Instala-se vagarosamente no mercado uma rede internacional de comércio de órgãos humanos, da qual o Brasil participa, e que faz, por exemplo, do esperma humano um produto de consumo. Os bancos de sêmen, com fornecedores regulares, a preço que varia entre US$ 35 a US$ 80 por amostra, já movimentam por ano US$ 4,5 bilhões, com projeções para chegar a US$ 5,7 bilhões nos próximos quatro anos. Os clientes são casais inférteis ou aqueles que perderam entes queridos nesses conflitos bélicos internos e externos.
Concomitante, a ficção tem avançado muito
para além disso, assustando quem toma dela conhecimento. O comércio de esperma,
responsável pela reprodução humana artificial, trafega por um caminho
tortuoso, em que inclui a formação até de combatentes do tipo robocop
ou assemelhado. Sim, vale o ceticismo, mas não se pode esquecer que o
imaginário de Júlio Verne envolvia viagens submarinas e aéreas,
foguetes espaciais e outras tecnologias que só existiam na sua cabeça.
Nada disso devia ser novidade. Desde as
alianças entre Deus e Abrão, essas questões já eram debatidas. Agar, serva
de Sara, esposa de Abraão, com o consentimento prévio de todos, teve sua barriga usada
pelo patriarca, e com ele gerou um primeiro filho, Ismael, provocando posteriormente um
problema enorme nas relações familiares. Fugiu para o deserto, e lá
encontrou Deus que mandou retornar para ter novos filhos
com Abraão, por meio dos quais, prometeu, surgiriam grandes nações, que
seriam os árabes. Por outro lado, assegurou à Sara dar-lhe também um
filho, Isaac, do qual emergeria uma enorme descendência, proveniente dos gêmeos
Esaú e Jacó, patriarca dos israelitas.
Embora o caso de Abrão tenha sido
historiografado em relatos bíblicos, no livro de Gênesis, ele foi sacralizado
por religiosos como uma evidência da existência e do poder de Deus,
distinguindo o fato da vida cotidiana do homem comum. Mas, a roda
da cultura gira e a civilização não para. Vai e volta, e a cada esquina se
transforma. A mídia trouxe o tema para as telinhas, abrindo espaço para a
retomada da questão na contemporaneidade. Enquanto desfrutava de plena
autonomia, as televisões trabalharam esses assuntos em novelas e, pasme-se, até
em programas de humor ácido.
Agora foi a vez da Folha de São Paulo,
numa reportagem de Patrícia Figueiredo, levantar, numa viagem à Dinamarca,
a questão da expansão do comércio de espermas humanos no mundo, assunto tabu ao
qual vem a se somar à barriga de aluguel e, a alternativa moral da fertilização
in vitro. Não escapa, entretanto, dos ficcionistas a ideia da formação, em um
futuro não muito distante, de um exército de proveta, que lança nas frentes de
batalha apenas as copias dos indivíduos reais ou outros gerados
tecnologicamente em laboratórios, a exemplo da ideia do Frankstein.
Assim, enquanto meia dúzia de líderes
políticos insanos enviam milhares de jovens para morrer brutalmente nas guerras,
ignorando dramáticos apelos da sociedade e de seus familiares, as mudanças
culturais vão vagarosamente fazendo a roda do tempo mover-se, e bater de
frente com ética abrangente, que vai desde o respeito à vida humana,
até às condenações religiosas e criminais. A masturbação ampla, uma dessas
práticas decorrentes da comercialização do esperma, para algumas religiões é
pecado, para determinadas sociedades é imoral; e o seu comércio é
algo repugnante, considerado criminoso por segmentos mais
conservadores.
Há, como se percebe, um retorno aos tempos
de Abraão, que teve um punhado de filhos com a serva Agar, de tal forma que constituíram nações.
Nas condições que vem sendo dadas nos dias de hoje, um único sujeito pode ser o
pai também de milhares de filhos em vários países ou em um único ou em uma
mesma comunidade. Daí a Dinamarca - um dos mais procurados - limitar em 200 o
número de espermas de um mesmo sujeito a ser comercializado. Já se espera
por um comércio clandestino. Num mundo em que o desemprego cresce,
há centenas de pessoas sobrevivendo à custa da venda de sêmen: em agonia e
gozo eterno.
A procura revela uma
preferência, constatada pela repórter da Folha, pelo sêmen provenientes de
alguns países - nórdicos, por exemplo -, e não em outros, expondo uma
incubada tendência eugênica - coletividades humanas, baseada em leis
genéticas - que ressuscita a ideia de uma raça melhor ou superior,
tão em moda na ciência do início do século passado. Depois do napalm, da bom
atômica e dos mísseis nucleares transoceânicos, nada impede a um dirigente
maluco desses pretender mesmo constituir um exército de proveta ou
de uma única raça. Hitler, copiado em diversas frentes, tentou isso.
Nos países da América, no Brasil inclusive,
as escravas africanas deram muitos filhos aos patrões à força ou por submissão.
Casos de barriga de aluguel não foram poucos, prática que não desapareceu
totalmente com a Abolição. Estendeu para as mulheres brancas, as famosas
polacas, mulheres imigrantes do norte da Europa. Cristino
Gomes da Silva Cleto, conhecido como Corisco, o cangaceiro apelidado de” Diabo
Louro", procedia de uma origem dessas.
Na expectativa de não se expor tanto, mais
recente, mais de mil brasileiras contrataram serviços de clínicas de
barrigas de aluguel na Ucrânia, para fertilização in vitro e, com a
invasão russa, passaram a viver o drama de não poder ver os filhos, alguns em
plena gestação e outros sendo criados por lá. Na Ucrânia existe uma política
pública de barriga de aluguel. As famílias brasileiras, sobretudo aquelas que
lidam com o problema da infertilidade, impedidas de entrar no país, chegaram
a recorrer ao governo para ajudar a buscar os "nossos
bebês...'"
Não se sabe exatamente quantas brasileiras
estão com filhos em barrigas de aluguel na Ucrânia hoje, nem em quais clínicas.
São ao todo dezesseis, e bastante procuradas por mulheres de todo o mundo.
Essas coisas não devem espantar, porque um grande número de países tem
avançado nessa direção. No Brasil, fornecer esperma ou barrigas
de aluguel é possível desde que autorizada pela Anvisa. Em 2022 foram
importadas por aqui 1.079 amostras de sêmen humano.
*Jornalista, professor
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