem a contemplar os efeitos do choque de oferta sobre
os preços.
Ainda é cedo para se saber qual será a
política monetária ideal no futuro próximo, mas tudo indica que o papel
desempenhado pelas expectativas até aqui tende a ficar em segundo plano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário