Primeiros cem dias de Lula deixam a desejar
O Globo
Ele parece acreditar que apenas ser melhor
que Bolsonaro bastará para fazer um bom governo. Não bastará
Cotejados com o governo Jair Bolsonaro,
parece claro que os cem primeiros dias de Luiz Inácio Lula da Silva na
Presidência foram positivos. Confrontados com o que o Brasil necessita, porém,
deixaram a desejar. É perceptível, em todas as áreas, o ímpeto de reconstruir
tudo do zero. Em algumas, a reconstrução é necessária. Noutras, significa
apenas retrocesso.
O exemplo mais eloquente e mais consequente
é a economia. Lula elegeu o Banco Central (BC) como bode expiatório. Desde que
assumiu, a Selic passou a ser a culpada por todas as mazelas do país. Tal
populismo elevou as expectativas de inflação para 2025 e 2026, fez subir a
curva de juros futuros e dificultou o trabalho do BC no combate à inflação. As
críticas obsessivas do presidente à autoridade monetária lembram os ataques de
Bolsonaro ao STF. Por óbvio, o Brasil só ganha com a independência de ambas as
instituições.
Ainda no campo econômico, Lula decidiu rever o Marco do Saneamento, responsável por atrair mais de R$ 72 bilhões em investimentos numa área crítica, suspendeu a privatização ou liquidação de estatais e, a exemplo de Bolsonaro, quer intervir na política de preços da Petrobras. A Lei das Estatais, raro avanço institucional produzido pela Operação Lava-Jato, tem sido torpedeada para permitir ao governo indicar quem quiser a cargos bem remunerados. Nada disso faz bem ao Brasil. O clima de desconfiança entre os empresários tem reduzido o nível de investimentos e contribuído para um cenário de estagnação.
No plano político, até agora não houve
nenhuma votação relevante no Congresso, onde o governo tem dificuldade em
formar um bloco majoritário. Falta unidade dentro do próprio PT, como
demonstram os inúmeros casos de fogo amigo. Lula chamou para seu governo
expoentes do centro, como o vice, Geraldo Alckmin, ou a ministra do
Planejamento, Simone Tebet, mas dá poucos sinais de que os escuta.
Mesmo a notícia mais promissora dos cem
dias — o compromisso com um marco fiscal capaz de trazer as contas públicas
para o azul — está cercada de dúvida. O governo acertou ao eleger a reforma
tributária como meta. Mas como ter confiança nesses avanços se não conseguiu
aprovar no Congresso uma mísera Medida Provisória?
Ao reeditar programas como Bolsa Família,
Mais Médicos ou Minha Casa Minha Vida, Lula parece apenas querer fazer reviver
bandeiras do passado, quando seus olhos deveriam estar voltados para o futuro.
Esperava-se mais dos primeiros cem dias.
É verdade que houve avanços. A área
ambiental passou a contar com uma gestão sensata que trata de recuperar a
Amazônia, a saúde se viu livre do negacionismo que custou centenas de milhares
de vidas na pandemia, e a política externa, embora ainda sujeita a críticas,
começa a recuperar o prestígio do Brasil no cenário internacional. Mais
importante, Lula liderou o repúdio aos ataques do 8 de Janeiro ao lado de
governadores, líderes do Legislativo e do Judiciário, numa união pela
democracia que tem presença garantida nos livros de História.
O problema de Lula é que ele parece
acreditar que apenas ser melhor que Bolsonaro bastará para fazer um bom
governo. Não bastará. Ele precisa deixar a ideologia de lado, dar um basta nos
retrocessos e concentrar-se no árduo trabalho de aprovar os projetos mais
urgentes no Congresso. O tempo está passando.
Nova rodada de concessões será benéfica
para as rodovias federais
O Globo
União pretende privatizar mais 5 mil
quilômetros de estradas, com foco em Parcerias Público-Privadas
A União pretende conceder 5 mil quilômetros
de rodovias, com foco no modelo de Parcerias Público-Privadas, em que o Estado
arca com parte dos investimentos para que o pedágio não onere o cidadão, disse
ao GLOBO o secretário do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do
governo federal, Marcus Cavalcanti.
Hoje existem cerca de 15 mil quilômetros
sob administração da iniciativa privada e, diante da situação calamitosa das
estradas e da crônica falta de recursos públicos para o setor, é bem-vinda a
ideia de buscar investimentos privados. Mas é fundamental deixar de lado
soluções demagógicas. As novas concessões e PPPs precisam ser feitas sob regras
realistas, para evitar violação de contratos ou devolução dos negócios, como
tem acontecido com frequência, mesmo em rodovias de alto movimento.
Conta a favor do cidadão a resistência
menor do PT à concessão de estradas, talvez porque não haja movimentos
sindicais fortes vinculados à administração rodoviária. A iniciativa privada é
o caminho óbvio para resolver um dos grandes problemas de infraestrutura do
país, que afeta o escoamento da produção e o dia a dia dos cidadãos. Está
comprovado que o trôpego Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes
(Dnit), encarregado da manutenção das estradas federais, não dá conta da
tarefa. Basta percorrer as estradas para constatar seu estado precário. Algumas
se transformaram em atoleiros ou coleção de crateras. Seria um abuso
classificá-las como rodovias.
Pesquisa da Confederação Nacional do
Transporte (CNT) do ano passado mostrou um cenário desolador na malha
rodoviária brasileira. Além de constatar piora no estado geral das estradas, o
levantamento mostrou que a maior parte (66%) foi classificada como regular,
ruim ou péssima (em 2021, eram 61,8%). O abismo entre as rodovias públicas e as
privatizadas é flagrante. Nas administradas pelo governo, 75,3% foram
consideradas regulares, ruins ou péssimas, ante 31% nas mantidas pela
iniciativa privada. As melhores rodovias do Brasil estão todas sob gestão
privada.
As condições precárias da imensa maioria
das estradas brasileiras significam prejuízos, atrasos e insegurança para quem
depende do transporte rodoviário. O escoamento da safra é uma das maiores
vítimas. O governo precisa promover logo a concessão das rodovias economicamente
viáveis, até para que possa se concentrar naquelas cujo fluxo não justifica
cobrança de pedágio. Os cidadãos esperam trafegar por rodovias sem buracos,
lombadas ou depressões, bem sinalizadas, com socorro médico e mecânico.
Outros 1.365
Folha de S. Paulo
Gestão Lula chega a cem dias com
normalidade institucional e olhos no retrovisor
Numa democracia, governos podem ser bons ou
ruins —em geral carregam aspectos positivos e também negativos— e têm
legitimidade para perseguir a agenda referendada nas urnas. Só não deveriam
deixar de obedecer aos protocolos e aos rituais constitucionais.
Ressalte-se, a propósito, o retorno à
regularidade institucional no marco dos cem dias desta administração de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT). Cessaram as investidas do chefe de Estado contra
outros Poderes e os flertes com a caserna, comuns na quadra anterior.
A relação do Executivo com o Congresso
Nacional retomou as maneiras amadurecidas que se exigem das duas instâncias
consagradas pelo escrutínio popular. O exercício da Presidência recuperou o
mínimo da impessoalidade condizente com a ideia de República.
Já no terreno da gestão, o terceiro mandato
do petista procura reatar, não sem ruídos, a conexão com as melhores práticas
na educação, na saúde, na seguridade, na política ambiental e nos direitos
humanos. Há mais profissionalismo nas polícias Federal e Rodoviária.
Os pontos críticos, por seu turno, derivam
quase todos de uma visão ultrapassada do mundo e do Brasil. O Lula de 2023
ainda não compreendeu a evolução das últimas duas décadas, não aprendeu com os
erros do próprio partido nem tampouco com o resultado da eleição.
A demanda por mais liberdade econômica e
por um Estado eficiente, voltado para suas tarefas sociais precípuas, perpassa
segmentos populares volumosos da sociedade brasileira. Reduziu-se a tolerância
com o corporativismo e o dirigismo ainda incrustados no PT.
Não por coincidência, nos últimos anos
foram aprovadas leis para dotar as estatais de padrões de governança, acelerar a
universalização do saneamento, reduzir subsídios no crédito,
resguardar a atuação técnica do Banco Central e modernizar as relações de
trabalho.
Insurgir-se
contra essa maré de reformas, como com frequência fazem o presidente e seus
auxiliares, prejudica o desenvolvimento do país e, além disso,
frustra um contingente de cidadãos capaz de determinar maiorias eleitorais. É
uma péssima estratégia política.
Anacronismos se mantêm na política
externa. Tornou-se
mais custoso afagar autocratas amigos e, ao mesmo tempo,
sustentar retórica antiautoritária no Brasil.
A esquerda sul-americana é capaz de atualizar-se,
como demonstra o Chile. Basta que reconheça onde estão as suas virtudes —nas
políticas de inclusão— e os seus fracassos —na ideia de que o Estado dirige a
economia e na de que algumas ditaduras são toleráveis.
Lula ainda tem outros 1.365 dias de mandato.
Há tempo suficiente para reorientar o governo.
Tela em branco
Folha de S. Paulo
Datafolha mostra aprovação a Tarcísio, que
se sai melhor longe do bolsonarismo
Eleito governador de São Paulo sem passar
por escrutínio anterior das urnas, Tarcísio de Freitas (Republicanos) inicia
sua gestão com baixo índice de reprovação para tempos de polarização política.
É o que aponta a pesquisa Datafolha realizada perto dos primeiros cem dias de
mandato.
Somente 11% dos paulistas aptos a votar
consideram sua gestão ruim ou péssima —o que é digno de nota, dado que seu
adversário no segundo turno da disputa ao Bandeirantes, Fernando Haddad (PT),
teve 44,7% dos votos válidos.
Tarcísio, ex-ministro da Infraestrutura
lançado na política por Jair Bolsonaro (PL), marca
39% de avaliação regular e 44% de aprovação. Resta ao atual
governador, de todo modo, o desafio de conferir identidade ao quadro ainda em
branco de sua administração.
As expectativas dos entrevistados são mais
nebulosas —64% acham que
ele não cumprirá a maioria de suas promessas, e 8%, que não cumprirá
nenhuma delas.
Tarcísio apresentou um bom cartão de
visitas na reação rápida, e integrada à de seu rival Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), à tragédia provocada pelas chuvas no litoral.
Também compreendeu a herança recebida, um
estado com contas orçamentárias saneadas após quase três décadas de
continuidade administrativa sob o PSDB.
Assim, buscou acelerar a finalização do
Rodoanel e abraçou uma agenda de privatizações ambiciosa. Aqui, terá
dificuldades com seu principal plano, a venda da estatal de saneamento Sabesp,
que tem a oposição de 53% dos paulistas.
Há que superar ainda o atraso na qualidade
da educação, deficiência das gestões tucanas, e os problemas na reforma do
ensino médio.
Tarcísio enfrentou adversidades com a
inexperiência, como na condução atabalhoada de uma greve de metroviários, e
escorregou ao sugerir que o autismo tinha cura.
Saiu-se melhor sempre que buscou afastar-se
do núcleo ideológico do ex-presidente —ao manter as câmeras corporais na PM,
por exemplo. Já disse não ser "bolsonarista raiz" e tem um experiente
articulador como bússola política.
Seu secretário de Governo, Gilberto Kassab
(PSD), busca distância do radicalismo de Bolsonaro, o que já se reflete na ida
do Republicanos para um bloco liderado por PSD e MDB na Câmara.
A meta é tornar Tarcísio presidenciável. Se terá sucesso, é insondável, mas o plano por óbvio depende de uma gestão bem avaliada.
Argumento maroto contra as privatizações
O Estado de S. Paulo
Governo Lula cancela privatizações sob o
argumento de que é preciso garantir ‘oferta de cidadania’; ora, estatais
ineficientes sonegam cidadania a milhões de brasileiros diariamente
O governo tornou oficial a decisão de não
mais privatizar estatais. Na semana passada, o Executivo retirou sete empresas
do Programa Nacional de Desestatização (PND) e excluiu outras três do Programa
de Parcerias de Investimentos (PPI). Faziam parte dessas duas listas os
Correios, EBC, ABGF, Ceitec, Datraprev, Nuclep, Serpro, Conab, PPSA e Telebras.
O decreto de Lula da Silva não surpreende.
Desde a campanha eleitoral, o petista nunca escondeu o desejo de interromper o
processo de privatizações. A formalização da decisão, no entanto, é uma
oportunidade para observar a confusão propositada que o governo faz a respeito
das funções do Estado.
“Nosso objetivo é reforçar o papel destas
empresas na oferta de cidadania e ampliar ainda mais os investimentos”, afirmou
o Ministério das Comunicações, a respeito da exclusão dos Correios e da
Telebras do PND. Para o governo, aparentemente, somente empresas públicas
seriam capazes de oferecer cidadania aos brasileiros excluídos. Essa lógica
expõe uma visão política que não sobrevive à realidade dos fatos.
Se há dois serviços que estão muito
próximos da universalização, são o de energia elétrica e o de telecomunicações.
A privatização das empresas estatais que dominavam ambos os setores garantiu
investimentos que ampliaram a cobertura e o acesso de milhões de brasileiros a
serviços básicos que eram considerados artigos de luxo até a década de 1990.
Nas mãos da Telebras, telefones fixos eram bens valiosos, cuja fila de espera
era contabilizada em anos. No interior do País, só tinha acesso à eletricidade
quem aceitava bancar parte do investimento nas redes de energia com recursos
próprios.
É evidente que as empresas privadas
costumam privilegiar regiões e serviços mais lucrativos. Se não precisa prestar
serviços de forma direta, fiscalizar o cumprimento dos contratos pelas empresas
é precisamente papel do Estado. Foi para isso que foram criadas as agências
reguladoras. Não é coincidência, portanto, que a cobertura universal tenha sido
atingida nos setores em que havia órgãos fortes, caso da Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Há um segmento, por outro lado, que se
notabiliza por ilustrar o exato oposto dessas experiências bem-sucedidas. Com
forte presença de estatais estaduais, o setor de saneamento básico escancara
nossas mazelas sociais, a ponto de a universalização do acesso à água e esgoto
ser objetivo previsto somente para 2033. Os recentes investimentos na área
foram fruto do novo marco do setor, aprovado pelo Congresso em 2020, cujos
princípios foram deturpados pelo governo para favorecer estatais e dispensá-las
de disputar leilões com empresas privadas.
Considerando o discurso de Lula, é muito
improvável que estatais que ainda permanecem no PND e no PPI mudem de status em
seu governo, como o Porto de Santos. Mesmo administrações que tinham a
desestatização como meta falharam miseravelmente na execução da tarefa, caso da
gestão de Jair Bolsonaro, que só conseguiu privatizar a Eletrobras e a
Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa). Tratar o assunto como dogma, o que
não é exclusividade nem da esquerda nem da direita, explica por que a União
ainda tem hoje 125 estatais.
Ao contrário do que advoga o governo Lula,
a oferta de cidadania aos brasileiros não depende de empresas estatais. Ser um
cidadão pleno, com direitos e deveres, depende do acesso a serviços essenciais
prestados com qualidade. Isso requer tarifas equilibradas e agências
reguladoras autônomas, que fiscalizem a atuação de companhias robustas, sejam
públicas ou privadas.
É inegável, no entanto, que o setor público
não tem recursos à disposição para realizar investimentos em infraestrutura
como o setor privado. Nesse sentido, o ideal seria que o Estado abandonasse o
discurso político e reconhecesse suas limitações. Dessa forma, poderia
dedicar-se à sua função primordial, como a oferta de serviços como saúde e
educação, cujo acesso é fundamental para o verdadeiro exercício da cidadania
pela população.
Lula não está acima do Congresso
O Estado de S. Paulo
É dever dos parlamentares derrubar decretos
de Lula que desfiguram o Marco do Saneamento, pois contrariam lei aprovada pelo
Legislativo e ajudam a manter desigualdades
A falta de saneamento básico é uma das mais
constrangedoras desigualdades sociais, que afetam o presente e o futuro de
grande parte da população. Em 2020, depois de muito estudo e debate, o Congresso
aprovou o Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), que, para enfrentar essa
lamentável situação, estabelecia duas grandes frentes: desencastelar empresas
estatais de saneamento ineficientes e estabelecer um tratamento jurídico
uniforme, para prover segurança jurídica e atrair investimentos privados.
O PT sempre foi contra o Marco do
Saneamento. Escolheu ficar do lado das empresas públicas ineficientes e dos que
delas se beneficiam, em vez de defender a população mais vulnerável.
Durante a tramitação do texto no Congresso,
a legenda lutou para que tudo ficasse rigorosamente como está. Atualmente, são
cerca de 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgotos e 35 milhões sem
acesso à água tratada. Felizmente, os petistas perderam a batalha, e a Lei 14.026/2020
foi aprovada.
Agora, o presidente Lula da Silva pretende
reverter por decreto os grandes avanços do Marco do Saneamento. Na semana
passada, o Executivo federal editou dois decretos (i) estendendo a permanência
de empresas estatais de saneamento que comprovadamente não têm condições de
prestar o serviço de forma adequada e (ii) desobrigando a realização de
processo licitatório para companhias estaduais que atuam em microrregiões. Além
de ferirem os propósitos da Lei 14.026/2020, as medidas afetam a estabilidade e
a previsibilidade da regulação. Como se sabe, a insegurança jurídica afasta
investimentos privados.
Nessa história, há um detalhe importante.
Os decretos de Lula contra o Marco do Saneamento se aproveitaram de uma brecha
criada pelo presidente Jair Bolsonaro. Originalmente, o Congresso havia
proibido a renovação de contratos sem licitação depois de 31 de março de 2022.
No entanto, Bolsonaro vetou esse trecho, excluindo da lei a previsão de um
prazo. Agora, o governo do PT utiliza essa ausência de data para estender, por
decreto, contratos sem licitação, justamente o que a Lei 14.026/2020 vinha
impedir.
Tudo isso é revoltante, mas existe um
caminho constitucional para reverter o retrocesso causado pela gestão petista.
Entre as competências previstas no art. 49 da Constituição, o Congresso tem o
dever de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder
regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (inciso V), “fiscalizar e
controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder
Executivo, incluídos os da administração indireta” (inciso X) e “zelar pela
preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos
outros Poderes” (inciso XI). Os decretos de Lula encaixam-se nas três hipóteses,
a exigir, assim, imediata atuação do Congresso.
Para tanto, basta que o Congresso edite um
decreto legislativo sustando os efeitos dos decretos do Executivo federal. Isso
não fere o princípio da separação dos Poderes, tampouco significa atropelo das
competências do Palácio do Planalto. É apenas uma medida, com sólido suporte na
Constituição, de proteção das prerrogativas e da vontade do Legislativo. O
presidente da República não pode impedir, por meio de decreto, que uma lei
produza seus efeitos.
Além de ter evidente fundamento jurídico e
de assegurar condições para a melhoria da infraestrutura de saneamento, um
decreto do Legislativo sustando os dois atos do Palácio do Planalto pode ser
especialmente pedagógico, neste momento em que o governo Lula ensaia e tenta
tantos retrocessos. É uma oportunidade para relembrar alguns limites
fundamentais da República. Existe um Congresso a ser respeitado, o que inclui
respeito às leis aprovadas. Além disso, governar o País não é impor, por meio
de decreto, ideias que, no âmbito adequado de debate, foram derrotadas. Essa
manobra foi vista, por exemplo, nos decretos das armas de Jair Bolsonaro. E o
Supremo Tribunal Federal já disse que esse jeito de exercer o poder é rigorosamente
inconstitucional.
Para que serve a Unasul?
O Estado de S. Paulo
Desde 2008, bloco é norteado por afinidades
ideológicas de ocasião, não pela defesa dos interesses do País
A partir do próximo dia 6 de maio, o Brasil
voltará a integrar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), bloco constituído
em 2008 pelos 12 países da região. O decreto de reintegração foi assinado pelo
presidente Lula da Silva na semana passada. É o caso de perguntar: voltar para
que, exatamente?
Não há dúvida de que o Brasil precisa
manter uma relação saudável e profícua com as nações vizinhas. Essa relação,
contudo, tem de ser norteada pelo interesse nacional, perene, e não por
afinidades ideológicas circunstanciais que possam unir os governantes dos
países-membros da Unasul. Mas é assim que tem sido, a ponto de o bloco ter sido
relegado à irrelevância.
Embora em seu tratado constitutivo esteja
escrito que a Unasul visa à construção de um “espaço regional integrado nos
âmbitos político, econômico, social, cultural, ambiental, energético e de
infraestrutura”, o bloco nasceu vocacionado para ser uma espécie de confraria
ideológica, não um fórum multilateral para concertação de interesses por vezes
divergentes de cada um de seus países constituintes.
Idealizada por Hugo Chávez, ditador da
Venezuela à época, a Unasul foi criada com o propósito de servir como
“contraponto” à suposta influência dos Estados Unidos, por meio da Organização
dos Estados Americanos, nos destinos políticos da América do Sul. Visava ainda
a opor resistência à criação de uma zona de livre comércio na região nos moldes
defendidos por Washington. Na realidade, sob esses desígnios aparentemente
legítimos estava o interesse de Chávez de conceber um bloco que ele mesmo
pudesse controlar.
Por uma década, a Unasul esteve tão
contaminada pelo chavismo que, três dias depois de tomar posse como presidente,
em agosto de 2018, Iván Duque anunciou a saída da Colômbia do bloco. Segundo
ele, a Unasul seria “cúmplice da ditadura venezuelana”. De fato, era mesmo.
Basta dizer que, até hoje, da Unasul não se leu nem ouviu uma palavra sequer de
condenação às barbaridades perpetradas por Nicolás Maduro e seus milicianos e
militares contra opositores, jornalistas e qualquer venezuelano que ouse
criticar o regime.
Menos de um ano depois da decisão de Duque,
foi a vez de Jair Bolsonaro retirar o Brasil da Unasul. O então presidente
brasileiro foi acompanhado por suas contrapartes da Argentina, Mauricio Macri;
do Chile, Sebastian Piñera; do Equador, Lenín Moreno; do Peru, Martín Vizcarra;
e pelo presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez. Juntos, criaram o Fórum para
o Progresso da América do Sul (Prosul) como bloco substituto da Unasul
chavista.
Mas, ao invés de o Prosul passar a ser um
fórum regional orientado por questões pragmáticas, transformou-se na nêmesis da
Unasul, também uma confraria, apenas com sinal ideológico invertido, em que
pese a condenação ao regime de exceção da Venezuela.
Se a “nova” Unasul, ora recomposta, servirá, enfim, como fórum de integração do Brasil às nações vizinhas, em defesa dos interesses do País, o tempo dirá. Mas convém parcimônia na esperança. O passado, nem tão distante assim, a condena.
Mudanças no saneamento são um claro retrocesso
Valor Econômico
O claro apoio às estatais marca os decretos
sobre saneamento
Mudanças anunciadas pelo governo podem
interromper o avanço do saneamento básico, fundamental para a saúde e o
bem-estar da população. Atualmente, cerca 100 milhões de pessoas não têm rede
de esgoto no país, e apenas 46% dele é tratado. Falta água potável para 35
milhões de pessoas. Segundo o Instituto Trata Brasil, doenças relacionadas ao
saneamento inadequado foram a causa direta de quase 1% das mortes no Brasil
entre 2008 e 2019, que somaram 135 mil óbitos nesse período, uma média de 11,2
mil ao ano, de acordo com o IBGE.
Com o objetivo de superar esse atraso e
diante da falta de recursos públicos, foi aprovado o novo Marco do Saneamento
Básico, em 2020, abrindo espaço para o investimento privado e elevando as
exigências para as empresas públicas que predominam na área, cobrando mais
eficiência e racionalidade dos gastos. O objetivo final é universalizar o
serviço até 2033. Em números, a meta é oferecer água potável a 99% das casas
brasileiras e esgoto a 90%, dentro de dez anos.
Desde que o novo marco foi instituído, a
participação do setor privado no atendimento à população passou de 14% em 2019
para cerca de 23% em 2022, atendendo 55 milhões de pessoas. Já foram realizados
22 leilões, com R$ 55 bilhões em investimentos previstos. Segundo a Associação
e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água
e Esgoto (Abcon Sindcon), o investimento privado supera em uma vez e meia a
média do setor.
Calcula-se que para atingir os objetivos de
universalização será necessário manter investimentos médios anuais até lá ao
redor de R$ 20 bilhões. No entanto, com a mudança de regras, a meta fica em
risco, uma vez que a participação do setor público no saneamento volta a ganhar
espaço, sem exigências estritas de comprometimento de investimentos.
Uma dessas medidas flexibiliza a
comprovação da situação econômico-financeira das empresas, que tinha sido
estabelecida para garantir que as prestadoras do serviço teriam condições de
fazer os investimentos necessários. Verificação realizada entre 2021 e 2022
constatou que 1.113 contratos com municípios (20% do total), abrangendo 29,8
milhões de pessoas, foram considerados irregulares. Por isso, deveriam passar
por nova licitação. Agora, essas empresas deficitárias terão mais tempo para
mostrar capacidade financeira e técnica, o que poderá “salvar” boa parte dos
contratos das estatais.
Contratos que estavam vencidos, precários
ou irregulares quando a lei foi publicada, poderão ser regularizados até 2025.
Outro ponto polêmico é a permissão para que
companhias estaduais prestem serviços, sem licitação, em microrregiões, regiões
metropolitanas ou aglomerações urbanas. Essa prestação poderá ser feita
mediante autorização de entidade do bloco regional.
Para vencer as resistências, o governo Lula
propaga a estimativa de que as novas regras podem estimular R$ 120 bilhões em
obras de saneamento nos próximos dez anos, entre recursos privados e públicos,
muito abaixo do estimado para a universalização. Se o número se concretizar
será em boa parte consequência de uma das medidas do pacote que é o fim da
restrição de 25% para que estatais firmem novas PPPs. Uma estatal poderá
entregar para o setor privado todo o serviço, mas o contrato continuará entre a
empresa pública e a cidade.
O claro apoio às estatais marca os decretos
sobre saneamento. O próprio presidente Lula disse que representam um “voto de
confiança” nas empresas públicas do setor. Mas isso não justifica a
flexibilização das exigências. No Congresso, já há críticas a retrocessos da
parte do presidente da Câmara, Arthur Lira; e o Partido Novo recorreu ao
Supremo Tribunal Federal (STF) contra os decretos.
Dois pontos concentram as críticas. Um é a
permissão para as companhias estaduais assumirem os blocos regionais, sem
licitação. Os blocos foram idealizados para viabilizar o atendimento de
municípios menores, de baixa viabilidade comercial, que se juntariam aos
maiores para atrair uma concessionária - o chamado “filé com osso”. Ao
dispensar a exigência de licitação, porém, a proposta perde o sentido. O outro
é a regularização de contratos precários. Tão ou mais preocupante, porém, é a flexibilização
dos critérios para a comprovação da capacidade das empresas de oferecer a
universalização do atendimento da população, que deveria ser o objetivo último
da modernização do saneamento.
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